EDITORIAL

 

Desafios políticos e organizacionais do SUS: vinte anos de política pública

 

 

Enquetes de opinião, publicadas na grande imprensa, revelaram que a atenção à saúde superou a violência e o desemprego como o principal problema. No último Congresso da ABRASCO reconheci haver "uma pedra no caminho" do SUS, uma pedreira. Insisto no impasse: apesar do crescimento do SUS existem indicativos de que não estaríamos atendendo a grande parte das necessidades de saúde do país. O primeiro desafio: o SUS não se transformou em prioridade do Estado brasileiro. Um ou outro município, um ou outro governante, fugiu a essa regra. Essas fugas funcionaram como efeito de demonstração de que seria possível construir um sistema público no país. Este lugar secundário resultou em que não fossem enfrentadas mudanças políticas, organizacionais e do modelo de atenção que têm impedido consolidar o sistema. Ninguém poderá, hoje, afirmar com segurança se teremos um sistema único ou uma rede estatal reduzida para atender populações carentes com programas focais.

Não nos demos conta de que optamos por um sistema filiado à tradição européia da socialização na saúde. No Brasil, a principal política social, segundo o discurso dominante, seria o próprio crescimento econômico. Com isso, a maioria teria garantido acesso a bens e, com o tempo, a seguro saúde privado. O primeiro desafio é, portanto, reafirmar a construção de um sistema público para todos.

Um segundo: reconhecer que há uma crise de legitimidade das organizações estatais e públicas pela baixa eficácia e eficiência. Há apropriação do orçamento investido por agrupamentos privados: empresários, corporações profissionais, burocracia, políticos. Michel Foucault reconhecia não haver uma "arte de governar do socialismo". Há anos trabalho com o conceito de "reforma da reforma": reinventar os sistemas estatais com base na co-gestão e na contratação clara da responsabilidade sanitária de profissionais, equipes, serviços, redes regionais e entes federados. Resumindo: a reforma organizacional do SUS - fundos financeiros, conselhos e colegiados, critérios de custeio - não foi suficiente para construir uma governança para o sistema. O histórico patrimonialismo na gestão da coisa pública no Brasil agravou esse quadro. Como explicar o descaso com hospitais e serviços federais, estaduais e municipais? Entra governo e sai governo e permanece o desgoverno (os céticos que visitem algum hospital do SUS em sua cidade, ao vivo). Não honramos ainda a tradição sanitária dos sistemas públicos: apesar de haver "sistema" no nome, o SUS não funciona em rede com base populacional e territorial. Os hospitais e os centros de especialidade não foram integrados ao sistema. Daí as filas, daí o câncer que chega sempre com atraso ao SUS. A estratégia de saúde da família é uma falsa prioridade. Discurso com pequena consistência revelada pelo financiamento insuficiente, pelo descuido com a política de pessoal. Acuso os governos que, seguindo a tendência populista de vários municípios, inventaram uma atenção primária degradada para os pobres: Unidades de Pronto Atendimento, um dos espaços sociais de que nos envergonharemos no futuro, signo da perversidade humana.

Perspectivas otimistas: o mundo precisa de sistemas nacionais, o mercado massacra o corpo e o bolso das famílias. Há pedaços do SUS que funcionam, experiências com êxito. Existe base social para prosseguirmos com a reforma: milhares de trabalhadores e milhões de brasileiros que acordam para a importância do SUS. Entretanto, há pedras no meio do caminho, há pedras dentro das pessoas e do sistema.

 

 

Gastão Wagner de Sousa Campos
Faculdade de Medicina, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. gastaowagner@mpc.com.br

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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