ARTIGO ARTICLE

 

Dinâmica intra-urbana das epidemias de dengue em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 1996-2002

 

Intra-urban dynamics of dengue epidemics in Belo Horizonte, Minas Gerais State, Brazil, 1996-2002

 

 

Maria Cristina de Mattos AlmeidaI; Renato Martins AssunçãoII; Fernando Augusto ProiettiIII; Waleska Teixeira CaiaffaIII

ISecretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Belo Horizonte, Brasil
IIInstituto de Ciências Exatas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
IIIFaculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo descrever os padrões espacial e temporal das epidemias de dengue em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, entre 1996 e 2002, analisando o endereço de residência como marcador do local de exposição. Casos de dengue notificados foram agrupados segundo semana epidemiológica do início dos sintomas e setor censitário de residência. O índice de Moran local foi utilizado para avaliar a autocorrelação espacial dos coeficientes de incidência. Também foi verificada a reincidência dos setores nas diferentes ondas epidêmicas. Por meio da função K de Ripley, foram comparadas as distribuições espaciais de dois grupos populacionais, supondo terem diferentes comportamentos em relação ao seu deslocamento pela cidade. Foram analisados 99.559 casos, evidenciando-se sete alças epidêmicas com diferentes durações e intensidades, com concentração de casos numa parcela reduzida de setores e tendência de dispersão espacial e temporal. A distribuição de casos dos dois grupos populacionais evidenciou padrões diferenciados, apontando a necessidade de melhorar o registro do provável local de infecção. O padrão de endemização da doença encontrado requer estratégias específicas e constitui um maior desafio para a vigilância em saúde.

Dengue; Análise Espacial; Surtos de Doenças


ABSTRACT

This study aimed to describe the temporal-spatial patterns of dengue epidemics in Belo Horizonte, Minas Gerais State, Brazil, from 1996 to 2002 and to analyze residential address as a proxy for exposure. Reported dengue cases were analyzed according to week of onset of symptoms and residential census tract. Local Moran's index was used to assess spatial autocorrelation of incidence coefficients, and recurrent census areas over different epidemic waves were also verified. Ripley's K-function was used to compare spatial distribution patterns between the two population groups, assuming that they were distributed differently around the city. A total of 99,559 dengue cases were analyzed, resulting in seven epidemic waves with different durations and intensities, with cases clustering in a small fraction of areas, thinning out both spatially and temporally. Distinct case distribution patterns were observed according to the two exposed groups, suggesting the need to improve the reporting of possible place of infection. The observed endemic pattern of the disease also requires specific strategies and poses a major challenge for health surveillance services.

Dengue; Spatial Analysis; Disease Outbreaks


 

 

Introdução

O dengue é uma doença febril aguda que varia de uma evolução benigna, na forma clássica, até uma doença grave ou fatal, a febre hemorrágica do dengue. É considerado o mais importante das arboviroses para o homem, especialmente nos países tropicais. Infecta cerca de 80 milhões de pessoas a cada ano em 100 países, levando a aproximadamente 550 mil hospitalizações e 20 mil óbitos 1. É causado por um arbovírus com quatro sorotipos antigenicamente relacionados: DEN-1, DEN-2, DEN-3 e DEN-4. A infecção por um determinado sorotipo de vírus do dengue confere imunidade homóloga, que é duradoura, enquanto a imunidade para os outros sorotipos é apenas parcial e temporária 2.

O principal vetor do dengue é o mosquito Aedes aegypti, um culicídeo que apresenta alta capacidade de adaptação nos ambientes urbanos atuais 3,4. O desenvolvimento e viabilidade do vetor são bastante sensíveis às condições ambientais, porém, seus ovos podem resistir a longos períodos de dessecação. Possuem hábitos preferencialmente diurnos e têm marcada predileção pelo sangue humano. O raio de vôo do mosquito adulto em geral não ultrapassa cinqüenta metros, permanecendo próximo ao local onde emergiu, desde que haja locais adequados para alimentação, repouso e postura 5.

Entre os anos de 1923 e 1982 não houve registros de casos de dengue no Brasil. O Ae. aegypti, que já havia sido erradicado, foi detectado novamente no país em 1976. As razões para a reemergência do dengue são complexas e não totalmente compreendidas 6.

A magnitude deste agravo tem garantido altos investimentos para o controle vetorial, vigilância epidemiológica e atenção aos pacientes. Na atual ausência de vacina eficaz, sem tratamento etiológico ou quimioprofilaxia efetivos, o combate ao vetor tem sido considerado estratégia básica para o controle da enfermidade 7. Diferentes propostas têm sido implementadas nacionalmente, como o Programa de Erradicação do Aedes aegypti em 1996, o Plano de Intensificação e Controle da Dengue em 2001 e o Programa Nacional de Controle do Dengue em 2002 1. Por diversas razões, os programas de combate ao Ae. aegypti, implementados nas últimas décadas têm tido um impacto reduzido 4,8.

Em 1996, ocorreram os primeiros registros de dengue em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil, configurando uma epidemia na região norte da cidade. No princípio de 1997, iniciou a segunda epidemia. O único sorotipo do vírus identificado até então foi o DEN-1. No final de 1997, iniciou outra epidemia, a mais intensa, com circulação simultânea de DEN-1 e DEN-2. Esses sorotipos continuaram a produzir sucessivas epidemias 9 até que em fevereiro de 2002, o DEN-3 foi identificado pela primeira vez no município. Atualmente, os três sorotipos coexistem no município.

O conhecimento aprofundado da dinâmica da doença, particularmente em grandes centros urbanos, pode corroborar ou reorientar ações de controle e vigilância, otimizando recursos que, em geral, são reduzidos nos períodos de menor incidência da doença.

Este estudo tem o objetivo de descrever os padrões das epidemias de dengue em uma região urbana. Utilizar-se-á uma abordagem detalhada das dimensões espacial e temporal de sete anos de ocorrência da doença, buscando contribuir para o entendimento de sua dinâmica e identificando a reincidência de áreas nos diferentes episódios ocorridos durante o período estudado.

Em vários estudos, e mesmo nas ações da vigilância epidemiológica, assume-se a moradia do paciente como o provável local da infecção. Assim, este estudo propõe verificar a importância do endereço de residência como marcador do local de exposição, comparando a distribuição espacial de dois grupos de casos, supondo terem diferentes comportamentos em relação ao seu deslocamento pela cidade e sua permanência no domicílio e proximidades no período diurno.

 

Materiais e métodos

Local do estudo

Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, registrou uma população de 2.238.332 habitantes no Censo Demográfico de 2000 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; http://www.ibge.gov.br), distribuídos numa área de 335km2. Sua altitude varia de 650 a 1.150 metros, com temperaturas médias de anuais entre 18ºC e 27ºC e índices pluviométricos superiores a 1.300mm anuais 10.

A Secretaria Municipal de Saúde conta com uma estrutura central, nove distritos sanitários e 139 unidades básicas de saúde. Tais unidades têm suas áreas de abrangência constituídas por setores censitários contíguos, considerando as barreiras geográficas, a malha viária e a população residente.

As ações de combate ao Ae. aegypti têm a coordenação hierarquizada no nível municipal, estando a execução das atividades sob a responsabilidade das unidades básicas. Essas ações sofrem as mudanças estabelecidas nacionalmente, ao longo dos anos, nos programas de controle vetorial; a coordenação central, no entanto, propicia a homogeneidade dos serviços de controle vetorial, embora ocorram iniciativas específicas direcionadas às particularidades de cada local.

Fonte de dados e critério de casos

Os dados analisados foram obtidos do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN), do Ministério da Saúde, acrescidos de informações registradas no Sistema de Vigilância Municipal. Este sistema, desenvolvido na Secretaria Municipal de Saúde, objetiva a complementação de dados de interesse do serviço municipal de saúde, sobretudo aqueles referentes ao endereçamento.

Foram selecionados os casos autóctones de dengue de residentes em Belo Horizonte, notificados à Secretaria Municipal de Saúde no período de 1996 a 2002 e confirmados mediante critério laboratorial ou clínico-epidemiológico, conforme orientações do Ministério da Saúde. A confirmação laboratorial compreende a detecção de anticorpos IgM anti-dengue, e/ou isolamento viral e/ou reação em cadeia de polimerase (PCR), enquanto o diagnóstico clínico-epidemiológico pode ser utilizado em situações epidêmicas, em locais com comprovada circulação viral 2. Os dados foram revisados e validados por meio de críticas de consistência e pesquisa de duplicidade de registros. Foram consideradas duplicadas aquelas notificações de um mesmo indivíduo que apresentavam o mesmo nome, idade e endereço e cuja diferença entre datas de inicio dos sintomas fosse inferior a noventa dias, sendo uma delas descartada.

Análise dos dados

Os casos considerados para análise foram ordenados pela semana epidemiológica do início dos sintomas e buscaram identificar os diferentes processos ocorridos durante o período do estudo. Para determinar o início e o fim de cada alça epidêmica, adotou-se o seguinte critério: quando duas semanas consecutivas apresentavam dois ou mais casos, considerou-se a primeira delas como início da epidemia. Quando em duas ou mais semanas consecutivas um ou nenhum caso era notificado, considerou-se a última semana com registro de pelo menos dois casos como a última semana da alça epidêmica.

Cada uma das alças epidêmicas foi analisada separadamente, tendo como unidade de análise espacial o setor censitário definido segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para o censo de 2000. Havia um total de 2.563 setores censitários no município, com média de 873 habitantes (desvio-padrão - DP = 293,3). Como unidade temporal, entendeu-se a semana epidemiológica de início dos sintomas.

Para a identificação do setor censitário correspondente à residência de um determinado caso, remeteu-se, primeiramente, o georreferenciamento ao seu respectivo endereço, para em seguida identificar o setor censitário onde este se localizava. Caso o endereço não constasse na base geográfica, buscou-se georreferenciá-lo ao endereço mais próximo. Apesar de a possibilidade desse procedimento de aproximação localizar o caso em um setor vizinho, especialmente no caso de logradouros limítrofes, optouse por utilizar o método a perder tal informação. O processamento por aproximação correspondeu a 28% dos casos georreferenciados ao endereço. Para otimizar a localização dos eventos e evitar incompletude de informações, foram utilizadas, ainda, as bases geográficas de quadras e de trechos de logradouros. Foi utilizado o Sistema de Informações Geográficas (SIG) municipal, desenvolvido e gerenciado pela Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte (Prodabel).

Para o estudo exploratório do padrão espacial do dengue, foi usado o índice de Moran local 11. Esse índice é uma medida de autocorrelação espacial entre um valor numa determinada área e os valores de seus vizinhos, permitindo evidenciar padrões significativos de associação espacial 12. Esta estatística não está estritamente limitada ao intervalo (-1, 1), mas seu valor se afasta de zero à medida que aumenta o grau de correlação positiva ou negativa. Na ausência de dependência espacial, esse valor é próximo de zero 13. Neste estudo, foram considerados os vizinhos de primeira ordem, ou seja, aqueles setores que compartilhavam fronteiras.

Para avaliar a persistência do dengue no setor nas diferentes alças epidêmicas, o número médio de casos por setor censitário para cada alça foi definido como um valor limiar. Foram considerados em cada alça apenas os setores que apresentaram casos. Verificaram-se os setores que atingiram ou superaram este valor na respectiva epidemia. Para cada setor, foi contado o número de vezes que atingiu este limiar em cada uma das alças.

Para avaliar a residência como marcador do local de exposição, foram analisados os padrões de distribuição espacial de dois grupos populacionais, supondo terem diferentes comportamentos quanto à sua permanência no domicílio durante o dia: grupo 1 - menores de 10 anos de idade e mulheres acima de 64 anos, assumindo que este grupo populacional tenha maior chance de permanecer no domicílio ou em suas proximidades no período diurno; grupo 2 - homens de 20-59 anos de idade. Este grupo representaria uma população que teria maior possibilidade de se afastar da residência durante o dia.

Foi estimada a função K de Ripley para os dois grupos para uma série de distâncias, d, até atingir mil metros. Se a distribuição espacial dos casos em ambos os grupos segue padrão semelhante, espera-se que a diferença entre estas funções, K(d), do primeiro grupo, K1(d), e do segundo, K2(d), seja igual a zero [K(d) = K1(d) - K2(d)] 14.

Para testar a significância dos resultados obtidos a cada medida da escala, K(d), foram feitas 99 simulações, rotulando aleatoriamente os eventos dos dois grupos. Determinou-se o envelope constituído pelos limites inferior e superior, respectivamente, nos percentis 0,025 e 0,975 a cada distância na escala.

Foram utilizados os programas MapInfo (Map Info Corp., New York, Estados Unidos) para a tratamento dos dados, mapeamento e operações geográficas. Para cálculo do índice de Moran local, utilizou-se o programa GeoDa (Spatial Analysis Laboratory, University of Illinois, Urbana-Champaign, Estados Unidos). As análises dos processos pontuais foram realizadas utilizando-se o pacote colaborativo Splancs pelo programa R (The R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria; http://www.r-project.org).

 

Resultados

Dos casos de dengue de residentes em Belo Horizonte notificados à Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte nos anos de 1996 a 2002, 99.559 foram considerados autóctones e confirmados por intermédio de critério laboratorial ou vínculo epidemiológico. A distribuição temporal desses casos evidenciou sete alças epidêmicas. A primeira epidemia teve início na 15ª semana epidemiológica de 1996 e a sétima alça equivalente ao período final deste estudo terminou na 35ª semana epidemiológica de 2002.

Foram excluídos noventa casos ocorridos esparsamente entre as alças, restando um total de 99.469 casos nas sete alças.

Na Tabela 1, estão apresentadas as amplitudes, início e término de cada alça epidêmica, além da distribuição de casos por sexo, idade, critério de confirmação e resultados do georreferenciamento. Observa-se uma variação tanto na duração quanto nos períodos entre as alças, sendo a quarta e a sétima alça as mais extensas. Nota-se uma variação nas semanas iniciais de cada alça, com padrão irregular. Ao contrário, evidencia-se uma periodicidade ao término dos episódios, notadamente entre a 25ª e 31ª semana, coincidindo com os meses de junho a agosto, em todas as alças exceto na última.

Apesar do predomínio do sexo feminino em todos os períodos, na primeira e quinta alças, tais proporções não diferiram significativamente da população do município (p > 0,05). Observou-se também o predomínio de casos em adultos, porém, ressalta-se a elevada proporção de idade ignorada na sétima alça (15,4%). Quanto ao critério diagnóstico para confirmação de casos, nota-se o aumento da utilização do diagnóstico laboratorial, passando de 13,7% na primeira alça para 62,4% na última. Foram georreferenciados 89.615 (90,1%) casos ocorridos nas sete curvas epidêmicas, sendo possível identificar os respectivos setores censitários de residência.

Verificam-se epidemias de magnitudes variadas. Uma parcela variável dos setores censitários foi acometida a cada alça, com maior concentração na primeira, enquanto a terceira alça foi a mais dispersa. Na Tabela 2, pode-se observar que uma pequena parcela de setores concentra grande parte dos casos em cada alça epidêmica. Durante todo o período em estudo, não se verificou a ocorrência de casos apenas em 50 (2%) setores censitários. O número de setores censitários que ultrapassam a média de casos de cada alça é reduzido.

Analisando todo o período do estudo, observou-se que 49% dos setores censitários não atingiram o limiar estabelecido em nenhuma das alças epidêmicas, 29,6% o atingiram uma única vez, 20,5% alcançaram o limiar duas ou três vezes e 0,9% atingiram ou superaram o número médio de casos por setor em quatro ou cinco das sete alças estudadas.

A Figura 1 apresenta a distribuição dos casos no espaço e no tempo. Com o uso do mapeamento dos índices de Moran local para os setores censitários, pode-se observar, em todas as alças epidêmicas, concentração de setores com altas taxas de incidência circundados por vizinhos com taxas elevadas, como também áreas de baixa incidência com vizinhança apresentando valores relativamente baixos. As duas primeiras alças mostram-se bem definidas em diferentes regiões da cidade.

Os gráficos da Figura 1 apresentam a distribuição do percentual de casos notificados semanalmente. Chama a atenção o início e o término mais arrastados na sétima alça. Neste último episódio, foi verificado um total de 57 casos nas 19 primeiras semanas da curva, distribuídos em oito dos nove Distritos Sanitários e 45 casos nas dez últimas semanas, em todos os distritos. Nota-se um espalhamento dos casos em ambas as dimensões, espacial e temporal, no decorrer dos anos, embora se observe uma persistência de áreas com maiores incidências.

Quanto à comparação da distribuição pontual dos dois grupos populacionais, foram analisadas a primeira, segunda, terceira, sexta e sétima alças. As demais foram excluídas desta análise devido ao escasso número de casos, especialmente após a subdivisão dos grupos. A Figura 2 mostra que na primeira e sétima alças a diferença entre as funções K dos dois grupos mostrou-se limítrofe (limite superior do envelope). Na segunda alça, a diferença foi significativa num raio de até aproximadamente 700m, enquanto nas terceira e sexta alças, a diferença foi marcante. Este resultado evidencia uma maior aglomeração de casos no grupo de crianças e idosos, aquele que supostamente permanece por mais tempo no domicílio no período diurno em comparação com o grupo de homens de 20-59 anos.

Outros agrupamentos populacionais foram testados, estratificados ou não por sexo e idade (dados não apresentados). Entretanto, quando foram comparados homens de 20-59 anos com os menores de 10 anos de idade e mulheres acima de 64 anos, foram encontradas as maiores diferenças.

 

Discussão

Foram observadas mudanças no padrão espaço-temporal das epidemias de dengue nos sete anos de observação, com tendências à dispersão em ambas as dimensões. As duas primeiras alças epidêmicas foram marcadamente concentradas, temporal e espacialmente, em regiões distintas da cidade. A terceira alça, que foi a epidemia de maior magnitude, mostrou um padrão diferenciado com ampla dispersão territorial. E, a partir daí, as alças tomaram forma mais achatada e com grande dispersão espacial. Todavia, em todas elas, pôde-se verificar a concentração de áreas de maior incidência, mesmo na quarta e quinta alças, que tiveram um reduzido número de casos.

A distribuição heterogênea do dengue nos espaços urbanos tem sido observada por vários autores 9,15,16. Ondas epidêmicas de diferentes magnitudes, duração e distribuição têm sido descritas em outras metrópoles do país pela utilização de dados agregados por regiões administrativas, como no Município do Rio de Janeiro, Brasil 17, ou por distritos sanitários, como na cidade de Salvador, Estado da Bahia, Brasil 18.

Três fatores devem ser considerados na queda do número de casos de uma alça epidêmica: esgotamento de susceptíveis, intervenções do controle vetorial e condições naturais desfavoráveis, tais como a diminuição da temperatura e umidade reduzindo a população vetorial. No presente estudo, com exceção da sétima alça, as demais tiveram seu término entre as semanas epidemiológicas 25 e 31, correspondendo aos meses de junho a agosto, meses mais frios e de baixa umidade. Isto sugere, fortemente, que as condições climáticas adversas à proliferação do vetor têm importante papel no término da transmissão da doença na cidade.

Se por um lado a sazonalidade parece definir o término desses processos epidêmicos, a variação constatada nos períodos iniciais talvez possa ser decorrente das ações do controle vetorial. Entretanto, não se dispõe de informação que possa corroborar esta possibilidade.

Em contraponto, a longa duração e a ascensão e declínio lentos da sétima e última curva estudada parecem sugerir que a delimitação utilizada para determinar o início e término de uma alça epidêmica já não possa ser adequada para os próximos episódios. Associa-se a este fato a ocorrência ininterrupta de casos por 53 semanas, podendo indicar uma mudança no padrão da doença no município, com transmissão viral contínua e com picos sazonais. Este quadro poderia representar um maior risco de casos graves, reforçando a necessidade de uma vigilância epidemiológica ativa, com apoio diagnóstico, monitoração dos sorotipos circulantes e garantia de assistência ao paciente por pessoal capacitado, serviços de referência e insumos necessários.

Outro produto deste estudo foi a identificação de áreas críticas, reincidentes e com concentração de casos, podendo fornecer subsídios para o planejamento das ações de controle vetorial e de vigilância epidemiológica.

Em outro estudo, os setores censitários de Belo Horizonte foram classificados de acordo com a ocorrência e persistência da doença e, em seguida, agrupados em três categorias de risco. Os fatores associados significativamente às áreas de maior risco foram: baixa renda do chefe de família, maior densidade domiciliar e maior proporção de crianças e mulheres idosas 19.

Uma terceira conclusão refere-se à utilização do endereço de residência como marcador do provável local de infecção. A análise da distribuição pontual dos dois grupos populacionais indicou que houve diferença significativa entre estes padrões, mostrando uma maior agregação de casos em crianças e idosos e uma maior dispersão para o grupo que representaria uma faixa da população em idade produtiva, indicando a necessidade de se considerar o local de trabalho ou outro deslocamento importante na caracterização do provável local de infecção. Não considerar estes locais pode levar a uma subestimação de algumas áreas onde se concentram atividades comerciais ou industriais, nas quais as pessoas teriam sido infectadas nos seus locais de trabalho.

Apesar das orientações da vigilância epidemiológica do dengue em se investigar os prováveis locais de infecção considerando residência, local de trabalho e viagens 2, na ficha de investigação padronizada pelo Ministério da Saúde, apenas os dados referentes ao endereço de residência são estruturados para permitir uma localização precisa do caso. Dessa forma, análises considerando o endereço do paciente como o local de exposição aos fatores de risco assumem uma imobilidade dos indivíduos e ignoram qualquer possibilidade de exposição em outros locais 14 como, por exemplo, ambiente de trabalho ou lazer. Evidências de maior aglomeração de casos em menores de 15 anos foram apontadas por Morrison et al. 20 numa localidade de Porto Rico.

Considerando a natureza da informação secundária usada neste estudo, possíveis fontes de erro devem ser levadas em conta. A primeira refere-se à classificação dos casos, especialmente nos períodos de intensa notificação, quando se reduz o encaminhamento de material para sorologia e a conclusão dos casos é feita essencialmente por critérios clínico-epidemiológicos. Supõe-se que a maior utilização de exames laboratoriais para confirmação diagnóstica ao longo dos anos pode ter reduzido este bias (viés) nas últimas alças.

A segunda fonte de erros refere-se à possível subnotificação de casos. Ressalta-se que um inquérito soro-epidemiológico, realizado em 2000, em três distritos sanitários de Belo Horizonte, mostrou uma subnotificação de 5,4:1, distribuída de forma homogênea entre os distritos 21.

As perdas decorrentes da não-localização dos casos, seja por insuficiência de informação nos registros, ou por deficiência da base geográfica, constituem a terceira fonte de erros. No último caso, as perdas não são uniformes, pois existem deficiências de dados geográficos nas áreas de favelas ou de ocupação recente, podendo levar à minimização da situação daquelas áreas.

Sendo Belo Horizonte um município da região metropolitana, contíguo a áreas urbanas de outros municípios, a análise isolada de sua extensão não capta as influências de seus vizinhos, fato que representa uma limitação que poderia ser contornada pela integração das informações desses municípios, acrescentando muito ao conhecimento da dinâmica da doença.

Ainda que existam as limitações apontadas acima, este estudo indica que, numa doença como o dengue com transmissão vetorial, cujo mosquito normalmente apresenta um pequeno deslocamento durante seu ciclo de vida, a localização pontual dos casos ou a agregação de informações em pequenas áreas, como o setor censitário, pode ser bastante esclarecedora. O estímulo para se garantir a coleta e qualidade da identificação do local provável da infecção e sua localização geográfica certamente contribuiria para elucidar o que aqui se discute.

 

Colaboradores

M. C. M. Almeida e W. T. Caiaffa conceberam, delinearam e escreveram o manuscrito. R. M. Assunção e F. A. Proietti colaboraram na análise estatística e discussão dos dados. Todos os autores revisaram criticamente o conteúdo do artigo e aprovaram o manuscrito final.

 

Agradecimentos

Nosso agradecimento especial a Paulo Roberto Lopes Corrêa pelo repasse dos dados de 1996 a 2001, após crítica e validação. Este estudo faz parte da dissertação de Mestrado em Saúde Pública, área de concentração em Epidemiologia, do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e foi aprovado pelo Colegiado de Pós-graduação e submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG (COEP nº. 233/03). W. T. Caiaffa, R. M. Assunção e F. A. Proietti recebem bolsa de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

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Correspondência:
M. C. M. Almeida
Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte.
Av. Afonso Pena 2336, 9º andar
Belo Horizonte, MG 30130-007, Brasil.
mcmatos@pbh.gov.br

Recebido em 06/Fev/2007
Versão final reapresentada em 04/Jan/2008
Aprovado em 03/Mar/2008

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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