ARTIGO ARTICLE

 

Levantamento epidemiológico das parasitoses intestinais: viés analítico decorrente do tratamento profilático

 

Epidemiological survey of intestinal parasite infections: analytical bias due to prophylactic treatment

 

 

Fernando Frei; Camila Juncansen; João Tadeu Ribeiro-Paes

Faculdade de Ciência e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

As parasitoses intestinais constituem um grave problema de saúde pública, especialmente nos países subdesenvolvidos, sendo esse problema associado e agravado por condições sanitárias precárias e falta de informação. Neste trabalho foram avaliados alguns parâmetros epidemiológicos vinculados às principais enteroparasitoses em diferentes regiões da cidade de Assis, Estado de São Paulo, Brasil. Os dados foram confrontados com aqueles obtidos em um levantamento anterior referente ao ano de 1991 e apresentam uma redução de três pontos percentuais. Há indícios de que, antiparasitários estariam sendo distribuídos profilaticamente, antes dos resultados do exame parasitológico de fezes. Este fato pode levar a importantes implicações epidemiológicas e distorções analíticas. Esta conduta terapêutica pode estar ocultando condições sanitárias e/ou educacionais desfavoráveis, de forma que haveria uma baixa prevalência de parasitoses em razão de reiterados tratamentos e não pela melhoria das condições de saneamento básico e educação sanitária da população.

Doenças Parasitárias; Levantamentos Epidemiológicos; Condições Sanitárias


ABSTRACT

Intestinal parasite infections are a serious public health problem, mainly in underdeveloped countries, and are usually associated with (and aggravated by) poor sanitation and lack of information. This study evaluated a series of epidemiological parameters associated with the main intestinal parasites in different areas of the city of Assis, São Paulo State, Brazil. The data were compared with those obtained from a previous survey in 1991 and showed a reduction of three percentage points. There is evidence of prophylactic dispensing of drugs for parasites, before receiving the results of stool tests. This could have important epidemiological implications and lead to analytical distortions. This therapeutic approach could disguise unfavorable health and/or educational conditions, with a low prevalence of parasite infections due to repeated treatments rather than improvements in basic sanitation and health education for the population.

Parasitic Diseases; Health Surveys; Sanitary Profiles


 

 

Introdução

As parasitoses intestinais ou enteroparasitoses, decorrentes de protozoários e/ou helmintos, representam um grave problema de saúde pública particularmente nos países subdesenvolvidos onde se apresentam bastante disseminadas e com alta prevalência, decorrente das más condições de vida das camadas populacionais mais carentes 1,2,3,4,5.

Três fatores, a clássica tríade epidemiológica das doenças parasitárias, são indispensáveis para que ocorra a infecção: as condições do hospedeiro, o parasito e o meio ambiente. Em relação ao hospedeiro os fatores predisponentes incluem: idade, estado nutricional, fatores genéticos, culturais, comportamentais e profissionais. Pesa para o lado do parasito: a resistência ao sistema imune do hospedeiro e os mecanismos de escape vinculados às transformações bioquímicas e imunológicas verificadas ao longo do ciclo de cada parasito 6,7. As condições ambientais associadas aos fatores anteriores irão favorecer e definir a ocorrência de infecção e doença. Assim, como proposto por Neghme & Silva 8, a prevalência de uma dada parasitose reflete, portanto, deficiências de saneamento básico, nível de vida, higiene pessoal e coletiva.

Diversos programas governamentais têm sido implementados para o controle das parasitoses intestinais em diferentes países. No entanto, nos países subdesenvolvidos a baixa eficácia de tais iniciativas vincula-se ao aporte financeiro insuficiente para a adoção de medidas de saneamento básico e quimioterapia. Concorrem para o insucesso desses programas a falta de envolvimento e participação da comunidade 9,10.

Indicadores epidemiológicos têm sido utilizados como importantes instrumentos para monitorar o progresso na promoção da saúde 11. Por esta razão, os sistemas de estatísticas atuais precisam fortalecer-se sobretudo nos países em desenvolvimento. Melhorar a cobertura, confiabilidade e desagregação de dados, especialmente por gênero, grupo de renda e área geográfica é fundamental para a melhoria das condições de vida. É necessário também aumentar a velocidade, a regularidade na coleta de dados e a disseminação de informação para os usuários interessados 12.

Na área de saúde, os indicadores representam instrumentos de monitoração de condições de vida e concorrem para a construção de políticas públicas que possam direcionar recursos e ações para a promoção da saúde e melhoria da qualidade de vida dos cidadãos 13.

Ludwig et al. 14 realizaram um levantamento prévio na cidade de Assis, São Paulo, Brasil, correlacionando as condições de saneamento básico à ocorrência de parasitoses intestinais. A prevalência geral foi de 23,3%. Verificou-se que a faixa etária de 3 a 12 anos apresentou maior número de indivíduos parasitados (38,2%), observando-se tendência à queda progressiva com o aumento da idade. Foi estabelecida neste trabalho uma relação entre as condições de saneamento básico, expressos pelo número de ligações de água e esgoto, e a freqüência de parasitoses. Houve queda na freqüência de parasitoses entre 1990 e 1992, coincidindo com o aumento do número de ligações de água e esgoto nestas regiões. De um modo geral, foi verificado um decréscimo na prevalência de enteroparitoses no período analisado (1990 e 1992).

No presente trabalho, foram avaliados alguns parâmetros epidemiológicos das principais enteroparasitoses em diferentes regiões da cidade de Assis, atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e confrontados os resultados com aqueles anteriormente obtidos entre 1990 e 1992, nesta mesma cidade 14, a saber: local de residência e situação de saneamento básico, expresso pelo número de ligações de água e esgoto. Constatou-se, em algumas unidades básicas de saúde (UBS), uma relação inversamente proporcional entre quantidade de medicamentos distribuída e prevalência de enteroparasitoses, independentemente das condições sanitárias.

Diante dos resultados obtidos neste trabalho, sugere-se que os indicadores de saúde provenientes de levantamentos epidemiológicos sobre parasitoses intestinais deveriam ser revistos e analisados diante de uma ampla gama de parâmetros epidemiológicos, a fim de se evitar a introdução de vieses analíticos.

 

Metodologia

Localização do Município de Assis e condições climáticas

Assis localiza-se na região oeste do Estado de São Paulo, sendo o centro da cidade situado a 22°39'42" de latitude e 50°24'44" de longitude, com uma população de 88.262 habitantes (Fundação Seade. http://www.seade.gov.br, acessado em 04/Nov/2002).

Levantamento e coleta dos dados

Para consecução dos objetivos propostos, foram coletados, junto à Secretaria Municipal de Saúde do Município de Assis (SSMA), todos os 1.249 casos registrados de exames parasitológicos de fezes realizados no Município de Assis durante o ano de 2001, excluindo os provenientes de outros municípios. Em consonância com os objetivos do trabalho, foram coletados junto à Secretaria, os resultados numéricos da distribuição de medicamentos para o tratamento das parasitoses intestinais. A planilha dos medicamentos destinados para cada UBS e unidade de saúde da família (USF) para o ano de 2001 foi fornecida pela SSMA. Os dados relativos aos medicamentos foram transformados de maneira que cada UBS e USF apresentem a porcentagem de comprimidos e a porcentagem de frascos de suspensão oral recebidos. Para resumir essas informações, calculou-se a média das porcentagens de medicamentos para cada UBS e USF. Desta forma, é possível verificar a relação entre distribuição de medicamentos e prevalência de parasitoses intestinais. Os medicamentos utilizados para tratamento das diferentes parasitoses foram distribuídos para a população adstrita a cada UBS e mediante a apresentação do registro de cada usuário. Os dados referentes aos medicamentos ministrados estão apresentados na Tabela 1.

Foram analisadas as variáveis, local de moradia, espécies dos parasitos observadas para a faixa etária de 2 meses a 15 anos, conforme os dados apresentados pela SSMA. O Município de Assis conta com sete UBS e dez USF. O diagnóstico dos exames foi obtido por meio dos prontuários dos pacientes em cada UBS e USF.

No estudo inicial de 1991, os resultados provenientes da região central reuniam dados de áreas distintas em termos sócio-econômicos. A partir do final da década de 1990, a região central foi desmembrada em duas novas regiões: UBS Central e UBS Vila Operária; a última atendendo a uma população oriunda de bairros mais carentes. Por tal razão, com o desmembramento de uma das regiões, optou-se por apresentar os dados destas duas novas regiões apenas para o ano de 2001.

Para obtenção das informações de ligações de água e esgoto foram utilizados os dados do último censo brasileiro 15.

Parasitológico de fezes e parasitos a serem analisados

Deve-se observar que os resultados referentes ao ano de 1991 foram obtidos pelo método de sedimentação espontânea de Hoffman 16 (ou método de Lutz 17, 1919) e realizados pelo Centro de Saúde de Assis (atual UBS Central). Os dados dos exames parasitológicos de fezes para o de 2001 foram obtidos pelos métodos de Faust 18, Lutz 17 e Willis 19, conforme o padrão adotado pela SSMA, e realizados no laboratório da UBS Central.

Para efeito comparativo foram analisados os mesmos parasitos considerados no trabalho anterior 14Entamoeba histolytica/dispar, Giardia intestinalis, Ascaris lumbricoides, Trichuris trichiura, ovos de Ancylostoma sp., Schistossoma mansoni, Hymenolepis nana, Enterobius vermicularis, Taenia sp. e Strongyloides stercoralis.

Análises

Cada uma das UBS e USF abrange determinada região geográfica; assim, por meio da superposição dos dados dos setores censitários do censo de 2000, foram realizadas comparações entre as diversas regiões no que tange às condições de saneamento básico e prevalência de parasitoses.

Para obtenção do indicador de infecção dos diversos parasitos, foi calculado o percentual de casos positivos obtido em cada amostra por UBS e USF.

Os resultados do ano de 1991 14 foram comparados com os de 2001 de maneira a propiciar uma visão específica de cada região analisada e avaliar possíveis avanços, melhorias das condições de saúde ou possíveis retrocessos das condições sanitárias.

O indicador de distribuição de medicamentos foi realizado mediante o cálculo da média da porcentagem de comprimidos e porcentagem dos frascos (quando a apresentação do medicamento era na forma de solução ou suspensão oral), fato que resultou na porcentagem média de medicamentos distribuídos.

 

Resultados

Para efeitos de comparação, as unidades de saúde foram agrupadas em sete regiões, denominadas de Vila Central, Jardim Paraná, Vila Operária, Vila Maria Isabel, Vila Ribeiro, Vila Bonfim e Vila Fiúza.

O percentual geral de parasitos intestinais constatados na amostra analisada foi de 20,3. Merecem destaque como enteroparasitos mais freqüentes G. intestinalis (42,6%), E. vermicularis (24,3%) e A. lumbricoides (12,5%). A porcentagem de multiparasitismo apresentou-se baixa (1,4%).

As freqüências mais elevadas de enteroparasitos no ano de 2001 foram encontradas nas populações que utilizam os postos da Vila Fiúza (28,6) e Bonfim (27,0), como mostra a Tabela 1.

Quanto à freqüência de enteroparasitos observados em diferentes faixas etárias verificou-se que na faixa etária de 0-3 anos encontram-se as freqüencias mais elevadas (42%). Na faixa de 3-6 anos, a prevalência continua elevada (31%), porém com tendência ao decréscimo em relação ao aumento da faixa etária.

Dos prontuários observados, 51,4% pertenciam a pacientes do sexo feminino e 48,6% a pacientes do sexo masculino. O percentual de positividade foi de 23,4% para o sexo feminino e de 17,2% para o masculino.

Em relação à análise comparativa com Ludwig et al. 14, verifica-se uma pequena redução na prevalência geral entre os anos de 1991 (23,3%) e 2001 (20,3%). A Figura 1 mostra a freqüência de enteroparasitos comparativa por UBS, indicando um aumento significativo na freqüência de alguns bairros, como na Vila Fiúza (de 10,1% para 28,5%) e Bonfim (de 13,5% para 28,9%). Como apresentado na Figura 1, houve, também, uma diminuição significativa (de 43,4% para 15,3%) no bairro de Vila Maria Isabel.

Quanto às ligações de água, ocorreu um pequeno decréscimo de 99,4% (1991) para 98,6% (2001), entretanto houve significativo aumento em relação às ligações de esgoto, de 86,7% (1991) para 97,6% (2001).

Por fim, foram analisadas as quantidades de medicamentos fornecidas a cada UBS, com dados referentes de janeiro a outubro de 2001 (Tabela 1).

 

Discussão

A análise comparativa entre os dados do presente estudo com os dados de 1991 14 mostra uma redução no percentual global de parasitoses de 23,3% para 20,3% em 2001. Geograficamente, os dados obtidos em 2001 indicam maior prevalência de parasitos nas Vilas Fiúza e Bonfim, embora tais regiões apresentem bons indicadores de saneamento básico. Entre os resultados da pesquisa de 1991 14, as regiões de Marialves (atual Vila Maria Isabel), Vila Xavier (atual Vila Ribeiro) e Vila Progresso (atual Jardim Paraná) apresentavam a maior prevalência de parasitoses. Essas regiões abrangem as populações de nível sócio-econômico mais baixo da cidade 20. Dentre os enteroparasitos mais freqüentes em 2001 encontram-se: G. intestinalis (42,6%), E. vermicularis (24,2%), A. lumbricoides (12,5%) e E. histolytica/dispar (12,1%). Resultados similares foram observados no trabalho de 1991.

A Figura 1 mostra a porcentagem de enteroparasitos comparativa por UBS, nos dois períodos analisados, indicando um aumento expressivo na porcentagem de alguns bairros, como na Vila Fiúza (de 10,1% para 28,5%) e Bonfim (de 13,5% para 28,5%), assim como diminuição também expressiva em outros, como Vila Maria Isabel (de 43,4% para 15,3%).

As condições de saneamento básico apresentam melhora em todas as regiões da cidade no que concerne à coleta de esgoto, ultrapassando a casa de 96% das moradias em 2001, um acréscimo de 10,9% em relação ao ano de 1991. Os resultados de abastecimento de água apresentam um alto percentual de cobertura, mesmo com pequena queda geral de 0,8%. Os indicadores de saneamento são positivos e podem ter contribuído com a queda do percentual na prevalência entre os anos em estudo.

Durante o transcorrer do trabalho foi evidenciada uma situação epidemiológica particular. Em algumas das unidades de saúde constatou-se uma relação inversamente proporcional entre quantidade de medicamento distribuída e a prevalência de parasitoses intestinais, independentemente das condições sanitárias. Verifica-se, por exemplo, na região Central, altos percentuais de parasitoses e baixa administração de medicamentos antiparasitários. Por outro lado, no Jardim Paraná, com indicadores menos favoráveis de saneamento, verifica-se uma prevalência relativamente baixa de parasitoses e alta administração de antiparasitários (Tabela 1). Essa constatação poderia estar vinculada a uma prática corrente, não oficializada, em algumas UBS, relativas à distribuição de antiparasitários de forma profilática, ou seja, antes mesmo da realização do exame parasitológico de fezes. Embora não se disponha de dados oficiais, concretos e conclusivos, pode-se aventar a incorporação desta abordagem terapêutica (medicação profilática), o que, por sua vez, poderia estar mascarando condições sanitárias e educacionais desfavoráveis, qual seja, haveria uma baixa prevalência de parasitoses à custa de reiterados tratamentos e não pela implementação de medidas profiláticas, adequação das condições de saneamento básico e educação sanitária da população.

A região Bonfim apresenta outra situação particular. Verifica-se que, com um dos maiores percentuais de oferta de medicamentos, esta região apresenta um alto percentual de parasitoses, situação que pode remeter à possibilidade de que as condições de saneamento básico localizadas e educação sanitária daquela região estejam de tal forma precárias, que, mesmo com a administração profilática de antiparasitários, a prevalência se mantém em níveis elevados, por conta de altas taxas de reinfecção, ou seja, o indivíduo estaria vivendo em uma área de risco, e uma situação cíclica de infecção-tratamento-cura-nova infecção. Estes resultados determinam uma série de importantes implicações epidemiológicas e resultados aparentemente conflitantes entre condições de saneamento básico, nível sócio-econômico e ocorrência de parasitoses intestinais. Essa hipótese e a inferência dela decorrente implicam uma situação epidemiológica particular: alta incidência com baixa prevalência.

Diante desses resultados, faz-se necessária a realização de levantamentos, dentro de uma nova abordagem metodológica, que implicaria na coleta de dados nas residências dos diversos bairros da cidade, por amostragem, com subseqüente realização de exames parasitológicos dos indivíduos amostrados. Tal procedimento deverá ser realizado de forma que os indivíduos sejam analisados antes de eventuais tratamentos com antiparasitários de forma profilática.

Com base nos resultados expressos na Tabela 1 e da possível vinculação desses resultados a uma conduta clínica adotada em algumas UBS, relativas à distribuição profilática de medicamentos, pretende-se, com este trabalho, sugerir e salientar que os levantamentos sobre enteroparasitoses devam ser analisados diante de um amplo espectro de parâmetros epidemiológicos, confrontando-se os dados obtidos com as condutas terapêuticas adotadas nas unidades de saúde das regiões pesquisadas. Busca-se, dessa forma, evitar ou minimizar a introdução de vieses de análise estatística e conclusões distorcidas sobre as reais condições de saneamento básico e educação sanitária da população.

 

Colaboradores

Todos os autores contribuíram de forma eqüitativa nas diversas fases do trabalho.

 

Referências

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Correspondência:
J. T. Ribeiro-Paes
Departamento de Ciências Biológicas
Faculdade de Ciência e Letras de Assis
Universidade Estadual Paulista
Av. Dom Antonio 2100
Assis, SP 19806-900, Brasil
jtrpaes@yahoo.com.br

Recebido em 01/Out/2007
Versão final reapresentada em 09/Abr/2008
Aprovado em 24/Abr/2008

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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