RESENHAS BOOK REVIEWS
Luiza Garnelo
Centro de Pesquisas Leônidas & Maria Deane, Fundação Oswaldo Cruz/Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Brasil. luiza.garnelo@amazonia.fiocruz.br
MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE: PROMOÇÃO, VIGILÂNCIA E SAÚDE DA FAMÍLIA. Teixeira CF, Solla JP. Salvador: Edufba; 2006. 236 pp.
ISBN 85-232-0400-8
O livro Modelo de Atenção à Saúde: Promoção, Vigilância e Saúde da Família estimula o diálogo entre gestores, pesquisadores, educadores e o público em geral, ao buscar apreender os diversos pontos de vista que subjazem a definição de necessidades de saúde em populações humanas. Perguntas recorrentes na vida acadêmica, sobre como obter maior efetividade e impacto em políticas sociais que demandem enfoques totalizantes e integradores; ou, se há consenso sobre a necessidade de complexar os objetos e as estratégias de intervenção, também surgem como temas tratados neste texto e avançam para a análise de como tais coisas podem ser feitas na vida cotidiana.
A obra proporciona ao leitor uma excelente oportunidade para estabelecer contato com as reflexões de pesquisadores experientes, que acumularam grande vivência nos debates desse grande movimento social que denominamos Reforma Sanitária. Os autores entrelaçam tendências passadas e presentes no processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS), direcionando um aguçado olhar sobre trajetórias já percorridas por aqueles comprometidos com a construção das políticas de bem-estar social. Também atualizam suas análises, correlacionando dimensões fundantes do campo sanitário com temáticas recém incorporadas ao cadinho da saúde pública brasileira, tais como as políticas públicas saudáveis, a integralidade do cuidado e o acolhimento da população atendida. Tais temas são objeto de reflexão teórica e operacional nos diversos capítulos, compondo um esforço de apreendê-los como estratégias de reordenamento das práticas sanitárias no SUS e como expressão concreta de matrizes teóricas mais amplas, como o planejamento estratégico-situacional de Matus e o materialismo histórico, que operam como pano de fundo de toda a discussão.
Dentre os objetivos explicitados, ou não, pelos autores, destacam-se a busca de delimitar o debate conceitual que define as opções técnicas e políticas disponíveis para os gestores do SUS; o questionamento sobre os limites e avanços da universalização do acesso da população aos serviços e sobre a capacidade do sistema em contribuir para a eqüidade ao promover uma distribuição efetiva de recursos e serviços de saúde à população que deles necessite. Outra questão relevante formulada na obra é a tentativa de dimensionar se as práticas sanitárias e os serviços organizados e disponíveis no SUS têm se aproximado (ou não) da imagem-objetivo - universal, integral e complexa - desenhada na política oficial de saúde. Ao longo dos capítulos observa-se que os autores identificam avanços e lacunas nessa trajetória, falando em favor de preservar as conquistas e de redobrar os esforços para aprimorar o já alcançado.
O livro é composto de sete capítulos, oriundos de textos produzidos entre 2003 e 2005, com a finalidade de ofertar apoio a atividades pedagógicas, políticas e operacionais ligadas à construção do SUS brasileiro. Elaborados, como dizem os autores, no "calor do debate", eles refletem momentos diversos desse processo, e se unem na busca de descrever a trajetória até aqui percorrida e no desejo de identificar alternativas que aprimorem a atuação do setor saúde. A disparidade de procedência dos escritos - não concebidos originalmente como obra única - associada, talvez, à necessidade de reafirmar certos princípios básicos da discussão nos fóruns para os quais foram produzidos, gerou certo grau de repetição quando os textos foram reunidos num único volume. O leitor não deve, porém, desanimar, pois a relevância da temática supera tal limite da obra.
Ao longo dos capítulos sucedem-se as análises dos diversos modelos de atenção à saúde praticados no país, aí incluídos os que persistem desde os primórdios da Reforma Sanitária. Esses são correlacionados com as configurações mais complexas atualmente disponíveis. Um dos temas exaustivamente explorados na obra é o debate das idéias aglutinadas em torno da proposta de Promoção à Saúde, com seus respectivos desdobramentos (Políticas Públicas Saudáveis, Vigilância em Saúde e Intersetorialidade, entre outros), e dos processos de planejamento e gestão, necessários à operacionalização das Políticas Públicas Saudáveis. A análise compreende não apenas um balanço dos limites e avanços obtidos com base nesses conceitos, mas também percorre suas interfaces (reais e potenciais) com setores da vida social que operam como determinantes e condicionantes das condições de saúde.
Além de se debruçar sobre os fundamentos conceituais e metodológicos da proposta de Políticas Públicas Saudáveis, os autores também se dedicam a explorar sua aplicação em ações de controle de agravos de relevância epidemiológica. Identificam a potencial contribuição dessas estratégias para geração e incorporação de tecnologias "leves" capazes de redimensionar as práticas sanitárias e os meios de trabalho atualmente disponíveis na rede de serviços do SUS. Preconizam, porém, uma incorporação crítica, que ressignifique a noção original de Políticas Públicas Saudáveis e se mostre capaz de articular esta proposta a um conceito ampliado de saúde e ao ideário da política que estruturou e organizou o SUS. No entendimento dos autores, as políticas de promoção à saúde ofertam novas perspectivas às propostas à Reforma Sanitária, pois contribuem com inovações organizacionais das ações de saúde, que não constavam na agenda inicial de prioridades desta iniciativa.
Para Teixeira & Solla, as propostas da promoção à saúde também reafirmam os compromissos com os princípios de solidariedade, participação e promoção da eqüidade entre os cidadãos, que constituem o cerne da política de saúde no Brasil. Para eles, em síntese, os avanços trazidos pelo conceito de promoção à saúde seriam passíveis de absorção tanto no plano geral dos princípios constitutivos do SUS quanto no nível microssociológico no qual se produzem as relações entre usuários e profissionais de saúde, imprescindíveis à humanização e à melhoria da qualidade do cuidado.
O resultado final desse esforço surge como uma grande mandala, na qual diversas nuances dos polissêmicos conceitos estudados no livro são articuladas entre si, formando uma rede de eventos que se interpenetram a cada capítulo; desta forma os autores buscam concretizar a ambição de empreender uma abordagem multirreferencial dos problemas de saúde.
Tais análises são recorrentemente cotejadas com a temática dos processos de trabalho em saúde na atenção primária à saúde. Já a Estratégia Saúde da Família é tratada pelos autores como uma iniciativa potencialmente capaz de reordenar o modelo de atenção vigente nas unidades de saúde, indelevelmente marcado pela prioridade à demanda espontânea e atendimento ao sintoma. Sem desprezar a análise de como as instituições ordenam e configuram os modos de prestar os serviços, os autores igualmente passeiam pela temática das interações possíveis/desejáveis/existentes entre os diversos tipos de unidades prestadoras de serviços de saúde e o âmbito das ações efetivamente ofertadas aos usuários do sistema.
Diversas facetas dessa questão são exploradas, ora do ponto de vista macroestrutural, ora do ponto de vista interno e microrrelacional das ações desenvolvidas nas unidades de saúde. Teixeira & Solla dissecam as propostas de vigilância em saúde, modelo em defesa da vida, atenção programática, saúde da família e outros modos de organização da atenção, explicitando condições que possibilitam redimensionar as relações entre trabalhadores e usuários do SUS. Nessa trajetória empreendem um bosquejo sobre diversos conceitos e propostas que surgiram ao longo do processo de implantação/implementação do SUS no Brasil. Demonstram correlações que eles mantêm entre si e trazem à tona insuspeitadas interfaces; mostram como teorias e práticas, que fundamentam e coexistem na reforma sanitária brasileira, têm graus diversos de articulação, formando uma totalidade sistêmica cujo objetivo final visa à melhoria da qualidade de vida e da atenção à saúde.
Por meio do mote desatando nós e criando laços problematizam pontos de estrangulamento (os tais nós críticos), lacunas e dificuldades para alcançar a imagem-objetivo traçada para o SUS. Exploram as facetas intrínsecas aos conceitos e doutrinas, inclusos nas propostas e dificuldades descritas; demonstram a existência de redes de relações que, por um lado, expressam a natureza das dificuldades de reestruturação do projeto da Reforma Sanitária no país e, por outro, propiciam novas relações e potencialidades (os supracitados laços) que permaneceriam despercebidos, não fora a análise empreendida pelos autores. Nesse último caso eles desvelam que os limites de medidas inovadoras já implementadas no SUS estão intimamente ligados à profunda segmentação do cuidado, que não é percebido e nem executado em perspectiva sistêmica. Ao contrário, sua oferta reproduz o modelo fragmentário da teoria de doença que implicitamente orienta a atenção à saúde corriqueiramente fornecida à população. Em conseqüência, os autores propõem que os eixos da mudança na saúde sejam forjados com base na valorização e reflexão sobre experiências concretas em nível local. Trata-se de uma chave que justifica a estrutura dos últimos capítulos do livro, dedicados à análise de experiências municipais pautadas pelas premissas que fundamentam a obra.
Os últimos capítulos do livro, e em particular os dois últimos, são dedicados ao escrutínio de situações particulares de atuação em sistemas e serviços locais de saúde, ainda que sem perder de vista o marco referencial dos princípios gerais que ordenam as políticas de saúde. No capítulo denominado Modelo de Atenção à Saúde no SUS, Teixeira & Solla repetem o procedimento de historiar a origem e desenvolvimento das estratégias de cuidados ofertados no SUS, passando em seguida para uma análise de processo e de resultados em níveis operativos do sistema, tais como os sistemas locais de saúde (SILOS) e as unidades de saúde da família (USF).
Debruçam-se sobre as características da prática clínica em contexto de atenção primária à saúde, a ser orientada pela incorporação de inteligência epidemiológica nas ações rotineiras. Aprofundam a reflexão sobre a estratégia saúde da família, cujas práticas de atenção programática e de vigilância em saúde são mapeadas. No sexto capítulo surge um relato de caso que descreve o processo de implantação da gestão plena no Município de Vitória da Conquista, no Estado da Bahia. Os autores descrevem uma trajetória pontuada por dificuldades e sucessos na busca de implantar um SUS de qualidade. Dentre os temas trabalhados no capítulo, destacamos a busca de apoio popular para sustentação política da iniciativa e a produção de estratégias de gestão da rede de atenção hospitalar (própria e contratada). São experiências que exemplificam as reformulações necessárias para produzir uma interação efetiva entre a rede de referência e a atenção básica, e atender às necessidades de saúde da população.
O relato da implantação da Estratégia Saúde da Família nesse município tem um tom otimista; descreve iniciativas inovadoras e capazes de gerar consensos sociais em torno da consolidação do processo de municipalização. Porém, Teixeira & Solla não deixam de demonstrar as dificuldades em efetivar as diretrizes da Reforma Sanitária nos planos locais do SUS e em concretizar princípios como a integralidade, a intersetorialidade e a territorialização no dia-a-dia dos serviços. Entretanto, conforme dizem em outra passagem do livro, ainda que avanços nada desprezíveis tenham sido obtidos, estes apenas "arranham" o modelo hegemônico de atenção.
O último capítulo dedica-se ao tema do acolhimento no sistema municipal de saúde de Vitória da Conquista; nele o conceito é tratado como mais uma das ferramentas de conversão do modelo assistencial em saúde no país. Aqui, os autores retomam a estratégia do relato de caso para continuar a explanação sobre congruências e interfaces entre promoção à saúde, vigilância da saúde, saúde da família e acolhimento, igualmente deslindando as dimensões teóricas e operacionais que podem interligá-las, e que são habitualmente enfocadas de modo isolado ou fragmentariamente, algo que limita sua potencialidade conceitual.
Ao longo de toda a obra os autores chamam a atenção para a inadequação das abordagens parciais que tratam da conversão dos modelos de assistência que coexistem no país e se empenham em articulá-las numa teia de significados, densamente povoada de inter-relações produzidas entre as diversas facetas desta temática. Assim procedendo, colocam à disposição do leitor uma perspectiva totalizante, pouco explorada na literatura especializada. Oferecem uma visão sistêmica e processual desse conjunto de iniciativas que regem a desejada reorientação das políticas de saúde que coexistem em território brasileiro, e convidam o leitor a percorrer com eles essa utopia concretizada em situações cotidianas na vida dos cidadãos.