ARTIGO ARTICLE
Acesso a medicamentos de uso contínuo em adultos e idosos nas regiões Sul e Nordeste do Brasil
Access to continuous-use medication among adults and the elderly in South and Northeast Brazil
Vera Maria Vieira PanizI; Anaclaudia Gastal FassaI; Luiz Augusto FacchiniI; Andréa Dâmaso BertoldiII; Roberto Xavier PicciniI; Elaine TomasiIII, IV; Elaine ThuméV; Denise Silva da SilveiraI, IV; Fernando Vinholes SiqueiraI, III; Maria Aparecida RodriguesI, IV
IFaculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil
IIPrograma de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil
IIIUniversidade Católica de Pelotas, Pelotas, Brasil
IVSecretaria Municipal de Saúde e Bem-Estar de Pelotas, Pelotas, Brasil
VFaculdade de Enfermagem e Obstetrícia, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo foi avaliar a prevalência de acesso a medicamentos de uso contínuo para tratar hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e/ou problemas de saúde mental e fatores associados. Foi desenvolvido estudo transversal no âmbito do Projeto de Expansão e Consolidação Saúde da Família (PROESF) em 41 municípios do Sul e Nordeste do Brasil. A amostra incluiu 4.060 adultos e 4.003 idosos residentes na área das unidades básicas de saúde (UBS). A prevalência de acesso a medicamentos de uso contínuo em adultos foi de 81% e em idosos, 87%. O maior acesso entre os adultos da Região Sul esteve associado com maior idade, melhor nível econômico, tipo de morbidade crônica e participação em grupos na UBS; entre os adultos do Nordeste, com hipertensão arterial sistêmica exclusiva ou combinada com diabetes mellitus; entre os idosos do Sul, com maior escolaridade; entre os idosos do Nordeste, com maior idade, maior escolaridade, não fumantes, vínculo com a UBS e modelo de atenção Programa Saúde da Família (PSF). Os resultados revelam importante iniqüidade em saúde, reforçando a necessidade de políticas para ampliar o acesso principalmente para populações de menor poder aquisitivo.
Medicamentos de Uso Contínuo; Uso de Medicamentos; Hipertensão; Diabetes Mellitus; Saúde Mental
ABSTRACT
This study aimed to evaluate the prevalence of access to continuous-use medicines for treatment of systemic arterial hypertension, diabetes mellitus, and/or mental health problems, and the associated factors. A cross-sectional study was developed under the Project for the Expansion and Consolidation of the Family Health Program in 41 cities in South and Northeast Brazil. The sample included 4,060 adults and 4,003 elderly living in the coverage areas for primary health care clinics. Prevalence of access to continuous-use medicines was 81% in non-elderly adults and 87% in the elderly. Greater access was associated with the following factors: adults in South Brazil older age, higher socioeconomic status, type of chronic disease, and participation in support groups in the primary health clinic area; adults in the Northeast systemic arterial hypertension with or without diabetes mellitus; elderly in the South more schooling; and elderly in the Northeast older age, more schooling, non-smoking, enrolment in the primary health care clinic coverage area, and the family health care model. The results show important inequity in health, reinforcing the need for policies to expand access, mainly for lower-income population groups.
Drug Continuous Use; Drug Utilization; Hypertension; Diabetes Mellitus; Mental Health
Introdução
O acesso a medicamentos é um indicador da qualidade e resolutividade do sistema de saúde 1 e um determinante importante do cumprimento do tratamento prescrito. A literatura indica que a falta de acesso é uma causa freqüente de retorno de pacientes aos serviços de saúde 2.
Os medicamentos de uso contínuo assumem grande importância no tratamento de doenças crônico-degenerativas, como a hipertensão arterial sistêmica e o diabetes mellitus, bem como de problemas de saúde mental, morbidades estas que apresentam prevalências crescentes no Brasil em decorrência do envelhecimento populacional 3. A falta de acesso a medicamentos para tratamento dessas enfermidades pode levar ao agravamento do quadro e aumentar os gastos com a atenção secundária e terciária 2. Considerando-se que a maioria da população atendida no serviço público de saúde é de baixa renda, a obtenção gratuita é, freqüentemente, a única alternativa de acesso ao medicamento. Nesse contexto, o sistema público de saúde, e em particular o Programa Saúde da Família (PSF), desenvolve ações que visam a acompanhar de forma sistemática os indivíduos com essas morbidades e promover o cuidado integral, incluindo o acesso a medicamentos essenciais 4.
No Brasil, dados populacionais sobre o acesso a medicamentos são raros. A maioria dos estudos avalia o acesso com base na proporção de medicamentos prescritos que o usuário conseguiu obter ou que foi fornecido no serviço de saúde utilizado 4,5,6,7,8. Dois inquéritos populacionais de abrangência nacional estudaram o acesso a medicamentos receitados na última consulta médica 4,9. As prevalências de acesso observadas foram de 87% e 89,6%, sendo a última restrita a medicamentos para tratar problemas agudos de saúde. Na Região Sul do Brasil, também foi realizado estudo sobre o acesso a medicamentos na população coberta pelo PSF, revelando prevalência mais elevada (96,4%) 10.
Apesar de alguns estudos avaliarem a prevalência de acesso a medicamentos por meio de inquéritos domiciliares, a metodologia utilizada varia, e os fatores associados ao acesso não foram investigados. Os estudos de base populacional sobre a utilização de medicamentos mostram associação com sexo 2,11,12,13,14, idade 2,11,12,13,14, cor da pele 11, nível econômico 11, renda familiar 2, tabagismo 11, autopercepção de saúde 11, doença crônica 2 e número de consultas médicas 2,12. Entretanto, diferenças sócio-econômicas e na utilização de serviços de saúde nas populações estudadas podem justificar os determinantes diferentes presentes no acesso a medicamentos.
Este estudo avalia a prevalência de acesso a medicamentos de uso contínuo para tratar hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e problemas de saúde mental em adultos e idosos, residentes na área de abrangência das unidades básicas de saúde (UBS) das regiões Sul e Nordeste do Brasil. Também examina a associação entre o acesso a medicamentos e características demográficas e sócio-econômicas; tabagismo; indicadores da condição de saúde e de utilização de serviços de saúde; modelo de atenção e número de medicamentos referidos. Diferentemente dos estudos realizados em serviços de saúde, a abordagem populacional permite identificar dificuldades de acesso a medicamentos mesmo em indivíduos que não utilizam o serviço.
Portanto, esta pesquisa pode embasar políticas que visem a ampliar o acesso a medicamentos e a eqüidade no atendimento de portadores de doenças crônicas que usam medicamentos continuamente.
Metodologia
Os dados desta pesquisa são oriundos do estudo de linha de base do Projeto de Expansão e Consolidação Saúde da Família (PROESF) nos 41 municípios com mais de 100 mil habitantes dos lotes 2 das regiões Sul e Nordeste do Brasil. Compõem o lote 2 da Região Sul os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina e o lote 2 da Região Nordeste os estados de Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte 15.
Trata-se de um estudo transversal realizado no período de março a agosto de 2005. A amostra está constituída por adultos com 30 a 64 anos e idosos com 65 anos ou mais, residentes na área de abrangência das UBS. Indivíduos incapacitados de responder o questionário foram excluídos. O processo de amostragem foi realizado em múltiplos estágios. A amostra de UBS foi proporcional ao tamanho da rede básica de saúde de cada município e orientou a seleção da amostra populacional, sendo o ponto inicial da amostragem sistemática. Assim, sorteou-se aleatoriamente uma amostra estratificada, segundo modelo assistencial, de 120 UBS de cada lote, totalizando 240 UBS. Estimou-se entrevistar 2.100 indivíduos de cada grupo populacional por lote. Dividindo-se este número pelo total de UBS por lote, constatou-se a necessidade de entrevistar aproximadamente 18 indivíduos de cada grupo populacional na área das UBS.
Os entrevistadores partiram das UBS selecionadas, visitando domicílios consecutivos e entrevistando um único grupo populacional e um único indivíduo em cada domicílio, alternando o sexo. Nos domicílios em que se encontraram dois adultos, o elegível era o mais velho, procedendo da mesma forma para os idosos. A metodologia e detalhamento do plano amostral estão descritos em outras publicações 16,17,18.
As entrevistas domiciliares foram realizadas por 15 supervisores previamente treinados, utilizando-se um questionário estruturado e pré-codificado, exceto para as questões relativas aos medicamentos. Os entrevistados foram questionados sobre a presença de hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e/ou problema de saúde mental. Em caso afirmativo, perguntava-se sobre a necessidade de utilização de medicamento de uso contínuo, por indicação médica, para tratar as morbidades referidas, caracterizando qual o medicamento e para qual morbidade este era necessário. Medicamento de uso contínuo foi definido como aquele que o indivíduo precisa usar todos os dias, ou quase todos, sem data para parar. A fim de identificar melhor o medicamento, solicitou-se, quando possível, apresentação da receita, embalagem e/ou bula. Para cada medicamento referido, os indivíduos eram questionados sobre o acesso, mediante a pergunta: "No último mês o(a) Sr.(a) deixou de usar o(a) [nome do medicamento] que precisava?". Essa pergunta era feita também a indivíduos que não lembravam o nome do medicamento, mas sabiam responder para qual morbidade ele era necessário.
Para a análise das prevalências de acesso e dos fatores associados, utilizou-se como denominador o número total de adultos e de idosos. O acesso a medicamentos foi definido como a obtenção de todos os medicamentos que o indivíduo referiu necessidade de uso contínuo para tratar as doenças crônicas investigadas. A obtenção parcial foi definida como falta de acesso, uma vez que o indivíduo não teve acesso a todo tratamento prescrito.
As variáveis independentes em estudo foram as demográficas sexo, idade (anos completos) e cor da pele (observada e classificada como branca, parda ou preta) e as sócio-econômicas escolaridade (anos completos de estudo) e nível econômico (cinco categorias conforme escore da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa ABEP) 19. Avaliou-se também o tabagismo (fumante indivíduos que fumavam mais de um cigarro por dia há mais de um mês , ex-fumante e não fumante). Como indicadores da condição de saúde, investigou-se a autopercepção de saúde (excelente, muito boa, boa, regular e ruim) e presença de doença crônica (hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e problemas de saúde mental ou combinações destas). Como indicadores de utilização de serviços de saúde, avaliou-se o vínculo com a UBS da área (ter realizado no mínimo duas consultas na UBS da área nos últimos seis meses para pelo menos uma doença crônica investigada) e a participação em grupos para tratar hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e/ou problemas de saúde mental (ter participado de um grupo no último ano). Foi investigado, ainda, o modelo de atenção da UBS (PSF ou tradicional) e número de medicamentos de uso contínuo necessários (um, dois, três, quatro ou mais).
O controle de qualidade foi realizado por telefone mediante aplicação de questionário reduzido, alcançando cerca de 6% da amostra 16. A análise de concordância foi obtida através do índice kappa. Os dados foram digitados no programa Epi Info 6.04 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos), e a análise dos dados foi realizada no programa Stata 9.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos).
A análise foi estratificada por grupo etário e região, uma vez que estas variáveis foram modificadores de efeito. A análise descritiva caracterizou a amostra de adultos e idosos conforme as variáveis investigadas e descreveu a prevalência de acesso a medicamentos (total, parcial e nenhum). A análise multivariada foi realizada através de regressão de Poisson com variância robusta, por tratar-se de um desfecho binário e freqüente. Foram utilizados os testes de Wald, para heterogeneidade de proporções, e de tendência linear, para variáveis ordinais, com descrição das razões de prevalências e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%).
A análise ajustada seguiu um modelo conceitual. O modelo proposto compreende quatro níveis de determinação. No nível distal, encontram-se as variáveis demográficas e sócio-econômicas; no segundo nível, está o tabagismo; no terceiro, os indicadores da condição de saúde; no quarto nível, os indicadores de utilização de serviços de saúde. Para controle de fatores de confusão, o efeito de cada preditor foi controlado para outras variáveis do mesmo nível ou superior, com valor p £ 0,2. O acesso a medicamentos foi analisado de forma dicotômica (sim = acesso total; não = acesso parcial ou nenhum acesso), e o efeito de delineamento amostral foi considerado nas análises.
Esta pesquisa foi aprovada pela Comissão de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Pelotas. Consentimentos livres e esclarecidos foram obtidos dos participantes antes da entrevista, garantindo o sigilo quanto à identidade, confidencialidade das informações, bem como o direito de não participar ou suspender a participação a qualquer momento.
Resultados
Foram entrevistados 4.060 adultos (1.940 no Sul; 2.120 no Nordeste) e 4.003 idosos (1.891 no Sul; 2.112 no Nordeste), correspondendo a 96,7% da amostra estimada para adultos (92,4% no Sul; 100% no Nordeste) e 95,3% para idosos (90,1% no Sul; 100% no Nordeste). Do total, 1.244 (30,6%) adultos e 2.706 (67,6%) idosos referiram ter hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e/ou problemas de saúde mental e necessitar de medicamento de uso contínuo para pelo menos uma das morbidades referidas. Estes grupos compõem a amostra deste estudo.
Tanto a amostra de adultos obtida no Sul (n = 618) e no Nordeste (n = 626) quanto a de idosos obtida no Sul (n = 1.290) e no Nordeste (n = 1.416) permitiram estimar uma prevalência de acesso a medicamentos de uso contínuo de 65%, com margem de erro de ± 4,0 pontos percentuais e nível de confiança de 95% para cada região estudada. Permitiram, ainda, detectar razões de prevalência de 1,15 ou maiores, com poder estatístico de 80%, utilizando-se um nível de confiança de 95%, prevalências de exposição entre 30%-70% e um efeito de delineamento de 1,43 para adultos e 1,14 para idosos.
A Tabela 1 descreve a amostra de adultos e idosos conforme região. Entre os adultos, a média de idade foi de 51 anos (desvio padrão DP = 8,7 no Sul e DP = 8,9 no Nordeste), sendo 70,4% no Sul e 63,6% no Nordeste do sexo feminino. Observou-se que a proporção de cor da pele parda ou preta foi de 22,2% no Sul e 50,6% no Nordeste. A média de escolaridade no Sul foi de 5,3 (DP = 3,8) e 13,8% não freqüentaram a escola, enquanto no Nordeste a média foi de 4,5 (DP = 4,3) e 32,4% não possuíam nenhum ano de estudo.
Quanto ao nível econômico, 22,4% dos adultos na Região Sul pertenciam ao estrato E, ao passo que, no Nordeste, o percentual neste estrato alcançava 42,8%. O tabagismo foi observado em 27,7% no Sul e 18,5% no Nordeste. A maioria percebeu sua saúde como regular ou ruim (66% no Sul; 78% no Nordeste). Quanto ao tipo de doença crônica, aproximadamente 75% eram hipertensos, metade referiu ter problemas de saúde mental e pouco menos de 20% eram diabéticos. Cerca de um quarto referiu ter problemas de saúde mental e hipertensão arterial sistêmica (Tabela 1).
Na população de adultos, verificou-se que, no Sul, 29% tinham vínculo com a UBS da área e 15,8% haviam participado de atividades de grupo; na Região Nordeste, por sua vez, os percentuais foram de 39,3% e 24,9%, respectivamente. Quanto ao modelo de atenção, 60% das UBS no Sul e 75,1% no Nordeste tinham PSF. Cerca de 70% necessitavam de até dois medicamentos para uso contínuo (Tabela 1).
Ainda na Tabela 1, pode ser observado que a prevalência de idosos com 75 anos ou mais foi de 38,6% na Região Sul e 44,2% na Região Nordeste. Verificou-se que a média de idade no Sul foi de 73 (DP = 6,4) e no Nordeste, 74 (DP = 7,0). A amostra apresentou 67,8% de mulheres no Sul e 64,6% no Nordeste. No Sul, 17,1% eram pardos ou pretos, enquanto no Nordeste esse percentual alcançou 42%. A proporção de indivíduos que não freqüentaram a escola foi de 40,4% no Sul e 63,2% no Nordeste. Observou-se que 32,5% dos idosos no Sul e 55,5% no Nordeste pertenciam ao nível econômico E. Na Região Sul, quase metade (48,3%) era tabagista ou ex-tabagista, enquanto na Região Nordeste o percentual atingiu 58,8%. A maioria percebeu sua saúde como regular ou ruim (68,1% no Sul; 72% no Nordeste). Com relação ao tipo de doença crônica, cerca de 90% relataram hipertensão arterial sistêmica isolada ou em combinação com outras morbidades estudadas. A presença de problemas de saúde mental foi relatada por cerca de 40% na Região Sul e 30% na Região Nordeste (Tabela 1).
Quanto à utilização da UBS da área, na Região Sul 34,8% dos idosos possuíam vínculo e 17,8% participaram de atividades de grupo; no Nordeste essas proporções foram de 36,9% e 24,2%, respectivamente. O percentual de modelo de atenção PSF correspondeu a 61,2% das UBS no Sul e 71,8% no Nordeste. Com relação à necessidade de medicamentos de uso contínuo, 30,5% na Região Sul e 15,8% na Região Nordeste necessitavam de, no mínimo, quatro medicamentos (Tabela 1).
Entre os adultos, a proporção de acesso a todos os medicamentos de uso contínuo foi de 81,2% (IC95%: 78,6-83,8), com efeito de delineamento de 1,43 e coeficiente de correlação intraclasse de 0,085. O acesso não apresentou diferença significativa entre as regiões (p = 0,069). Na população de idosos, a prevalência de acesso total foi de 87% (IC95%: 85,6-88,3), com efeito de delineamento de 1,14 e coeficiente de correlação intraclasse de 0,023. O acesso foi significativamente diferente entre as regiões (p = 0,002), sendo maior no Sul (89,2%) do que no Nordeste (85%) (Tabela 2).
A Tabela 3 apresenta a análise bruta e ajustada dos preditores do acesso a medicamentos de uso contínuo para adultos. Na Região Sul, após ajuste para fatores de confusão, idade e nível econômico apresentaram uma associação direta e significativa com o acesso. Doença crônica referida apresentou associação significativa com o desfecho, ocorrendo maior acesso para indivíduos que relataram hipertensão arterial sistêmica ou diabetes mellitus do que para aqueles que referiram problemas de saúde mental, com probabilidades de acesso de 24% e 26% maiores, respectivamente. Portadores de hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus combinadas não apresentaram associação com o acesso, ao passo que aqueles que referiram hipertensão arterial sistêmica em combinação com problemas de saúde mental ou outras combinações das morbidades estudadas apresentaram razão de prevalência igual a 1,16 e 1,20, respectivamente. A participação em grupos na UBS da área permaneceu associada significativamente ao desfecho (p = 0,028), aumentando em 9% a probabilidade de acesso.
Para os adultos da Região Nordeste (Tabela 3), na análise ajustada, apenas doença crônica permaneceu associada significativamente ao acesso a medicamentos de uso contínuo. Portadores de hipertensão arterial sistêmica exclusiva ou combinada com diabetes mellitus apresentaram 17% e 24% mais probabilidade de acesso, respectivamente.
Entre os idosos da Região Sul (Tabela 4), a análise ajustada mostrou um aumento linear significativo do acesso a medicamentos conforme a escolaridade; idosos com nove anos ou mais de estudo têm uma probabilidade 11% maior de acesso quando comparados àqueles com nenhum ano de estudo. Situação semelhante foi verificada no que se refere ao nível econômico, em que o acesso aumenta em direção aos estratos mais altos. Entretanto, após ajuste para sexo e escolaridade, a associação perde significância estatística.
Entre os idosos da Região Nordeste (Tabela 4), observou-se uma associação linear direta entre idade e acesso a medicamentos; neste caso, idosos com 80 anos ou mais apresentaram acesso 11% maior do que aqueles de 65-69 anos. O mesmo ocorreu com a escolaridade, idosos com nove anos ou mais de estudo têm uma probabilidade 14% maior de acesso quando comparados àqueles com nenhum ano de estudo. O acesso a medicamentos foi menor no grupo de fumantes, quando comparados àqueles que nunca fumaram. O vínculo com a UBS da área esteve associado a um maior acesso, bem como o modelo de atenção PSF, onde idosos atendidos por este programa apresentaram acesso 9% maior que os atendidos pelo modelo tradicional.
O índice kappa das variáveis idade, tabagismo, relato de hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus apresentou uma boa repetibilidade (kappa ³ 0,7).
Discussão
O estudo indica elevada prevalência de acesso a medicamentos de uso contínuo para tratar doenças crônicas em adultos e idosos. A prevalência de acesso ocorre de forma diferente no Sul e no Nordeste do Brasil, sendo significativamente maior para os idosos daquela região. Os fatores associados ao acesso também foram distintos conforme o grupo populacional investigado e região. Para os adultos da Região Sul, maior idade, melhor nível econômico, tipo de morbidade crônica e participação em grupos na UBS mostraram-se associados a um maior acesso a medicamentos de uso contínuo. Entre os adultos do Nordeste, somente o relato de hipertensão arterial sistêmica exclusiva ou combinada com diabetes mellitus esteve associado. Para os idosos da Região Sul, maior escolaridade se associou a um maior acesso a medicamentos de uso contínuo, enquanto, entre os idosos do Nordeste, as variáveis associadas foram maior idade, maior escolaridade, não fumantes, vínculo com a UBS e modelo de atenção PSF.
A amostra estudada é representativa da população residente na área de abrangência das UBS das regiões avaliadas, permitindo a generalização desses resultados para essa população. A independência entre os grupos populacionais investigados e a baixa densidade de indivíduos elegíveis em cada domicílio, incluindo mulheres e crianças 16, facilitou a distribuição da amostra na área de abrangência das UBS, minimizando as possibilidades de viés de seleção 16,17. O estudo teve baixo percentual de perdas em relação à amostra estimada para cada grupo populacional, reforçando sua validade interna.
Quanto ao período investigado, a maioria das pesquisas sobre uso de medicamentos utiliza um recordatório de 15 dias 2,10,11,13,20, entretanto este estudo investigou o acesso a medicamentos no último mês 14,21, por entender que capta melhor o acesso regular a medicamentos de uso contínuo. Para minimizar um possível viés de memória, foram adotados procedimentos padronizados para a coleta dos dados, que incluíram a solicitação de apresentação da receita, embalagem ou bula do medicamento referido. A estratégia parece ter sido bem-sucedida, uma vez que o número de medicamentos referidos por adultos e idosos está de acordo com a literatura sobre uso global de medicamentos 11. Além disso, foi apresentada receita, embalagem ou bula de mais da metade dos medicamentos a que os indivíduos não tiveram acesso.
Em virtude do delineamento transversal do estudo, a associação das variáveis indicadoras da utilização do serviço de saúde com o acesso a medicamentos de uso contínuo pode ter sido afetada pelo viés de causalidade reversa. A abordagem populacional utilizada possibilita estudar o acesso a medicamentos de uso contínuo em amostra de indivíduos, independentemente da realização de consultas médicas. Em face da escassez de estudos sobre acesso a medicamentos e das características metodológicas dos existentes, os resultados desta pesquisa serão comparados não somente com os estudos sobre acesso, mas também com aqueles sobre utilização de serviços de saúde e de medicamentos.
Prevalência de acesso a medicamentos de uso contínuo
No presente estudo, a prevalência de acesso a medicamentos de uso contínuo em idosos foi semelhante à dos estudos nacionais de base populacional 4,9, que encontraram uma prevalência de cerca de 87%, e inferior à dos estudos de Leyva-Flores et al. 5, no México, e à encontrada por Bertoldi 10, de cerca de 97%, em estudo realizado na Região Sul com população coberta por PSF. Entre os adultos, a prevalência encontrada foi inferior à dos estudos mencionados 4,5,9,10. Todavia, não se pode afirmar que esse acesso ocorra de forma regular, uma vez que uma parcela da população referiu acesso parcial ou nenhum acesso aos medicamentos de que necessitava no mês anterior à entrevista. Além disso, essas comparações devem ser feitas com cautela, por causa não só das especificidades das populações e faixas etárias investigadas, como também do período recordatório e indicação do medicamento.
A prevalência de acesso total para ambos os grupos populacionais avaliados foi maior na Região Sul (Tabela 2). A prevalência de acesso encontrada não distingue a proporção de medicamentos obtidos gratuitamente da proporção daqueles comprados. Um estudo na Região Sul em população coberta por PSF revelou que, do total de medicamentos usados para tratar doenças crônicas, 63% foram obtidos gratuitamente. Considerando somente os medicamentos usados para tratar hipertensão e diabetes, o fornecimento gratuito cobriu cerca de 80% dos medicamentos usados 10. As diferenças regionais observadas podem ser atribuídas ao fato de que, na Região Sul, a proporção de indivíduos pertencentes aos níveis econômicos A, B ou C, que mais freqüentemente podem comprar os medicamentos, foi maior.
Fatores associados ao acesso a medicamentos de uso contínuo em adultos
O maior acesso a medicamentos esteve associado ao aumento da idade somente para os adultos da Região Sul. Este achado pode estar relacionado, em parte, às desigualdades regionais na utilização de serviços de saúde. No Sul do Brasil, Dias-da-Costa & Facchini 22, após controlar para outras variáveis como necessidades em saúde, encontraram que as pessoas com 50 anos ou mais tinham 15% mais probabilidade de consultar. Dois estudos indicaram que, no Nordeste, a utilização de serviços de saúde é menor quando comparada à utilização no Sudeste 23,24. Este aspecto está intimamente relacionado a um maior acesso a medicamentos, uma vez que a necessidade de medicamento de uso contínuo é o motivo da consulta para cerca de 80% dos indivíduos com doença crônica 6, e mais da metade das consultas médicas resulta em prescrição de medicamentos 1,5,7,9.
O estudo mostrou que adultos da Região Sul com nível econômico mais alto apresentaram um maior acesso a medicamentos. Este achado deve-se à maior probabilidade de consultar 22 e consumir medicamentos 11 conforme melhora o nível econômico, reforçando a importância da capacidade aquisitiva do indivíduo na obtenção e manutenção do tratamento 25. No Nordeste, o nível econômico não apresentou associação com o desfecho, o que pode estar relacionado ao fato de a população avaliada ser mais pobre 16, dependendo em grande parte do fornecimento gratuito de medicamentos.
O tipo de morbidade crônica em adultos associou-se ao acesso a medicamentos nas duas regiões estudadas. Ao comparar as regiões, chama atenção a baixa prevalência de acesso dos indivíduos portadores de hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus na Região Sul, enquanto, no Nordeste, esta categoria apresentou significativamente mais acesso que os indivíduos com problemas de saúde mental. Isso parece indicar uma abordagem diferenciada do programa HIPERDIA (Programa Nacional de Assistência Farmacêutica para Hipertensão Arterial e Diabetes Mellitus). Neste caso, no Nordeste, onde a população tem menor renda, as prescrições seriam mais restritas aos medicamentos fornecidos por este programa, ao passo que, no Sul, principalmente no caso de o indivíduo apresentar ambas as morbidades, em que os medicamentos fornecidos podem não ser os mais adequados, a prescrição não seria tão restrita, dependendo da compra, justificando um menor acesso. Além disso, há indícios de que o PSF tem melhor desempenho quanto à disponibilidade de consultas médicas 26 e distribuição de medicamentos 27 que o modelo tradicional. Neste estudo, a cobertura do PSF foi maior na Região Nordeste.
A participação em grupos na UBS da área esteve associada a um maior acesso entre os adultos da Região Sul, perdendo a significância estatística entre os adultos da Região Nordeste. É provável que este achado esteja relacionado aos diferentes procedimentos utilizados pelas unidades quanto à participação em grupos, prescrição e fornecimento de medicamentos de uso contínuo, conforme o modelo de atenção. Colombo et al. 28 evidenciaram que, nas UBS/PSF, existe a "receita de uso contínuo", fornecida com validade de seis meses, para pacientes com controle adequado de doenças crônicas. Nesse período, o fornecimento dos medicamentos é realizado pelos auxiliares de enfermagem, sem a necessidade de nova consulta médica para emissão de receita e obtenção do medicamento 28. Contudo, essa associação pode estar afetada por causalidade reversa, uma vez que o acesso pode ser preditor da participação em grupos na UBS.
Fatores associados ao acesso a medicamentos de uso contínuo em idosos
Entre os idosos da Região Nordeste, o acesso a medicamentos aumentou conforme a idade, elevando-se a partir dos 75 anos, enquanto, no Sul, a idade não se associou com o acesso. O efeito do aumento da idade sobre a maior utilização de medicamentos é sustentado por vários estudos 2,11,13,20,25,29, dois deles realizados com idosos da Região Nordeste 2,20, onde um autor verificou que o consumo acentua-se a partir dos 75 anos 20. Esse quadro pode ser causado pelo aumento do número de doenças e complicações decorrentes da idade, pelo aumento de visitas a um ou mais médicos e pela necessidade de utilização de combinações medicamentosas 25. A ausência de associação na Região Sul pode ser atribuída à elevada prevalência de acesso mesmo nas categorias de menor idade.
A escolaridade esteve diretamente associada a um maior acesso a medicamentos para idosos nas duas regiões. Essa tendência não é consistente com a literatura nacional sobre a utilização de medicamentos 2,11. No entanto, a literatura relaciona a intensidade e o modo de utilização de serviços com o nível de conhecimento dos indivíduos sobre a saúde e sobre a rede de serviços 30, sendo a escolaridade um preditor do maior número de consultas médicas 31. Assim, o efeito da escolaridade sobre o acesso a medicamentos pode indicar que indivíduos com maior grau de instrução percebem melhor suas necessidades em saúde, buscam mais assistência e têm maior grau de autonomia na busca de redes alternativas para atender suas necessidades em saúde de forma geral, bem como aquelas relativas ao acesso a medicamentos 30.
O acesso a medicamentos foi maior no grupo de idosos não fumantes da Região Nordeste. O tabagismo não foi avaliado como um determinante do acesso, mas sim como um marcador de comportamento. Um estudo no Sul do Brasil encontrou maior prevalência de utilização de medicamentos entre os ex-fumantes 11. Outro estudo na mesma região encontrou maior prevalência de uso de psicofármacos entre os fumantes 29. Contudo, é possível que o fato de não fumar seja um marcador de conhecimentos sobre hábitos e comportamentos saudáveis, como a realização de consultas médica preventivas, busca de tratamento adequado para doenças crônicas e a priorização do acesso aos medicamentos necessários. A falta de associação na Região Sul pode indicar que, especificamente no que se refere a buscar tratamento, mesmo os fumantes dessa região o fazem.
O vínculo com a UBS e com o modelo de atenção PSF associou-se a maior acesso a medicamentos somente para idosos da Região Nordeste, reforçando os achados de um estudo de avaliação do PSF que apontou para o impacto positivo do programa em áreas onde havia um grande déficit de serviços básicos de saúde, sobretudo nessa região do país 32. Quanto ao Sul, nossos achados contrariam os de um estudo realizado em áreas cobertas por PSF nessa região, o qual revelou um alto acesso a medicamentos por parte da população que é coberta pelo programa e que utiliza o serviço, revelando que 90% dos medicamentos prescritos pelos médicos do PSF foram fornecidos gratuitamente 10. Entretanto, esse percentual não foi restrito a idosos ou a problemas crônicos de saúde, dificultando a comparabilidade. A falta de associação entre o acesso a medicamentos no Sul e vínculo com a UBS e modelo de atenção pode indicar limitada disponibilidade de medicamentos de uso contínuo nas UBS dessa região, observada também em outros estudos 6,8.
Em resumo, os resultados deste trabalho mostram que, de maneira geral, o acesso a medicamentos de uso contínuo é muito semelhante ao observado em outros estudos 4,9, apesar das distintas metodologias empregadas. Todavia, verificou-se que o acesso total aos medicamentos de uso contínuo foi menor na Região Nordeste, independentemente do grupo etário. Este achado é preocupante, pois demonstra iniqüidade no acesso a medicamentos, considerando que a maioria da população avaliada nessa região pertence aos estratos econômicos D e E, dependendo basicamente, portanto, do setor público para a obtenção de medicamentos.
Houve uma participação importante dos fatores sócio-econômicos no acesso para a Região Sul e do modelo de atenção para o Nordeste, embora a maior extensão de cobertura de UBS/PSF nesta região não tenha resultado em uma prevalência de acesso mais elevada que no Sul. Este resultado indica que os princípios deste programa, fundamentados na prestação de assistência universal, equânime e, acima de tudo, resolutiva à população adstrita, podem estar comprometidos pela falta de medicamentos de fornecimento gratuito.
Em virtude disso, preocupa não somente o fato de que a população que não tem acesso a medicamentos apresente altas necessidades em saúde (menor escolaridade, menor nível econômico, sem vínculo com a UBS da área e portadores de problemas de saúde mental), como também as dificuldades que o grupo que teve acesso precisou enfrentar para obter os medicamentos de que necessitava.
O acesso a medicamentos muitas vezes se dá pela compra destes, acarretando altos gastos para os indivíduos, comprometendo, inclusive, necessidades básicas. Esse aspecto aponta para uma importante limitação de programas como o HIPERDIA, de Medicamentos para Saúde Mental e de Medicamentos para o PSF, criados para garantir o fornecimento gratuito de medicamentos, de forma regular e sistemática, aos pacientes captados por esses programas 33. Tais medicamentos são considerados essenciais pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 33 e deveriam estar disponíveis em quantidade suficiente para atender a população adstrita às UBS. No entanto, a disponibilidade de medicamentos no setor público é limitada, e é possível que um medicamento relevante para tratar problemas crônicos esteja indisponível em cerca de um quarto do ano 4. Isso compromete o acesso regular a medicamentos de uso contínuo, principalmente para a população de menor poder aquisitivo, e reforça a necessidade de políticas neste país para melhorar o acesso da população a esses medicamentos. O papel do fornecimento gratuito no acesso a medicamentos será mais bem avaliado em análises futuras neste mesmo banco de dados. Seria importante, também, realizar novos estudos de base populacional sobre acesso a medicamentos, a fim de poder avaliar a consistência dos achados.
Colaboradores
V. M. V. Paniz participou da revisão de literatura, elaboração do projeto e instrumentos de coleta de dados, treinamento dos supervisores, controle de qualidade, processamento e análise dos dados, redação do artigo final. A. G. Fassa e A. D. Bertoldi colaboraram na elaboração do projeto, análise dos dados e redação do artigo final. L. A. Facchini, R. X. Piccini, E. Tomasi, E. Thumé e D. S. Silveira participaram da concepção da pesquisa, elaboração dos instrumentos, coordenação do trabalho de campo e preparação do banco de dados. F. V. Siqueira coordenou o trabalho de campo e participou da elaboração dos instrumentos. M. A. Rodrigues contribuiu na elaboração dos instrumentos e do processamento dos dados. Todos os autores participaram da revisão do artigo final.
Agradecimentos
Este trabalho contou com o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e integra o Componente 3 do Projeto de Expansão e Consolidação Saúde da Família (PROESF), financiado pelo Ministério da Saúde e Banco Mundial.
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Correspondência:
V. M. V. Paniz
Programa de Pós-graduação em Epidemiologia
Faculdade de Medicina
Universidade Federal de Pelotas
Av. Duque de Caxias 250, Pelotas
RS 96030-002, Brasil
vpvieira@terra.com.br
Recebido em 05/Mar/2006
Versão final reapresentada em 14/Jun/2007
Aprovado em 30/Jul/2007