ARTIGO ARTICLE
Utilização de serviços ambulatoriais de saúde em Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil: alguns fatores relacionados com as consultas médicas acima da média
Use of outpatient services in Pelotas, Rio Grande do Sul State, Brazil: factors related to above-average number of physician visits
Juvenal Soares Dias-da-CostaI, II; Maria Teresa Anselmo OlintoII; Denise Petrucci GiganteIII; Ana Maria Baptista MenezesI; Silvia MacedoI; Tiago DaltoéI; Iná da Silva dos SantosI; Sandra Costa FuchsIV
IFaculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil
IIPrograma de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil
IIIFaculdade de Nutrição, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil
IVFaculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil
RESUMO
Por meio de estudo transversal de base populacional, incluindo pessoas de ambos os sexos, de 20 a 69 anos, residentes na zona urbana de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, objetivou-se verificar características associadas a consultas médicas ambulatoriais acima da média. A média de consultas, com médico, no último ano foi 3,2, com desvio padrão 5,5. A análise foi realizada considerando-se dois desfechos: indivíduos com mais de oito consultas médicas por ano (um desvio padrão acima da média); e mais de 14 consultas (dois desvios padrões acima da média). Entre 1.962 pessoas, 183 (9,3%) consultaram mais que oito vezes durante o ano. A regressão logística mostrou que estavam associadas as variáveis: sexo, idade, diabetes mellitus, hipertensão arterial, bronquite crônica, distúrbios psiquiátricos menores e hospitalizações no último ano. Encontraram-se 57 (2,9%) indivíduos com mais de quatorze consultas médicas durante o ano. Na regressão logística, foram encontradas diferenças para sexo, hipertensão arterial, distúrbios psiquiátricos menores e hospitalizações no último ano. A elevada procura por serviços de saúde nem sempre significa inadequação, e sua restrição pode resultar em políticas que restrinjam o acesso aos cuidados, implicando sofrimento para pacientes em condições graves.
Mau Uso de Serviços de Saúde; Assistência Ambulatorial; Serviços de Saúde
ABSTRACT
This cross-sectional, population-based study including males and females 20 to 69 years of age from the urban area of Pelotas, Rio Grande do Sul State, Brazil, aimed to verify characteristics associated with above-average number of medical consultations. The mean number of physician consultations in the previous year was 3.2, with a standard deviation of 5.5. The analysis considered two outcomes: individuals with more than eight physician visits per year (one SD above the mean) and more than 14 consultations (two SD above the mean). In the sample of 1,962 individuals, 183 (9.3%) reported more than eight physician consultations in the previous year. Logistic regression compared the outcomes with the following variables: sex, age, diabetes mellitus, hypertension, chronic bronchitis, minor psychiatric disorders, and hospitalization in the previous year. There were 57 individuals (2.9%) with more than 14 consultations during the year. Logistic regression showed significant differences for sex, hypertension, minor psychiatric disorders, and hospitalization in the previous year. The high demand does not always mean inadequate health services, and restricting the demand could result in policies that limit access to care, causing suffering to patients with serious conditions.
Health Services Misuse; Ambulatory Care; Health Services
Introdução
Pelotas é uma cidade com cerca de 320 mil habitantes, situada na região sul do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A cidade conta com uma extensa rede de serviços ambulatoriais públicos, contratados e privados.
A qualidade da atenção à saúde para populações pode ser constituída pelo acesso facilitado a cuidados efetivos, com bases equânimes e com um custo suportável pela comunidade 1.
Estudos epidemiológicos, de base populacional, realizados em Pelotas têm mostrado que a expansão dos serviços de saúde ocorrida nos últimos vinte anos tem garantido facilidades de acesso à atenção básica 2,3. Esses estudos mostraram que não havia diferença, quanto ao número médio de consultas médicas anuais, entre pessoas classificadas nas categorias das diferentes variáveis que exploraram classe social. Contudo, em Pelotas, pela ausência de mecanismos de regionalização e hierarquização no sistema municipal de saúde é possível que um paciente, consulte com diferentes médicos ou serviços, pela mesma queixa em um mesmo episódio, caracterizando o que a literatura denomina de "doctor shoppers" 4.
Entre as possíveis conseqüências negativas apontadas para as pessoas que consultam muito com médicos, pode-se citar a possibilidade de receberem cuidados inadequados. Além disso, do ponto de vista do sistema de saúde, a elevação do número de consultas médicas pode implicar gastos individuais elevados com desperdício de recursos. Por outro lado, estudos epidemiológicos realizados em Pelotas têm demonstrado que as pessoas com maior número de contatos com serviços de saúde recebem mais ações preventivas 5,6, uma conseqüência indiscutivelmente positiva.
Assim, este estudo tem como objetivo verificar as características das pessoas de 20 a 69 anos, residentes na zona urbana de Pelotas, que consultam mais do que a média com médico em serviços ambulatoriais.
Materiais e métodos
Realizou-se um estudo transversal, de base populacional, envolvendo diversos aspectos relacionados com a saúde da população adulta, de 20 a 69 anos, residente na zona urbana da cidade de Pelotas. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
O tamanho da amostra foi calculado por meio da estimativa de diversas prevalências exploradas pelo projeto. Utilizaram-se como parâmetros poder de 80%, erro alfa de 5%, prevalências de exposições variando entre 25% e 75% e razão de prevalência de 2,0. Pelas possibilidades de perdas e recusas, acrescentaram-se 10% ao tamanho da amostra; e 15%, para controle de fatores de confusão. Portanto, estimou-se uma amostra de 1.800 indivíduos. A inclusão dos indivíduos foi feita por intermédio de visitas domiciliares, em 40 setores censitários, sorteados aleatoriamente. Em cada setor foram visitados 30 domicílios, totalizando 1.200 famílias, nos quais se esperava encontrar 1,5 pessoas na faixa etária do estudo. Com base em um quarteirão previamente sorteado, escolheu-se, também de maneira aleatória, o ponto de partida. Ao terminar a entrevista em um determinado domicílio, sistematicamente, saltavam-se duas casas antes da próxima.
Ao final do trabalho de campo, foram encontradas 1.145 (95,4%) famílias. Destas, 57 (4,7%) não apresentavam pessoas na faixa etária considerada no estudo; logo, outras 55 (4,5%) famílias foram classificadas como perdas ou recusas.
Incluíram-se no estudo 1.962 pessoas entrevistadas, entre as 2.177 pessoas de 20 a 69 anos encontradas nos setores visitados. Dessa forma, as perdas e recusas individuais atingiram 9,8%.
O trabalho de campo foi realizado entre o período de 3 de dezembro de 1999 e 3 de abril de 2000, com a aplicação de um questionário padronizado e pré-codificado a todas as pessoas incluídas na pesquisa. Os entrevistadores foram acadêmicos da UFPel, os quais desconheciam os objetivos do estudo e foram submetidos a programa de treinamento e estudo piloto.
A média de consultas com médico, no último ano, foi 3,2, com desvio padrão de 5,5. A análise foi realizada considerando-se dois desfechos. O primeiro, considerando apenas um desvio padrão acima da média (mais de oito consultas médicas por ano); e, o outro, dois desvios padrões acima da média (mais de 14 consultas médicas por ano).
Coletaram-se informações em relação à classe social, segundo classificação da Associação Brasileira de Institutos de Pesquisa de Mercado (ABIPEME) 7 e de Bronfman 8; renda familiar per capita em salários mínimos; e, anos de escolaridade.
As variáveis demográficas estudadas foram idade e sexo.
Classificaram-se os indivíduos em relação ao estado nutricional como normais, apresentando sobrepeso ou obesidade de acordo com o índice de massa corporal 9.
Verificou-se a presença de algumas doenças crônicas não transmissíveis (diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, bronquite crônica e distúrbios psiquiátricos menores). Definiu-se hipertensão arterial sistêmica por um entrevistado referir utilizar medicação anti-hipertensiva e/ou da medida igual ou maior do que 160/95mmHg. A medida de pressão arterial foi obtida pela média de duas aferições, tomadas na metade e no final da entrevista. Foram incluídas também a presença de diabetes mellitus referido e de bronquite crônica, definida pela ocorrência de tosse produtiva, na maioria dos dias, de um período mínimo de três meses, durante dois anos consecutivos 10. O instrumento utilizado para a classificação de distúrbios psiquiátricos menores foi o Self-Report Questionnaire (SRQ-20). Os pontos de corte estabelecidos para caracterizar a presença de distúrbios psiquiátricos menores foram ³ 6 para os homens e ³ 7 para as mulheres 11.
Foram investigados também o local de consulta médica no último mês e a ocorrência de internação hospitalar no último ano.
A variável local de consulta foi coletada entre diversos serviços possíveis e, posteriormente, agregada quanto à modalidade do financiamento e à intenção de lucro. Com base neste critério, formaram-se categorias:
- Sistema público: integrados pelos postos de saúde do bairro do indivíduo entrevistado, outros postos, ambulatório da Faculdade de Medicina da UFPel e pronto-socorro;
- Serviços contratados: constituídos pelos ambulatórios de hospitais filantrópicos com contratos firmados com o Sistema Único de Saúde;
- Seguros de saúde: representados por serviços onde uma taxa era cobrada (seguros privados de saúde, medicina de grupo e ambulatórios de sindicatos e empresas);
- Sistema privado: constituído, exclusivamente, pelos médicos particulares cuja cobrança dos serviços era integralmente paga pela pessoa entrevistada.
Foram escolhidas duas variáveis que indicavam a qualidade dos cuidados preventivos entre a população feminina: a cobertura de exame de mamas anual e a realização de exame citopatológico do colo uterino nos últimos três anos.
Os indivíduos que haviam consultado com médico no último mês foram entrevistados quanto aos gastos pessoais diretos e indiretos em relação aos cuidados com a saúde. Os gastos diretos envolviam a aquisição de medicamentos, o pagamento de consultas médicas e de exames complementares, as despesas com mensalidades de planos de saúde e a realização de procedimentos laboratoriais. Entre os gastos indiretos, foram investigadas ausência ao trabalho devido à doença e tempo de espera para a consulta médica ou para a realização de exames, todos com cálculo relativo à renda individual do indivíduo, assim como as eventuais despesas com refeições e transporte. Os gastos originalmente coletados em reais foram convertidos para dólares pela média da taxa cambial do período do estudo.
Realizou-se controle de qualidade, aplicando-se questionários simplificados em 10% das pessoas incluídas na amostra.
A codificação e a entrada de dados mediante uso do programa Epi Info (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos) foi realizada duas vezes, com o intuito de diminuir os erros de consistência. A análise dos dados foi realizada com o programa SPSS (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos), quando se compararam os desfechos e as variáveis independentes por intermédio das razões de prevalências, intervalos de confiança a 95% e do teste do qui-quadrado. A comparação dos procedimentos preventivos foi realizada exclusivamente entre as mulheres que haviam consultado no último ano. A variável gasto mensal com assistência médica não apresentou distribuição normal, sendo as diferenças analisadas pelo teste Wilcoxon Signed Ranks Test 12.
Realizou-se regressão logística seguindo-se modelo conceitual hierarquizado (Figura 1) para controle das variáveis de confusão 13, calculando-se as razões de odds, seus intervalos de confiança e testes estatísticos.
Resultados
A Tabela 1 mostra as características da população incluída no estudo quanto às variáveis sócio-econômicas e demográficas, estado nutricional, presença de determinadas condições crônicas e de utilização de serviços de saúde.
Entre as 1.962 pessoas incluídas no estudo, 1.395 (71,1%) consultaram com médico no último ano pelo menos durante uma vez.
Os resultados mostraram que 183 (9,3%) pessoas consultaram mais do que oito vezes durante o ano. Esse grupo de indivíduos foi responsável pela utilização de 44,8% de todas as consultas médicas realizadas durante o ano.
Verificou-se, pelos intervalos de confiança, que as pessoas inseridas no subproletariado consultaram menos com médico que aquelas pertencentes à burguesia e à nova pequena burguesia. Os entrevistados inseridos na categoria de 8 a 10 anos de estudo também consultaram menos do que aqueles com maior escolaridade. Nas demais variáveis sócio-econômicas não se detectaram diferenças entre as categorias (Tabela 1).
Quanto às variáveis demográficas, constatou-se que as mulheres consultaram cerca de 3,5 vezes mais que os homens. As pessoas de 50 a 59 anos consultaram até três vezes mais, quando comparadas com as do grupo mais jovem (Tabela 1).
Os indivíduos que apresentavam sobrepeso ou obesidade, de acordo com o índice de massa corporal, consultavam mais freqüentemente (Tabela 1).
Todas as pessoas que apresentavam doenças crônicas (diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, bronquite crônica e distúrbios psiquiátricos menores) tiveram a probabilidade aproximadamente duas vezes maior que os indivíduos sem essas condições de consultar mais de oito vezes ao ano (Tabela 1).
Em relação à utilização de serviços de saúde, observou-se que as pessoas com internação hospitalar no último ano consultaram excessivamente, quase cinco vezes mais (Tabela 1).
Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os tipos de serviços de saúde utilizados.
Observou-se que as mulheres com mais de oito consultas anuais tinham um percentual de cobertura para exame de mamas e citopatológico de 64,7% (IC95%: 57,0-72,3) e 80,7% (IC95%: 74,3-87,0) respectivamente, contra 49% (IC95%: 45,8-52,1) e 70,8% (IC95%: 67,9-73,7) entre as do grupo de comparação. Portanto, os intervalos de confiança mostraram que entre as mulheres com mais consultas as coberturas foram mais elevadas.
O gasto médio mensal das despesas ambulatoriais das pessoas que consultaram mais do que oito vezes, com médico, durante o ano foi de US$ 87,42. No grupo de comparação as despesas médias foram de US$ 66,39. A diferença entre os dois grupos foi estatisticamente significativa (p < 0,001).
Controlaram-se os fatores de confusão pela análise de regressão logística. A análise hierarquizada, seguindo o modelo, mostrou que persistiram significativos os efeitos em relação ao subproletariado, sexo feminino, pessoas de 50 a 59 anos, diabetes mellitus, hipertensão arterial, bronquite crônica, distúrbios psiquiátricos menores e hospitalizações no último ano (Tabela 2).
Encontraram-se 57 (2,9%) indivíduos com mais de 14 consultas médicas durante o ano. Esse grupo de pessoas foi responsável pelo consumo de 22,5% do total de consultas médicas anuais.
A análise não mostrou evidências de associação entre as variáveis sócio-econômicas e o desfecho (Tabela 3).
Em relação a variáveis demográficas, não foram encontradas diferenças entre os diferentes grupos etários; contudo se encontrou uma diferença estatisticamente significativa, confirmada pelos intervalos de confiança, revelando que as mulheres consultam dois desvios padrões acima da média três vezes mais do que os homens (Tabela 3).
A variável "estado nutricional" não mostrou associação com número de consultas dois desvios padrões acima da média.
Quanto à presença de doenças crônicas, encontraram-se diferenças importantes em relação à hipertensão arterial sistêmica e a distúrbios psiquiátricos menores. Os indivíduos que apresentavam hipertensão arterial apresentavam uma probabilidade 90% maior de consultar mais de 14 vezes ao ano do que aqueles sem a condição. Entre as pessoas com distúrbios psiquiátricos, essa probabilidade foi mais do que duas vezes maior (Tabela 3).
Verificou-se que as pessoas que haviam sido hospitalizadas durante o último ano também haviam consultado com médico mais freqüentemente. Nessa variável encontrou-se a maior medida de efeito, sendo a razão de prevalências de 5,7 (Tabela 3).
Em relação ao tipo de serviço de saúde utilizado, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas quanto à média de consultas.
Verificou-se que 73,9% (IC95%: 61,2-86,6) das mulheres que consultaram mais do que 14 vezes tiveram suas mamas examinadas no último ano, enquanto que no outro grupo a cobertura foi de 50,1% (IC95%: 47,1-53,1). Os intervalos de confiança mostraram que as coberturas foram diferentes. Em relação ao exame citopatológico, o grupo dois desvios padrões acima da média apresentou uma cobertura de 80,4% (IC95%: 69,0-91,9), contra 71,8% (IC95%: 69,1-74,5) das mulheres restantes. Nesse caso os intervalos de confiança estavam superpostos, não revelando diferenças nas estimativas.
O gasto médio mensal dos indivíduos que consultaram mais do que 14 vezes durante o ano foi de US$ 77,19. No grupo de base, as despesas médias atingiram US$ 57,80. A diferença entre os dois grupos foi estatisticamente significativa (p < 0,001).
Na regressão logística, foram encontradas diferenças significativas, confirmadas pelos intervalos de confiança para sexo feminino, hipertensão sistêmica, presença de distúrbios psiquiátricos menores e hospitalizações no último ano (Tabela 4).
Discussão
Uma das preocupações ligadas à execução de estudos epidemiológicos de base populacional e corte transversal é a ocorrência de viés de seleção. O rigor no processo de aleatorização e seleção da amostra asseguraram que a população incluída nesse estudo tivesse uma distribuição semelhante à da cidade de Pelotas, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Todavia o estudo apresenta duas limitações: o período recordatório e a falta de validação das informações. Sabe-se que estudos de utilização de serviços de saúde devem se restringir a períodos recordatórios entre 15 e 30 dias 14,15,16. Entretanto, um período de tempo tão curto exigiria um tamanho de amostra muito grande, inviabilizando o projeto. Assim, a estimativa de quem consulta acima da média, baseada num período recordatório de um ano, pode não ser precisa. Deve-se ressaltar, porém, que os pontos de corte escolhidos para o estudo foram superiores aos encontrados na literatura. No estudo de Andersson et al. 17, por exemplo, considerou-se como consumo elevado acima de cinco consultas anuais. Para Kalsson et al. 18, foi a partir de 11 contatos por ano, enquanto Von Korff et al. 19 consideraram como ponto de corte o percentil 90, de acordo com o sexo e a idade. Desta forma, pode-se supor que o presente estudo incluiu indivíduos que realmente tinham um número anual de consultas médicas acima da média.
Sabe-se que a validação de utilização de serviços de saúde fundamentada na checagem de registros médicos é difícil de ser realizada 14,15,16. Uma das alternativas seria a utilização de fontes de dados secundários, que apresentam como desvantagens problemas de classificação e notificação.
Entre as vantagens dos estudos epidemiológicos destacam-se as contribuições que as informações podem oferecer para o planejamento e aprimoramento do sistema de saúde. Desta forma, podem-se encaminhar diversas questões relativas ao consumo de consultas médicas na cidade de Pelotas.
Sabe-se que as condições sócio-econômicas se relacionam com a utilização de serviços de saúde 20,21,22,23. Roos & Shapiro 24 em seu estudo sobre utilização de serviços de saúde também não encontraram diferenças significativas entre consumo de consultas e níveis de renda, embora Kalsson et al. 18 e Waller et al. 25 tenham demonstrado que as pessoas inseridas nas classes mais baixas tendiam a consultar mais freqüentemente. No Brasil, estudos têm revelado que pessoas inseridas nos grupos de renda mais baixa procuram menos os serviços de saúde 26 ou apresentam menor probabilidade de usá-los 27. Sabe-se também que indivíduos com condições sócio-econômicas melhores, residentes em áreas não cobertas pelo Programa Saúde da Família procuram mais serviços de saúde 28. No entanto, no presente estudo, foram encontradas diferenças apenas entre as pessoas inseridas no subproletariado e com 8 a 10 anos de escolaridade. As demais variáveis sócio-econômicas não revelaram diferenças no padrão de consumo de consultas ambulatoriais em Pelotas. De forma semelhante, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os pacientes que consultavam acima da média e os tipos de serviço de saúde utilizados. Como, em Pelotas, a escolha do tipo de serviço está estreitamente associada à inserção de classe social 2, pode-se supor que esse achado é mais uma evidência da facilidade de acesso à atenção básica no sistema local de saúde.
As diferenças entre os sexos nos dois desfechos utilizados foram semelhantes às de outros estudos já realizados 29,30. Estudos realizados no Brasil também mostraram que as mulheres consultam mais que os homens 27,31,32.
Como em outros estudos, esperava-se que as pessoas mais idosas consultassem mais, em virtude da possibilidade de apresentarem doenças crônicas não transmissíveis, que por sua maior complexidade poderiam exigir um maior número de contatos médicos 4,24,29. Contudo, apenas as pessoas de 50 a 59 anos consultaram mais do que oito vezes ao ano de forma mais freqüente que as do grupo etário mais jovem. Esta tendência não foi observada no grupo entre 60 e 69 anos de idade.
A presença de doenças crônicas tais como hipertensão arterial sistêmica, bronquite crônica e diabetes mellitus foram condições associadas com utilização acima da média. A própria natureza clínica dessas doenças e seu manejo exigem um maior número de consultas. Porém, quando se utilizou, como ponto de corte, o percentual de mais de 14 consultas por ano as diferenças para bronquite crônica e diabetes mellitus desapareceram. Alguns estudos de utilização de serviços de saúde têm mostrado elevada utilização de recursos de saúde entre os portadores de doenças crônicas não transmissíveis 4,33. Entretanto, Andersson et al. 17 não encontraram diferenças estatisticamente significativas em pacientes que freqüentemente consultavam com médicos generalistas na Suécia e que apresentavam doenças cardiovasculares e diabetes.
Conforme encontrado em outros estudos, a presença de distúrbios psiquiátricos menores, traduzidos como a ocorrência de ansiedade ou depressão, foi um importante determinante de consultas médicas acima da média para os dois pontos de corte 4,17,29,33. Sabe-se que médicos generalistas muitas vezes apresentam dificuldades em detectar problemas mentais em pacientes no nível ambulatorial 34; assim, esse achado pode traduzir o nível de dificuldade no manejo dessas condições e identificar necessidades de treinamento dos profissionais.
As pessoas que foram hospitalizadas no último ano também consultaram com médicos acima da média. O achado revela que o fato de consultar freqüentemente pode indicar gravidade das manifestações. De forma semelhante, indivíduos com doenças malignas consultam mais vezes 29. O presente estudo não pode precisar se a maior parte das consultas médicas aconteceu antes ou depois das internações hospitalares. Se os contatos tivessem ocorrido antes das internações, poder-se-ia considerar indicativo de gravidade da doença ou baixa efetividade dos serviços ambulatoriais. Ao passo que, se tais contatos ocorressem após a internação, poder-se-ia aventar um bom acesso ao sistema de saúde e um adequado acompanhamento ambulatorial.
Em relação aos procedimentos preventivos explorados pelo estudo, constatou-se que as mulheres que consultaram acima da média apresentavam maiores coberturas dos procedimentos preventivos indicando que a exposição foi positiva quanto às oportunidades de prevenção.
O estudo não tinha como objetivo principal analisar e comparar os gastos que pacientes com consultas acima da média representavam para o sistema local de saúde. Contudo, os gastos individuais puderam ser comparados. Consistentemente com outros estudos, esses pacientes gastavam mais recursos 4,34.
Assim, deve-se alertar os gestores dos sistemas de saúde que muitas vezes parecem prontos para atribuir utilização elevada com uso inadequado. Tal presunção pode ser perigosa, porque pode resultar em políticas que restringem o acesso aos cuidados, implicando sofrimento para pacientes com doenças graves 35. Na verdade, consultar muitas vezes pode refletir a necessidade permanente de qualificação dos profissionais e da atenção básica, justificando o monitoramento de quais as características de quem o faz por intermédio do método epidemiológico.
Colaboradores
J. S. Dias-da-Costa, M. T. A. Olinto, D. P. Gigante, A. M. B. Menezes e S. Macedo elaboraram o projeto de pesquisa e os instrumentos de coleta de dados. J. S. Dias-da-Costa, M. T. A. Olinto e T. Daltoé participaram da análise e redação do artigo. D. P. Gigante, A. M. B. Menezes e S. Macedo, I. S. Santos e S. C. Fuchs revisaram a análise dos dados e a redação do artigo.
Agradecimentos
Projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
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Correspondência:
J. S. Dias-da-Costa
Departamento de Medicina Social
Faculdade de Medicina
Universidade Federal de Pelotas
Av. Duque de Caxias 250, Pelotas
RS 96030-002, Brasil
episoares@terra.com.br
Recebido em 28/Nov/2006
Versão final reapresentada em 13/Abr/2007
Aprovado em 05/Jun/2007