RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Sandra Caponi

Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. sandracaponi@newsite.com.br

 

 

A SAÚDE PERSECUTÓRIA: OS LIMITES DA RESPONSABILIDADE. Castiel LD, Álvarez-Dardet C. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007. 136 p.

ISBN: 978-85-7541-192-2

A responsabilidade individual: do autogoverno à gestão das populações

O livro de Luis David Castiel & Carlos Álvarez-Dardet, A Saúde Persecutória: Os Limites da Responsabilidade, editado pela Editora Fiocruz em 2007, analisa a questão da atribuição de responsabilidades no âmbito da promoção da saúde. Mas, longe de ser um novo convite para assumir a responsabilidade sobre os efeitos que nossas ações podem vir a ter no futuro, multiplicar os cuidados em saúde, evitar riscos que os estudos epidemiológicos elevaram ao estatuto de verdades evidentes, defender estilos de vida considerados desejáveis ou condenar estilos de vida considerados indesejáveis, é, pelo contrário, um convite para desmontar uma a uma estas certezas tão caras à nossa modernidade tardia.

Trata-se, de fato, de uma reflexão teórica que transita pelos principais autores da sociologia e da filosofia contemporânea. Vemos circular ali uma diversidade de temáticas e questões absolutamente relevantes para compreender os problemas com os quais se defronta a sociedade contemporânea em geral e a saúde pública em particular. O texto articula, de modo rigoroso, contribuições provenientes de diversos espaços teóricos: desde as críticas à modernidade realizadas por Giddens e Beck, até os conceitos de governabilidade, biopolítica e sociedade disciplinar de Foucault; passando pelas reflexões de Hannah Arendt sobre a condição humana e pela releitura que Agamben faz do conceito de biopolítica. Os autores articulam as referências a autores clássicos da saúde coletiva como Ilhich ou Breilh com estudos essenciais para a compreensão das idéias de risco e de promoção da saúde, como o conceito de habitus de Pierre Bordieu, as críticas ao risco de Débora Lupton ou os trabalhos que Bauman dedica à modernidade líquida.

Mas não é a referência a autores clássicos o que constitui a riqueza do texto. O que deve-se destacar é o uso pertinente que os autores fazem desse instrumental teórico. Podemos dizer, tomando emprestadas as palavras de Deleuze, que esses textos constituem uma verdadeira caixa de ferramentas para desmontar, estabelecer relações, dirimir controvérsias e elaborar uma crítica muito precisa e absolutamente necessária dos principais problemas como os que se defronta a saúde coletiva.

O livro percorre tanto autores e temas clássicos quanto obras da literatura e do cinema, transita por saberes consagrados e por publicações menores. Entendo por publicações menores as revistas ou sites de Internet encarregados de difundir para o grande público as supostas evidências descobertas no último estudo epidemiológico ou genético, ao mesmo tempo em que propagam novas normas de conduta, novos estilos de vida apropriados. O que marca a fronteira entre estilos de vida desejáveis e indesejáveis não é outra coisa que o mapeamento de novos riscos.

Essa proliferação de riscos, temores e medos parece estar diretamente vinculada à multiplicação de discursos de verdade. Discursos nos quais se reconhece, sem a menor crítica ou questionamento, um estatuto de cientificidade que parece indiscutível. Assim, discursos tais como a "epidemiologia baseada em evidências" multiplicam "verdades evidentes" que falam da necessidade de adequar nossos comportamentos para evitar riscos. Pelo menos, se queremos atingir aquilo que Castiel & Álvarez-Dardet definem como sendo o objetivo mais prezado em nossa modernidade tardia: a longevidade. Atingir esse objetivo implica o conhecimento dos riscos, isto é, implica estarmos informados das últimas descobertas científicas, conhecer os discursos normativos que se derivam dessas supostas verdades e agir de modo responsável no cuidado de nosso corpo e de nossa saúde.

A crítica que os autores dirigem à multiplicação desses discursos, assim como aos imperativos de responsabilidade que decorrem de tais verdades, é hoje absolutamente pertinente e necessária. Como afirmam, "no campo da saúde, é cada vez mais insana a integração sem crítica de pesquisadores e acadêmicos à 'linha de montagem' na produção compulsiva e irrealista de artigos em revistas científicas e ao discurso de busca exaustiva de evidências empiricistas".

Por essa razão a introdução ao livro é uma crítica radical à produção desnecessária de textos "baseados em obviedades", conforme o nome sugerido pelos autores para a tão difundida Medicina Baseada em Evidências. Para abordar essa questão utilizam como ferramenta crítica um texto da literatura que faz parte do romance satírico escrito por Jonathan Swift em 1726, Gulliver's Travels. O texto refere-se a uma viagem realizada a Nova Laputa. Ali existe um grupo extremista, ao mesmo tempo religioso e acadêmico, que "se dedica a desenvolver projetos de pesquisa e a publicar compulsivamente os resultados de suas investigações sob a forma de artigos em revistas científicas, especificamente aquelas de pedigree acadêmico mais conceituado. Os que mais publicam e mais são citados estão mais próximos de seus deuses e, portanto, protegidos e respeitados. Aqueles que não publicam se prejudicam com alto risco de perecer de maneia precoce". Aqueles que estão mais perto dos deuses não se contentam com publicar, eles ditam normas de ação, dizem o que é correto ou não fazer, legitimam pontos de vista como superiores e desqualificam outros como sendo inferiores.

O primeiro capítulo, inicia com outra referência literária que será retomada ao longo do livro. Trata-se do conto de Philip F. Dick chamado The Minority Report. Esse relato é uma síntese acabada do que pode acontecer em uma sociedade na qual prima a suspeita pela conduta do outro. O conto de ficção científica de Dick fala de uma sociedade futurista em que os crimes de homicídio são prevenidos antes que eles ocorram, graças ao auxílio de certos indivíduos que podem ver o futuro. A partir desse relato os autores põem em questão todo um conjunto de problemas referidos à promoção da saúde: a relação entre destino e livre arbítrio; a idéia recorrente e fortalecida em nossa modernidade tardia da determinação biológica ou genética de condutas; os diversos tipos de reducionismo explicativo, sejam eles epidemiológicos, comportamentalistas ou genéticos; o fortalecimento da idéia de responsabilidade individual e sua confrontação com a, cada vez mais debilitada, idéia de responsabilidade coletiva; mas, fundamentalmente, abordam a questão do poder que a sociedade concede àqueles que afirmam ter a capacidade de antecipar o futuro.

Com base nessa diversidade de olhares os autores compõem um estudo crítico referido ao "triste" papel que assume a saúde pública, hoje hegemônica, quando se transforma em um espaço persecutório, culpabilizador e moralizador. Tal parece que a saúde pública hegemônica acredita que, baseando-se em certas evidências científicas, está habilitada para determinar as condutas e os estilos de vida que o conjunto dos indivíduos, sem distinções, deverá seguir. Em nossa modernidade tardia caracterizada pela permanente incerteza, a pretensão de atingir verdades científicas "evidentes" sobre nosso presente e sobre nosso futuro resulta, no mínimo, ingênua.

O livro pode ser lido como um estudo epistemológico e ético referido aos limites e alcances da saúde coletiva, como uma reflexão filosófica atenta aos problemas e conflitos derivados de uma excessiva individualização da responsabilidade com nossos corpos e com nossa saúde. Um excesso de cuidado individual que parece ser solidário do esquecimento das proteções sociais e das responsabilidades coletivas que caracterizam as nossas sociedades.

A responsabilidade individual transformou-se nesse eixo que possibilita a articulação entre governo de si e gestão das populações, mas é também uma porta desnecessariamente aberta para a recuperação tardia das clássicas estratégias de culpabilização das vítimas tão caras ao higienismo do século XIX. Esquecemos assim que existem dúvidas quanto à efetividade dos encaminhamentos baseados na mudança de comportamentos, que o sentimento de culpa debilita aos sujeitos. Esquecemos, enfim, que o risco faz parte da condição humana e que, como afirmam os autores "resulta indispensável apreender a conviver com a exposição a riscos e apreender a administrá-los com especial cuidado".

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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