ARTIGO ARTICLE
Marcas identitárias masculinas e a saúde de homens jovens
Male identity traits and young men's health
Elaine Ferreira do Nascimento; Romeu Gomes
Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
RESUMO
O trabalho tem como objetivo central analisar os sentidos que homens jovens atribuem à masculinidade. Por meio dessa análise, discussões acerca de uma atenção integral a esses sujeitos no campo da saúde podem ser desenvolvidas. O desenho metodológico se caracteriza por um estudo de caso sob a perspectiva das ciências sociais, ancorado numa abordagem hermenêutica-dialética, envolvendo 19 jovens do sexo masculino, na faixa etária de 15 a 17 anos. Em relação aos resultados, observou-se que os jovens, em seus depoimentos, associam ser homem a: ser provedor, dominador, heterossexual e cuidador. Essa associação, por sua vez, não ocorre de uma forma mecânica, mas mediante um processo dialético que reflete a complexidade subjetiva na incorporação ou na rejeição das marcas identitárias. Dentre as conclusões do estudo, destaca-se a necessidade de a saúde dar voz aos homens jovens acerca de sua identidade para que se possa obter um maior envolvimento deles nas ações de prevenção e promoção da saúde, assegurando que esses sujeitos que - tradicionalmente não são vistos como agentes dos cuidados em saúde - protagonizem uma trajetória e uma relação diferenciada com esta área.
Identidade de Gênero; Saúde do Adolesccente; Masculino
ABSTRACT
This work is mainly aimed to analyze the meaning given by young men to masculinity. By this analysis, discussions involving integral attention to them in health care field can advance. Our methodology is characterized by case study under the social sciences perspective and with hermeneutic-dialectical approach involving 19 male youngsters aged 15 to 17. About the observed results, young men associated being male with playing household provider, dominating man, heterosexual and caregiver roles. This association occurs through dialectical process reflecting the subjective complexity in accepting or rejecting the identity marks. Within this study conclusions, it is emphasized the public heath care need of listening young men's voice about their identity to involve them in health care prevention and promotion actions, assuring to these social agents - traditionally not seen as health care agents - to find a way and different relationship with this area.
Gender Identity; Adolescent Health; Male
Introdução
A partir do final do século passado, observamos que vem ocorrendo um interesse e, ao mesmo tempo, uma necessidade por parte da área da saúde em focalizar a atenção nos homens jovens, tornando-os protagonistas de estudos e de intervenções 1,2. Os estudos que se voltam para esse tipo de atenção apontam que, em geral, os segmentos masculinos não costumam adotar medidas de proteção contra doenças, nem buscar ajuda quando têm a sua saúde comprometida 3,4,5,6.
Pesquisadores costumam advogar que o enfrentamento desses problemas não pode desconsiderar a influência de certas construções hegemônicas da masculinidade na adoção, por parte de homens, de condutas que não facilitam a promoção de sua saúde 4,6,7,8,9. Como observam Gomes & Nascimento 5 (p. 909), "a construção da masculinidade com marcas identitárias - como adoção do status quase que exclusivo de ser ativo, a crença de que deve expressar invencibilidade, a associação do masculino à necessidade de expor-se ao risco, a naturalização do descontrole sexual e a redução do exercício da sexualidade à penetração - pode influenciar a não adoção de medidas de proteção contra doenças".
Para que avancemos nessa discussão, propomos a problematização das "marcas identitárias" da masculinidade, aqui utilizadas no mesmo sentido de "formas identitárias" por Dubar 10. Segundo esse autor, essas formas - que se situam numa época histórica e num tipo de contexto social - são construídas baseando-se em dois eixos: "Um eixo 'sincrônico', ligado a um contexto de ação e a uma definição de situação, em um espaço dado, culturalmente marcado, e um eixo 'diacrônico', ligado a uma trajetória subjetiva e a uma interpretação da história pessoal, socialmente construída" 10 (p. XX). Em outras palavras, as marcas identitárias se referem, de um lado, a um contexto cultural e, de outro, à subjetividade, aqui entendidas como as maneiras pelas quais "cada um se define, simultaneamente como ator de um sistema determinado e produto de uma trajetória específica" 10 (p. XX). Dentro dessa lógica, o conjunto das experiências dos atores reflete uma relação entre as identidades "para o outro" (dimensão relacionada à interação em um contexto de ação) e as identidades "para si" (dimensão da subjetividade).
Se utilizarmos a definição de masculinidade de Keijer 11, podemos compreender as marcas identitárias da masculinidade, situadas no âmbito das relações de gênero, como um conjunto de atributos, valores, funções e condutas que se espera que o homem tenha numa determinada cultura. Para Connel 12, a masculinidade como a feminilidade, além de se relacionar a outros aspectos estruturais, como raça e classe social, estão sempre vinculadas a contradições internas e rupturas históricas. Ainda segundo esse autor, há múltiplas masculinidades e, em seu conjunto, pode haver uma que ocupa um lugar de hegemonia, entendida como um modelo a ser seguido nas relações de gênero e como uma posição sempre disputada, sem contudo se constituir num tipo de caráter fixo no tempo e no espaço 12,13.
Junto à discussão acerca das marcas identitárias masculinas, consideramos que as ações em saúde devem ser ancoradas na compreensão da própria fala que os sujeitos constroem sobre estas marcas, uma vez que é através desta que os mesmos expressam suas concordâncias ou rejeições das identificações que lhes são atribuídas pela e na atividade com os outros 10. Essa fala possivelmente reflete implicações na forma como eles aceitam, recusam ou transformam as ações propostas pela área da saúde. Assim, a eficiência das ações do setor público pode estar muito relacionada ao quanto elas conseguem fazer conexões entre os depoimentos e as necessidades de saúde dos sujeitos que pretendem atender.
Com base nessa perspectiva, neste trabalho, temos como objetivo central analisar os sentidos que homens jovens atribuem à masculinidade. Por meio dessa análise, discussões acerca de uma atenção integral a esses sujeitos no campo da saúde podem ser desenvolvidas e o foco da saúde nos homens jovens pode ser melhor ajustado.
Material e método
Nosso estudo é parte de uma investigação que procurou problematizar aspectos relacionados ao fenômeno da sexualidade masculina juvenil num contexto de vulnerabilidade social. Nosso trabalho pauta-se numa abordagem de pesquisa qualitativa, aqui entendida como um conjunto de práticas interpretativas que busca investigar os sentidos que os sujeitos atribuem aos fenômenos e ao conjunto de relações em que eles se inserem 14.
Nessa abordagem, baseada em princípios da hermenêutica-dialética, buscamos compreender e contextualizar os sentidos subjacentes às falas. Assim, por meio da articulação entre a hermenêutica (arte de compreensão) e a dialética (arte do estranhamento e da crítica), procuramos interpretar os sentidos atribuídos à masculinidade por parte dos jovens, situando-os no espaço de suas interações e na relação entre modelos hegemônicos e não-hegemônicos culturalmente produzidos/reproduzidos da masculinidade.
O desenho metodológico se caracteriza por um estudo de caso sob a perspectiva das Ciências Sociais. Em Ciências Sociais, o caso costuma ser "uma organização, uma prática social ou uma comunidade, geralmente estudada a partir de observação participante e entrevistas" 14 (p. 104). Dentro dessa abordagem, o estudo de caso tem duplo papel: compreensão abrangente da singularidade do caso e reflexão mais geral sobre regularidades do processo e estruturas sociais, nas quais se situa o caso 14,15.
O caso estudado é um grupo de jovens matriculados no curso de capacitação para o mercado de trabalho, promovido pela organização não-governamental (ONG) Rede de Capacitação e Qualificação (RECOFIAT). Essa fundação tem por objetivo preparar jovens, moradores da cidade do Rio de Janeiro, Brasil, em situação de vulnerabilidade social para o mercado de trabalho na área de mecânica de automóveis.
O curso é desenvolvido em parceria com a rede de concessionária Fiat. A RECOFIAT atua na comunidade do Caju, no Rio de Janeiro, há mais de dez anos, com capacitação (na área de mecânica de automóveis) e colocação no mercado de trabalho de jovens de comunidades de baixa renda. Além de oferecer o curso de profissionalização, também proporciona módulos de português, matemática, geografia, história, ciências, línguas estrangeiras e de cidadania. Os jovens após o curso básico fazem estágios de seis meses na empresa parceira e são encaminhados para entrevistas de seleção de emprego, nesta ou em outras empresas ligadas à ONG. O curso tem duração de dois anos e um índice de aproveitamento em torno de 80%.
Os critérios que compõem o perfil para ingressarem nesse curso de capacitação para o mercado de trabalho são: os jovens estarem devidamente matriculados na rede de ensino, cursando pelo menos a 7ª série do 2º segmento do Ensino Fundamental; terem entre 15 e 16 anos; serem moradores de comunidades de baixa renda (possíveis jovens em situação de vulnerabilidade social); e passarem num processo simplificado de seleção pública (prova básica de português, matemática e entrevista).
A escolha da instituição RECOFIAT se deve ao fato de ela reunir as qualidades necessárias de campo para um estudo de caso, ou seja, oferecer um curso de capacitação e inserção no mercado de trabalho para jovens na área automobilística, setor considerado predominantemente masculino e, por esta característica, concentrar em torno de 95% de homens jovens que permanecem juntos numa jornada de 44 horas semanais, podendo ser considerado um espaço predominantemente de sociabilidade masculina. Isso, em termos de marcas identitárias masculinas, pode ser considerado um foco privilegiado, uma vez que a masculinidade costuma ser vista na literatura como um aspecto que é incorporado através da imitação 16.
A amostra de conveniência deste estudo (que não tem como proposta uma representatividade numérica, mas sim um aprofundamento da temática), baseia-se nos seguintes princípios: (a) escolha dos participantes que detinham atributos relacionados ao que se pretende estudar (no caso deste trabalho rapazes a partir de 15 anos, matriculados na RECOFIAT); (b) entrevista de informantes em número suficiente para que se possa ter uma certa reincidência das informações; e (c) a possibilidade de inclusões sucessivas de pessoas até que seja possível uma discussão densa das questões da pesquisa 17.
O conjunto dos entrevistados é composto por 19 rapazes com idades entre 15 e 17 anos, sendo em sua maioria (15) com 16 anos, dois com 15 e outros dois com 17. Seus integrantes se declararam, em sua maioria, pretos (12). Os demais como pardos (quatro) e brancos (três). Na época do trabalho de campo, 17 deles cursavam a 8ª série do segundo segmento do Ensino Fundamental e dois encontravam-se na 6ª série, no mesmo nível. Praticamente a metade dos jovens entrevistados (nove) estava comprometida com o namoro e dez deles não namoravam no momento. No grupo, apenas um jovem informou nunca ter tido namorada.
A coleta dos dados se apoiou em entrevistas semi-estruturadas, realizadas na instituição em que os mesmos encontravam-se matriculados para o curso de qualificação para o mercado de trabalho. Nesse tipo de coleta, procuramos estabelecer uma conversa dirigida com os entrevistados em torno de temas que integram o objeto da pesquisa. No caso deste recorte da pesquisa, focalizamos questões relacionadas sobre ser homem.
Em termos de procedimento analítico adotado no trato dos depoimentos, neste estudo utilizamos o método de interpretação de sentidos 18,19, com base em princípios hermenêuticos-dialéticos para a interpretação do contexto, das razões e das lógicas dos depoimentos que giraram em torno das temáticas do estudo.
Na trajetória analítico-interpretativa, percorremos os seguintes passos: (a) leitura compreensiva, visando à impregnação, visão de conjunto e apreensão das particularidades do material gerado pela pesquisa original; (b) identificação e recorte temático dos depoimentos sobre ser homem; (c) identificação e problematização das idéias explícitas e implícitas no texto; (d) busca de sentidos mais amplos (sócio-culturais) que articulam as falas dos sujeitos da pesquisa e as marcas identitárias da masculinidade; (e) diálogo entre sentidos atribuídos, informações provenientes de outros estudos acerca do assunto e o referencial teórico do estudo; e (f) elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos.
O projeto de pesquisa do qual se insere este trabalho foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, em cumprimento da Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Para garantir o caráter sigiloso das informações, os depoimentos dos entrevistados foram codificados com nomes fictícios.
Marcas identitárias da masculinidade
As marcas identitárias da masculinidade refletidas nos depoimentos dos jovens apontam tanto para um modelo hegemônico da masculinidade quanto para frestas neste modelo que dão espaços para convivência com outros modelos subalternos do ser masculino. Os sentidos atribuídos pelos jovens a ser homem nos possibilita delinear marcas identitárias que são reconhecidas como pertencentes ao ser homem.
Observamos, porém, que as marcas identitárias da masculinidade, aqui evocadas, não são necessariamente incorporadas mecanicamente na definição das identidades dos nossos sujeitos, e quando são assimiladas estas sofrem adaptações a partir do contexto em que vivem e dos momentos históricos em que se encontram, ou seja, os jovens são influenciados por estas marcas mas constroem seus sentidos de forma singular. O que significa dizer que, ao mesmo tempo em que podem incorporá-las podem também rejeitá-las.
Ou seja, a masculinidade hegemônica pressupõe a predominância de uma certa configuração de feminilidade, constrói uma ação que cria e recria, transforma e ressignifica, provocando rupturas ou permitindo a continuidade e a legitimação das idéias predominantes. Esse processo contém a luta contínua que envolve marginalização, contestação, mobilização, resistência e subordinação.
No conjunto dos nossos dados, identificamos as seguintes marcas identitárias do ser masculino: provedor, dominador, heterossexual e cuidador. Além disso, identificamos outros aspectos que, embora não se constituam em marcas do masculino, podem ajudar na compreensão da forma como os jovens subjetivam as marcas para a definição de suas identidades para além do modelo de ser homem considerado hegemônico.
Provedor
O ser provedor é uma marca identitária da masculinidade que se articula a duas esferas concretas: o trabalho e a família, constituindo-se como duas instâncias de referência para a inserção e o reconhecimento de ser homem. Elas aparecem nas falas dos jovens de uma forma concomitante, porém hierarquizada, como podem ser vistas nos depoimentos.
"...Ser homem é você trabalhar, ter responsabilidade e formar uma família (...) porque o homem só pode ser alguma coisa através do seu trabalho, qualquer que seja ele, entendeu?" (Rafael, 16 anos).
"Ser homem, eu acho que é ter atitude e assim, ter trabalho para manter uma família legal e também ter ética" (Renato, 17 anos).
Essas falas refletem um pensamento voltado para a idéia de que a identidade de ser homem se ancora na sustentabilidade/materialidade fornecida pelo trabalho, para atingir o seu destino de formar uma família. Esse ponto de vista nos faz pensar que o exercício da masculinidade deve assegurar uma díade entre a reprodução social e biológica que perpassa a família, sendo viabilizada por uma esfera sócio-econômica. Nesse sentido, antes de um jovem pensar na possibilidade de criar uma família, deve assegurar a sua inserção no mundo do trabalho. Isso de uma certa forma pode refletir a especificidade dos jovens por nós estudados que se encontram inseridos num curso de qualificação profissional. Junto a essa consideração não podemos deixar de observar que esses sentidos atribuídos ao ser homem estão sendo construídos numa perspectiva idealizada para os jovens atingirem um status de homem adulto.
Esses dados fazem coro com as conclusões de outros estudos acerca do papel do trabalho na construção da identidade masculina. A associação entre ser provedor e ser homem - ainda muito presente no imaginário social - faz com que o trabalho seja uma expressiva marca dessa identidade. Um estudo, realizado com uma amostra de 2 mil indivíduos maiores de 18 anos, em 24 estados brasileiros, por exemplo, constatou uma forte associação da função de provedor à figura masculina 20. Tal dado é tão significativo que a co-participação da mulher na provisão das famílias, encabeçadas por homem, não tem uma visibilidade social 20.
Dominador
O ser dominador é também uma marca identitária masculina recorrente que serve de referência para os homens, em geral, construírem suas identidades. Por trás dessa marca observamos que o poder aparece - dialeticamente - como elemento que estrutura e é estruturado no âmbito das relações de gênero, entendidas como relações entre os sujeitos independente de seu sexo.
O ser dominador aparece implícita e/ou explicitamente nos depoimentos dos nossos jovens:
"Ser homem é ser o chefe da casa, o maioral, aquele que manda" (Márcio, 16 anos).
"Ser homem é (...). É dar liberdade a todos da casa, tipo liberdade de expressão (...) lá em casa eu é que sou o mais novo é mais difícil de assumir esse papel, o papel da autoridade, de quem manda e de quem deve ser obedecido" (Reinaldo, 16 anos).
"...Por exemplo, minha namorada vai poder fazer o que ela quiser, porque eu não sou o pai dela pra mandar nela, eu só vou exigir respeito, pra isso então tenho que respeitar também. E a gente vê pouco isso, o homem quer respeito, mas sacaneia a garota, geralmente é assim" (Rogério, 16 anos).
"...Alcançar os objetivos deles, então muitas vezes ele encara a violência como a melhor forma de subir na vida e em alguma coisa" (Roberto, 16 anos).
Esses jovens nos remetem a diferentes facetas do ser dominador que é atravessado por variados sentidos. Assim, há os sentidos atribuídos ao poder como: pertença do ser homem, como aparece na fala de Márcio; uma concessão de alguém que detém o poder e pode atribuí-lo a outro, como nos faz pensar Reinaldo; uma aspiração para ascender ao status masculino, ainda presente na fala de Reinaldo; um exercício de mando sem opressão, como diz Rogério; e uma impossibilidade do exercício do poder como explicação da violência, como sugere Roberto.
Nos depoimentos dos nossos entrevistados, como vimos, existem resquícios de que a marca identitária da masculinidade relacionada ao ser dominador mantém privilégios materiais, culturais e simbólicos dos homens em detrimento das mulheres, tanto na esfera privada quanto na pública, ocasionando, apesar de muitos avanços, a manutenção de relações de desigualdade de gênero 16. Essa manutenção se dá ou é reforçada porque o poder nas relações de gênero tende culturalmente a se concentrar no masculino, por conta de uma perspectiva hegemônica que permanece no imaginário social. É importante problematizarmos que os efeitos dos movimentos sociais que vêm caminhando na direção de uma perspectiva equânime ainda se situam no âmbito de mudanças periféricas.
Nesse sentido, observamos que esse mesmo poder que estrutura e modela as relações entre os homens pode acabar também por condicioná-los preparando armadilhas para os mesmos. Quando os homens interagem com as mulheres, subentende-se que há um domínio do primeiro sobre o segundo. No cenário da dominação masculina, as vítimas não são apenas as mulheres. Os "homens também estão prisioneiros e, sem se aperceberem, vítimas da representação dominante. (...) O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão e na contensão permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo o homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade" 21 (p. 64).
Heterossexual
A heterossexualidade é uma outra marca identitária atribuída à masculinidade, fazendo com que se entenda o ser homem a partir do momento em que ele se interesse sexualmente pela mulher.
"É gostar de mulher, é ter a sexualidade de homem que é diferente da mulher e que é diferente da de gay" (Márcio, 16 anos).
"Homem não pode recusar mulher, porque aí ele fica falado, entendeu? (...) Até porque nenhuma mãe quer que seu filho seja chamado de bicha, nem o homem quer isso" (Rogério, 16 anos).
A homossexualidade no imaginário social, apesar de ter havido avanços em nossa sociedade no sentido de aceitá-la, ao mesmo tempo se apresenta como objeto de interdições. Isso ocorre, principalmente, pelo fato de a heterossexualidade ainda ser uma pertença da masculinidade para muitos homens e mulheres. Pesquisa realizada em 2002 com uma amostra probabilística de 2.364 informantes, concluiu que houve "unânime rejeição ao homossexualismo masculino e feminino: 89% são contra o primeiro e 88% contra o segundo" 22 (p. 66).
Subjacente às falas, observamos a idéia de que os pólos opostos se atraem e ao se juntarem tanto constituem a identidade do ser homem quanto a da mulher. Em outras palavras, para ser homem deve-se gostar de mulher e vice-versa. Se essas identidades assumirem contornos distintos da via da heterossexualidade podem provocar dissonâncias do ser homem ou ser mulher, compreendidos com base em modelos hegemônicos. Assim, se por ventura um homem não gosta sexualmente de mulher, ele poderá ser classificado/reconhecido a partir de outra identidade que não é a masculina.
Por outro lado, os nossos dados também revelam que a associação mecânica entre homem e heterossexualidade nem sempre ocorre no plano dos depoimentos.
"Pra mim não é o fato do que o cara gosta, se gosta de se deitar com igual, não faz dele menos homem, ele não deixa de ser homem. (...) Olha, quando você me perguntou o que é ser homem eu não falei que era gostar de mulher, eu acho que não se resume a isso. Pode até ser uma característica maior (...) mas também tem homens que gostam de homens, então e daí? Claro que as pessoas zoam, então eles acabam ficando na encolha, mas pra mim eles também são homem" (Rico, 16 anos).
"Pra mim ele [gay] é homem, mas aí ele tem uma outra sexualidade masculina, mas a que domina aqui é maioria é aquela que o homem gosta do sexo oposto" (Tiago, 16 anos).
Essas falas trazem a possibilidade de a hegemonia da preferência ou orientação heterossexual ter outras perspectivas concorrentes. Assim, a predominância da construção da identidade masculina a partir da heterossexualidade necessariamente não impede que posicionamentos alternativos aflorem na discussão do ser homem. Em nossos achados, tanto Rico como Tiago admitem que o homem que gosta sexualmente de outro pode não perder a sua marca identitária da masculinidade. Por outro lado, também apontam que, embora no plano subjetivo isso possa ser aceito, no âmbito social continua sendo uma questão problemática.
Atualmente, já há estudos que apresentam dados no sentido de que a homossexualidade não exclui a possibilidade de ser homem. Gomes et al. 6, em um estudo realizado na cidade do Rio de Janeiro, com homens de baixa escolaridade e homens com ensino superior, concluiu que a homossexualidade é mais tolerada principalmente entre os homens com mais escolaridade, apesar de nem sempre conseguir vivê-la socialmente. Isso aponta para o fato de que, embora alguns segmentos masculinos tenham mudado a sua percepção sobre a possibilidade de homem sentir desejo sexual por outro, ainda há interdições sociais para que se viva modelos alternativos ao da heterossexualidade.
Cuidador
Na ótica dos nossos homens jovens entrevistados, surge uma outra marca identitária do ser homem, traduzida pelo ser cuidadoso. Essa perspectiva pode ser ilustrada pelos depoimentos que seguem:
"Ah! Ele é responsável por cuidar financeiramente da família, e proteger ela, não deixar nada de mal acontecer a ela e orientar a sua família, eu acho que ele é um exemplo a ser seguido, então muitas coisas ele não pode fazer porque outras pessoas dependem dele (...) é ter responsabilidades, assumir o seu papel na sociedade" (Reginaldo, 16 anos).
"É [ter] uma postura correta (...) cuidar da casa e da família, ser um cuidador em sentido grande, ampliado" (Rico, 16 anos).
Essas falas refletem sentidos muito específicos do cuidado masculino que se associam ao ser provedor (sustentar a família) e ao ser protetor (homem que protege a mulher e filhos), imagens recorrentes no senso comum 23.
Ainda na discussão do cuidado enquanto marca identitária masculina, o cuidar de si aparece como uma outra possibilidade do cuidado masculino.
"É saber se cuidar e cuidar da família" (Téo, 15 anos).
"...Porque a gente vai crescendo e adquirindo uma postura mais de homem que tem a ver com responsabilidade, se você tem uma namorada procurar cuidar dela isso é uma sexualidade masculina" (Tunico, 15 anos).
"É o homem gostar de se arrumar pra pegar a garota dele, então tá assim pintoso, cheiroso, arrumado, é tratar a namorada ou a mulher dele bem, assim sexualmente falando, é se importar em dar prazer a ela, essas coisas" (Reginaldo, 16 anos).
Nessa perspectiva, junto à possibilidade de o homem cuidar dele primeiro para poder cuidar de sua família, também surge o sentido de cuidar de si para buscar no feminino a concretização do desejo sexual masculino. Assim, o homem pode se preparar esteticamente para ter êxito em sua corte. Como diz Reginaldo, o homem para viabilizar a conquista - que atestará para si e para outros a sua masculinidade - ele pode se arrumar, se enfeitar.
Seja qual for o sentido atribuído ao cuidar de si, observamos que as falas dos nossos entrevistados caminham na direção contrária do que comumente é trilhado, rompendo com a idéia de que o cuidado seja algo exclusivo do feminino. Gomes et al. 6, por exemplo, em seu estudo com homens de mais de quarenta anos, observaram que o cuidado não era visto como uma prerrogativa do masculino. No entanto, essas diferenças de achados de pesquisa podem ser explicadas a partir de olhares geracionais diferenciados. Assim, aceita esta premissa, poderíamos inferir que a geração dos nossos entrevistados refletem perspectivas distintas das encontradas em gerações anteriores a eles.
A pluralidade da identidade masculina
Além dos sentidos hegemônicos atribuídos à masculinidade pelos jovens, identificamos aspectos que podem - dialeticamente - ser vistos como um contraponto a estes sentidos, que podem atenuá-los ou a eles resistir.
A partir dessa perspectiva, entendemos que esses aspectos que aparecem nos depoimentos dos homens jovens que, embora não sejam recorrentes, de certa forma apontam para diversos desdobramentos atribuídos ao ser homem. Assim, como podemos ver a seguir, ser homem é ser: sincero, honesto, carinhoso e falso.
"...Ser sincero em primeiro lugar. (...) Assumir seu ato..." (Tiago, 16 anos).
"...Ter amor no coração também e ser uma pessoa honesta" (Teo, 15 anos).
"...Falso porque o homem faz intriga, a mulher faz fofoca, que é mais inocente, o homem faz intriga e promove guerra" (Ricardo, 17 anos).
Esses aspectos, se vistos em conjunto, podem apontar ambigüidades entre os sentidos atribuídos ao ser homem, que no caso tanto pode ser sincero quanto falso. Entretanto, se olhados de forma profunda reforçam a existência de masculinidades (no plural)12,13,24, refletindo diferentes estilos de ser homem convivendo com os padrões hegemônicos.
Por outro lado, as fronteiras entre ser homem e ser mulher nem sempre são tão demarcadas como sugerem os modelos hegemônicos. No sentido de ilustrar tal possibilidade, destacamos um depoimento paradigmático que, de certa forma, relativiza todas as demais marcas identitárias quando são incorporadas de uma forma subjetiva pelos sujeitos/jovens.
"... Acho que não tem muita coisa que diferencia o homem da mulher, acho que os dois podem ser responsáveis, como carinhoso, simpático e trabalhador. (...) Na sociedade eu acho (...) tá mudando (...) o homem que sustenta a família, o que manda em casa, responsável pela casa, o que tem mais poder, mais direito, isso tá mudando e muito. Onde eu moro a chefe de família é muitas vezes a mulher, ela é que manda na casa, ela é que tem mais direito. (...) E tem homem também que não se importa de fazer as tarefas da casa, ele também faz as coisas de casa, porque ele e a mulher dele trabalham fora" (Robson, 16 anos).
Esse depoimento pode reforçar a idéia de Connel 12 de que sociedades que não tratam o ser homem e ser mulher a partir da lógica hegemônica, construída com base na polarização entre masculino e feminino, podem servir de cenário em que fronteiras de identidade de gênero desaparecem. Ou seja, esse depoimento apresenta uma certa resistência a essa lógica que reflete um determinado contexto sócio-cultural, expressando e demarcando a forma como a sociedade concebe o masculino e o feminino em instâncias excludentes.
Considerações finais
Com base nos resultados do nosso estudo, observamos que determinadas marcas identitárias da masculinidade - por nós identificadas a partir da relação dialética entre os sentidos dos sujeitos atribuídos à masculinidade e a produção/reprodução de modelos culturalmente construídos - podem gerar agravos à saúde dos homens jovens. A exemplo disso, destacamos que o ser dominador, que por estar culturalmente investido de sua "capacidade"/estímulo de dominar e subjugar os outros, pode se expor mais aos riscos, fazendo com que, no cenário da lógica de dominação masculina, as vítimas não sejam apenas as mulheres. Nele, os homens também podem ser aprisionados, sem que se percebam como vítimas dessa lógica. Assim, o que é tido como privilégio masculino também pode ser uma cilada, fazendo com que o ser masculino, em tensão e contenção permanentes, seja a todo momento testado 21.
Nessa mesma direção, outra marca identitária da masculinidade que podemos tomar como exemplo é a de ser provedor, vista culturalmente quase como uma característica exclusiva de ser homem, pode fazer com que os homens negligenciem sua saúde por conta do trabalho.
Por outro lado, ao identificarmos que os nossos sujeitos são capazes tanto de subjetivar o modelo hegemônico de ser homem quanto de evocar características que possam se contrapor a este modelo, os mesmos já apontam em seus próprios depoimentos a presença de alternativas que convivem com a hegemonia. Eles trazem uma nova perspectiva de ser cuidador e vêem, diferentemente das marcas tradicionais da masculinidade, o homem como ser sincero, honesto, carinhoso e falso. Dessa forma, a subjetivação do modelo hegemônico de masculinidade e os aspectos que servem de contraponto a este modelo podem reforçar a existência de masculinidades (no plural).
Nessa perspectiva, a pluralidade dos sentidos atribuídos ao ser homem aponta para lacunas existentes do modelo hegemônico de masculinidade. Essas lacunas podem ser espaços privilegiados de investimento de ações que se tornem alternativas para lidar com esse público alvo - homens jovens.
Dessa maneira, evitando a redução das ações de saúde a uma única forma de conceber o masculino, com base no protagonismo masculino juvenil, consideramos necessário que jovens sejam envolvidos na (re)significação destas ações. Alguns esforços têm sido feitos nesse sentido. A Organização Mundial da Saúde (OMS) 2,25 tem recomendado a adoção de estratégias visando a um maior engajamento de homens jovens. Para tal, propõem um conjunto de passos articulados entre si, tais como: campanhas mais ancoradas no ethos masculino; qualificação dos profissionais de saúde; diferentes fomentos à forma de participação masculina; organização de grupos operativos com homens jovens dentro dos serviços de saúde numa perspectiva de gênero; encontros de rapazes e moças para se problematizar os modelos de masculinidade e feminilidade, bem como suas implicações no âmbito dos cuidados de saúde, dentre outras.
Junto a essas estratégias, reiteramos que a escuta de homens jovens acerca de suas próprias identidades pode ser um caminho. Na medida em que ocorre essa escuta, além de obtermos elementos para que haja maior adesão às informações sobre a saúde, podemos conseguir um maior envolvimento desses sujeitos nas ações de prevenção e promoção da saúde. Esse envolvimento, por sua vez, pode assegurar que os homens que - tradicionalmente não são vistos como agentes dos cuidados em saúde - protagonizem uma trajetória e uma relação diferenciada com esta área.
Colaboradores
E. F. Nascimento realizou a pesquisa de campo que deu origem ao trabalho e participou na elaboração e redação do artigo. R. Gomes supervisou a pesquisa original e contribuiu na elaboração e redação do artigo.
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Correspondência
E. F. Nascimento
Departamento de Ensino
Instituto Fernandes Figueira
Fundação Oswaldo Cruz
Av. Rui Barbosa 716,
Rio de Janeiro, RJ
22250-020, Brasil
elaine@iff.fiocruz.br
Recebido em 11/Jul/2007
Versão final reapresentada em 22/Nov/2007
Aprovado em 30/Nov/2007