ARTIGO ARTICLE
Pierre Bourdieu e a saúde: uma sociologia em Actes de la Recherche en Sciences Sociales
Pierre Bourdieu and health: a sociological analysis of Actes de la Recherche en Sciences Sociales
Miguel Ângelo Montagner
Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza, Fortaleza, Brasil
RESUMO
Este trabalho objetivou colocar em evidência, ilustrar, descrever e comentar a presença da categoria saúde na obra de Pierre Bourdieu, sublinhando os temas tradicionalmente ligados à sociologia do corpo. Após uma análise sistemática do conjunto de sua obra em termos de sociologia médica e da saúde, fez-se o mesmo no que concerne o principal veículo de expressão de sua linha de pensamento, a saber, a revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, que consideramos o lugar privilegiado no qual se publicou a maioria dos trabalhos cuja referência teórica era a corrente do "estruturalismo genético" de Bourdieu. Foram analisados os artigos publicados entre 1975 e 2001, tanto do ponto de vista temático quanto teórico e conceitual, comparando as mudanças ocorridas nessa revista em relação à temática até então dominante da Revue Française de Sociologie.
Sociologia Médica; Medicina; História
ABSTRACT
This study aimed to highlight, illustrate, describe, and comment on the presence of the health category in the work of Pierre Bourdieu, by underlining the themes traditionally related to the sociology of the body. After a systematic analysis of his work in the sociology of medicine and health, the article also addresses the main vehicle for his line of thought, namely Actes de la Recherche en Sciences Sociales, viewed here as the prime channel for most of the research taking Bourdieu's "genetic structuralism" as the main theoretical reference. We analyze the articles published from 1975 to 2001, from the thematic and theoretical/conceptual perspective, by comparing the changes appearing in this journal in opposition to the model previously adopted by the Revue Française de Sociologie.
Medical Sociology; Medicine; History
Introdução
"Não existe índice mais claro da ruptura com a tradição camponesa do que todos aqueles comportamentos nos quais se exprime uma atitude completamente nova em relação à doença: pode-se imaginar uma negação mais total da moral da honra do que essa complacência consigo e com seu próprio corpo que a 'civilização' incentivou?" 1 (p. 215).
É inegável a importância de Pierre Bourdieu na história e no panorama das ciências humanas na charneira deste século. No Brasil, principalmente após sua morte, assistimos a uma renovação e retomada de sua perspectiva teórica, a par de súbitas reconversões acadêmicas, traduções inéditas e reedições de suas obras.
Perseguir temas específicos e indícios inacabados no conjunto da obra de um autor pode parecer, como pareceria ao próprio Bourdieu, um exercício infrutífero de perfil "escolástico". Mas, considerando a amplitude de seus trabalhos e objetos de estudo, aliada à profusão de propostas novas que significaram uma renovação da sociologia francesa, realizar esse esforço faz parte de uma estratégia de incorporação de seu instrumental e a possibilidade de sua superação, o que propiciaria novas abordagens.
Nossa intenção original foi mapear o aparecimento do tema da saúde e da medicina nas obras de Bourdieu e indiretamente nos estudos daqueles que trabalharam sob sua orientação, tanto no âmbito da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais [École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França] quanto na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales (Actes). Nesse percurso, esperamos ter mostrado como essa problemática acabou por se espelhar nos artigos publicados na Actes, qual conformação o conjunto de seus conceitos assumiu nas obras de seus companheiros e como se tornou patente a importância do corpo na sua teoria e potencialmente para o campo da saúde.
Metodologia
Nosso esforço metodológico centrou-se na análise documental das obras de Bourdieu e na dos autores que com ele colaboraram. No primeiro caso, os textos do autor foram lidos com olhos postos sobre o tema da saúde, da medicina e de temas correlatos. No segundo, perscrutamos todos os números da Actes, artigo por artigo, com a intenção de selecionarmos aqueles que tocaram nos mesmos temas; busca direcionada por categorias previamente definidas e utilizadas pela Revue Française de Sociologie (Revue) em um número especial de 1973, que comentaremos mais adiante neste trabalho. Por meio dos resumos, das citações cruzadas, da leitura dos objetivos declarados nos artigos, selecionou-se um conjunto alargado de textos para uma posterior análise fina e em profundidade, quando então foram rejeitados ou incluídos no corpus final de 48 textos que compuseram nosso objeto de estudo.
Esse corpus foi deslindado com base em duas vertentes: a dos temas dos artigos e a dos conceitos teóricos empregados nas pesquisas descritas pelos autores. A intenção foi a de entender a variação temática da revista Actes em relação à Revue, até então a mais tradicional e representativa da área. E também, compreender a influência e a presença da teoria de Bourdieu nos trabalhos de seus colaboradores, no tocante à sociologia da saúde ou médica, baseando-se nos aportes conceituais ali utilizados ou não.
A medicina nas obras de Pierre Bourdieu
Por paradoxal que possa parecer aos propósitos deste trabalho, é mister salientar que a rigor não há estudos publicados por Bourdieu expressa e especificamente sobre a medicina, a sociologia médica ou da saúde. Mas isso não impede que sua instigante teoria tenha aportado contribuições reais e também potenciais para estudos nessas áreas.
Em seus primórdios intelectuais, nos anos cinqüenta, Bourdieu estava próximo da corrente filosófica ligada a uma reflexão epistemológica voltada para a história da filosofia e das ciências. Nessa época esboçou o trabalho inacabado Les Structures Temporelles de la Vie Affective, para sua tese de Doutorado, sob direção de George Canguilhem. Dessa mesma influência herda a possibilidade de uma carreira destinada à filosofia de linha epistemológica, e, segundo Wacquant, teve como possibilidade objetiva ser pesquisador na Escola Médica de Toulouse 2. Isso denota o interesse precoce de Bourdieu pelo biológico e pela normatividade do social inscrita neste biológico, herança talvez da filosofia de Canguilhem 3.
A seguir, a sua estada na Argélia foi decisiva na passagem da filosofia à etnologia, ao tomar aquela sociedade como objeto de estudo. Nesse período, percebeu que as mudanças que ocorriam na sociedade argelina, submetida a um processo de colonização e "desculturação", passavam por uma redefinição do conceito de saúde e do próprio corpo 1. Em forma de notas etnográficas, mostra então uma sensibilidade e um interesse pelo tema médico nunca desenvolvido plenamente.
De volta à França, Bourdieu tornou-se diretor de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, no Centro de Sociologia Européia, e a partir de então a linha tangencial entre a sociogênese do seu pensamento e a saúde engloba suas orientações diretas de trabalhos de pesquisa e teses. Um primeiro momento de inclusão da medicina como objeto indireto de análise acontece quando, em conjunto com Jean-Claude Passeron, publicam o clássico Les Héritiers 4, no qual analisam o ensino superior francês e coordenam uma pesquisa sobre estudantes de direito, ciências, letras, farmácia e medicina. Nesse livro o interesse maior era os alunos da área de ciências humanas, e os dados sobre os estudantes de medicina serviram como parâmetro de comparação, indicando um modelo de estudante tradicional e em vias de transformação, que deixava de ser aquele grupo que sempre fornecera o estilo clássico da vida estudantil 4.
Esse livro teve como base um conjunto de dados recolhidos entre 1961 e 1964, cuja análise e tratamento por Bourdieu & Passeron formalizam-se no livro Les Étudiants et Leurs Études 5. No entanto, nessa última obra não constavam justamente os dados relativos aos estudantes de medicina, pois se informava em nota de rodapé que o estudo sobre medicina usado para comparação estava em fase de depuração.
Nos meados dos anos 1970, Patrice Pinell faz sua conversão à sociologia bourdieusiana e estuda sucessivamente diferentes aspectos da arena médica: a medicalização da reprovação escolar 6, a medicalização da toxicomania 7 e a história social da cancerologia 8. Também nessa linha de pesquisa, Michael Pollak trabalhou com o tema das identidades sociais dos agentes sociais e sua gestão frente à AIDS 9. Mais recentemente, em 1985, Rémi Lenoir devotou sua tese Sécurité Sociale et Évolution des Formes de Codifications des Structures Familiales 10 ao estudo das transformações das políticas familiares de previdência social e seus instrumentos. Por fim, Marie Jaisson estudou as práticas médicas na cidade de Dijon, França, e, para esboçar o espaço social no qual estas práticas aconteciam, procurou traduzir empiricamente a estrutura destas práticas por meio de medidas estatísticas 11.
No único trabalho assinado por Bourdieu no qual a medicina aparece diretamente, dados estatísticos sobre o universo acadêmico incluindo as faculdades de medicina, aliados a entrevistas profundas e enquetes por telefone, compõem o que o autor denominou uma prosopografia. Nele Bourdieu retomou as idéias de Kant sobre o "conflito das faculdades" e analisou o campo acadêmico francês como um todo 12. Aplicou a mesma lógica kantiana às relações entre as faculdades de medicina, teologia e direito de um lado, e as faculdades de letras, filosofia e ciências humanas de outro. As primeiras correspondem ao pólo dominante do campo científico e as segundas ao pólo dominado.
Assim, a medicina seria uma prática, uma "arte social" sustentada por uma ciência, a biologia. Ela utiliza um poder social legitimamente investido, uma legitimação mais ligada à tradição que a ciência em si. Essa legitimidade ligada às posições estratégicas e de força dentro do campo acadêmico estabelece uma oposição a outras faculdades e disciplinas.
Ao contrário, as ciências humanas são relativamente autônomas em relação ao poder político e sua força é sobretudo científica, e suas faculdades, "dominantes na ordem cultural, são devotadas a se arrogarem, pelas necessidades da construção dos fundamentos racionais da ciência que as outras faculdades se contentam de inculcar e aplicar, uma liberdade que é proibida às atividades de execução, por mais respeitáveis que elas sejam na ordem temporal da prática" 12 (p. 88).
Em seguida, Bourdieu descreve uma outra oposição importante, agora interna às faculdades de medicina, divididas entre uma vanguarda herética, representada pelos biólogos, e um status quo ortodoxo, representado pelos clínicos. Estes, defensores da medicina clínica, "uma arte orientada por uma 'experiência' nutrida do exemplo dos antigos que se adquire no tempo, com a atenção aos casos particulares" 12 (p. 85), representativa de uma maneira de viver e de uma ética, um ofício, pertencem ao grupo mais tradicional da medicina. Ao contrário, os heréticos são os agentes desprovidos de tradição e do capital social, que apostam no capital científico representado pelo progresso terapêutico, oriundo das ciências de base como a biologia.
Do ponto de vista formal e tradicional, pode-se afirmar que aí terminam as análises de Bourdieu e de seus orientados sobre a medicina e a saúde em geral. No entanto, parece possível afirmar que a maior contribuição teórica de Bourdieu para a saúde foi a de redescobrir e recolocar o corpo e sua sociologia na ordem do dia das ciências sociais.
Sendo o ponto geométrico central das práticas em saúde, o corpo é regularmente associado a uma máquina biológica, um mecanismo sincrônico que pode ser deduzido às suas partes funcionalmente coesas. Contribuir para revelar e promover uma nova visão sobre esse corpo corresponde a retomar os aspectos simbólicos e sociais desse objeto transversal, de forma a enriquecer e elucidar todos os aspectos do adoecimento nas sociedades modernas, às voltas com doenças crônicas ligadas aos estilos de vida.
Assim, penso que vale o esforço de destacar o papel do corpo na obra de Bourdieu e as suas implicações para a saúde, pois uma sociologia do corpo revigorada parece, ao meu ver, o caminho real de renovação de uma sociologia da saúde centrada no agente social.
O corpo na sociologia de Bourdieu
Como o apontou Dominique Memmi, seria necessário chegarmos aos anos 60 para que os intelectuais franceses se esforçassem sistematicamente e de modo coerente no sentido de tomar o corpo como objeto legítimo de estudo, como havia proposto Mauss em seu clássico texto Técnicas do Corpo 3. Nessa retomada do corpo como um dado concreto a ser produzido e reproduzido pela sociedade, dois autores incontornáveis são, cada um à sua maneira, Foucault e Bourdieu.
Uma análise mais aprofundada do corpo na obra de Bourdieu foi empreendida por mim em outro momento 13 e aqui retomo somente o fio central de sua teoria, centrado no conceito de habitus. Ele aponta para a centralidade do corpo, como lugar privilegiado de análise do sujeito social e fundamento último da unidade do ser.
Em Bourdieu, o corpo é tomado primeiramente como um fato concreto, uma substância que compõe um contorno delimitado em um espaço físico, uma forma perceptível. Essa forma compõe o corpo real, o físico, ao mesmo tempo percepção estática como uma foto ou uma pintura, e também uma percepção dinâmica, que mostra as maneiras de se comportar, de se portar, locomover, enfim todas as manifestações de uma pessoa.
Se nós existimos como um ponto no espaço físico, o social está inserido no interior deste espaço como uma memória gravada em nossos corpos, como o resultado histórico e composto pelo arbitrário cultural: em ambos os casos, estamos situados e nos definimos como pessoas, por meio de nossa relação com nosso corpo 14. Assim, ele é um reflexo da incorporação da estrutura social e também um vetor de reprodução e perpetuação da dominação.
Nessa linha de raciocínio, no Centro de Sociologia Européia, Bourdieu orientava e possibilitava o desenvolvimento de pesquisas como as levadas a cabo por Luc Boltanski, que buscavam a construção de uma "sociologia do corpo" 15. Esse clássico estudo utilizou uma grande massa de dados quantitativos aliada a entrevistas, gerou várias análises sobre as relações entre o saber médico e as interpretações leigas acerca da saúde e da doença, focando o instrumental bourdieusiano sobre as variações das disposições dos agentes sociais em relação à medicina e ao uso social do corpo, por meio das diferentes relações estabelecidas entre as classes sociais e o corpo socializado 16,17,18.
Nossa recensão até o momento nos mostra que, se Bourdieu pouco estudou diretamente a medicina, tinha uma percepção apurada de seu objeto, o corpo, e em torno deste objeto gravitou conceitualmente durante toda sua obra, aportando-nos um quadro teórico importante.
Estamos aptos agora a empreender a mesma análise a respeito das pesquisas e dos artigos presentes na Actes que concernem tanto ao tema da saúde como ao do corpo, publicados por autores pretensamente reunidos em torno do referencial teórico de Bourdieu.
A revista Actes: expressão teórica do construtivismo genético
A revista Actes foi uma escolha heurística natural tanto por sua importância no campo acadêmico e intelectual como por ter sido um meio de difusão fundamental da nova proposta de se fazer ciência, grandemente reflexiva e crítica. Tornou-se o espaço por excelência da publicação de pesquisas do grupo bourdieusiano que gravitava no Centro de Sociologia Européia. Essa vanguarda, em vias de consagração, percebia dificuldades em definir um espaço próprio de publicação e assim logrou atingir a fundação de seu próprio veículo de divulgação. As revistas científicas têm um papel fundamental e crescente na acumulação do capital simbólico, como já havia constatado Bourdieu quanto à lógica do campo 19.
A Actes foi uma das últimas revistas a ser lançada na França, em 1975, acompanhando uma onda de criação de novos veículos iniciada nos anos 60, dentro do movimento de renascimento das ciências sociais, como Sociologie du Travail em 1959; Revue Française de Sociologie e Archives Européennes de Sociologie em 1960; e Communications e Études Rurales em 1961 20.
Esse seria um espaço de agrupamento e divulgação da perspectiva teórica de Bourdieu. A revista, apesar de recente, conheceu um grande sucesso e sua influência atingiu o domínio internacional. Observando a Tabela 1 percebemos essa penetração, com base na presença da revista nas bibliotecas das instituições de ensino superior.
Note-se ainda que, como apontou Chenu 20, a primeira revista de ciências humanas a tratar da temática da saúde, Sciences Sociales et Santé, criada em 1982, figurava dentre aquelas que apresentavam entre 20 e 100 abonamentos nas bibliotecas pesquisadas, logo depois de L'Homme et la Societé (1966) e Genèses (1990).
A metodologia de Bourdieu é um método sui generis, intrinsecamente ligado à prática científica. Esse método de ensino e de difusão da arte sociológica consiste em um processo face a face, prático e com o objetivo de transmitir um ofício, um habitus científico, "sistemas de esquemas geradores de percepção, de apreciação e ação que são o produto de uma forma específica de ação pedagógica e que tornam possível a escolha de objetos, a solução de problemas e a avaliação das soluções" 19 (p. 96).
Para compreendermos os modos de transmissão desta arte sociológica do grupo da Actes, procuramos delimitar um estilo comum da revista, a exemplo de outros estudos deste tipo 21.
Um habitus de grupo ou de classe pressupõe um conjunto de suas manifestações sob a forma de um estilo 22, verificável empiricamente por meio do modo de confecção e apresentação da revista Actes e de seus aspectos formais, bem como seus aspectos mais gerais. Esse conjunto tomou a forma de uma "ausência de estilo": percebe-se uma variedade grande nas formas de apresentação dos trabalhos, incluindo desde fotos até extratos de textos, documentos diversos retirados de outras publicações, anais de congressos e outros.
Como afirmou Bourdieu, a lógica a presidir as formas iniciais da revista foi uma lógica do "brouillon", do rascunho, do inacabado, do ensaio, de exposição das tentativas não acabadas e dos trabalhos não definitivos. Essa proposta inicial tende a ceder com o sucesso da revista 23.
Além dos aspectos formais, podemos apontar a variação do tipo de conteúdo apresentado, como, por exemplo, resultados parciais ou trechos de pesquisas; conteúdos de livros antigos apresentados novamente aos leitores - sobretudo de autores já clássicos; desenhos; fotografias em profusão nos trabalhos; ilustrações artesanais, retiradas de propagandas comerciais e outras.
Mesmo sem lançar mão aqui de uma apropriada análise de rede social, um índice da existência de um habitus e estilo comum foi a presença de um alto grau de colaboração na escritura dos artigos apresentados entre Bourdieu e outros pesquisadores. No período inicial da revista, de 1975 a 1982, Bourdieu publicou nove artigos em conjunto, de um total de 33, o que significa que 27% das suas publicações portavam um timbre coletivo. Dado o peso da assinatura como ato de acumulação do capital simbólico, a publicação coletiva desse grupo demonstra um valor de forte índice de um habitus comum 24.
A Actes tornou-se um veículo privilegiado de exposição dos trabalhos sobre a saúde, realizados pelo grupo ligado ao autor, por isso delineamos a seguir algumas tendências desse movimento.
A sociologia da saúde na Actes
Na década que vai de 1975 a 1985, a revista Actes publicou exatamente 15 artigos, em um total de 306, referentes à sociologia da saúde. Comparando com o tema da sociologia do campo intelectual, que segundo Pinto atingiu 10% dos artigos publicados no período de 1975 a 1985 na Actes, a sociologia da saúde atingiu em igual período 4,9%, o que representa uma proporção significativa de artigos focando a saúde 25.
Foram selecionados 40 artigos que abordaram os temas da sociologia da saúde ou sociologia médica no período de 1975 a 2001, usando como parâmetros um grupo de descritores escolhidos adrede, baseados naqueles utilizados pela Revue e que constam na Tabela 2. Esses artigos previamente separados foram lidos e analisados como documentos, isto é, elementos informativos e históricos que puderam elucidar os discursos presentes na revista Actes, e a relação destes escritos com uma postura intelectual frente ao tema da saúde. Esse grupo de artigos foi tomado como material heurístico, a partir do qual esboçamos algumas hipóteses, assumindo como pressuposto que esse conjunto espelhou o instrumental de Bourdieu transladado ao campo da saúde. Os oito artigos selecionados, referentes especificamente ao corpo, foram analisados à parte e constituíram alhures um questionamento inicial sobre o "lugar do corpo" na obra de Bourdieu e na saúde 13.
A análise empreendida não incluiu os dois últimos números especiais da Actes sobre o tema da medicina e saúde, pois eles não foram editados por Bourdieu, até então organizador e responsável pelo imprimatur da publicação. Consideramos que a partir de então um novo momento na história da revista começa. Um sinal de mudança foi a formalização de um modo geral de apresentação dos trabalhos e do processo de submissão dos mesmos a um comitê editorial, conforme informa o sítio da revista na Internet (École des Hautes Études en Sciences Sociales, Charte typographe. http://cse.ehess.fr/document.php?id=29, acessado em 20/Set/2007).
Utilizamos para efeito comparativo uma classificação realizada pela Revue, no número especial sobre a saúde de 1973, no momento da consolidação e de uma maior institucionalização da sociologia médica na França 26. Foi o primeiro levantamento bibliográfico dessa espécie, realizado sob os auspícios do Centro Nacional de Pesquisa Científica [Centre National de la Recherche Scientifique - CNRS, França]. Jacques Maître assinou a apresentação do trabalho e esse balanço representou um marco decisivo na constituição do próprio campo da sociologia médica.
Nesse número, o objetivo foi o de traçar uma análise conjuntural das pesquisas francesas em curso ou finalizadas no período de 1960 a 1973, traduzidas em relatórios de pesquisa e livros (1960 a 1973), teses de sociologia ou medicina e artigos de revista em língua francesa (1968 a 1973). O resultado final apareceu sob a forma de um guia bibliográfico, em que estão classificadas sistematicamente todas as obras.
Fizemos uma quantificação das obras de acordo com as categorias criadas pelos organizadores desse número especial e, em seguida, realizamos o mesmo trabalho em relação a Actes, no período de 1975 a 2001, classificando nossos artigos previamente selecionados por temas de pesquisa, eventualmente enquadrados em mais de um deles 27.
Consideramos que a Revue significava naquele momento um lugar representativo e prestigiado de publicação, no qual eram encontrados os grandes temas, os assuntos tradicionais e nobres de estudo.
Vale ressaltar que nossa intenção foi a de comparar os temas tratados em duas revistas diferentes em momentos históricos consecutivos e não as duas publicações em si mesmas. O interesse foi constatar as variações na legitimidade científica da sociologia médica e de seus objetos específicos comparando dois períodos históricos.
Conteúdos temáticos
O resultado desta classificação encontra-se na Tabela 2.
Ao comparamos os resultados, percebemos que História Social da Medicina foi uma das categorias que mais sofreu aumento na quantidade de publicações, atingindo quase 15% do total dos artigos da revista Actes. Os artigos focados sobre momentos específicos, sobretudo aqueles períodos históricos em que a medicina centraliza ou exemplifica algum tipo de mudança no espaço social, passaram a ser o alvo de trabalhos históricos preocupados com o resgate desta busca pela hegemonia discursiva, política e social dos praticantes da arte médica. Da mesma forma que o habitus pode ser apanhado no estudo das práticas dos intelectuais, na maneira como eles difundem e defendem sua visão sobre o mundo social, a medicina também pode ser compreendida em seus momentos de conflito e de luta pela legitimidade dentro da sociedade. A abordagem histórica dos objetos pelo uso de uma análise genética, procurando atingir a desnaturalização destes objetos, é uma característica do grupo bourdieusiano.
A rubrica Estudo Psicossociológico da Instituição sofreu uma redução, passando de 32,2% para 18% do total dos temas. Isso se deve claramente a uma diminuição substancial dos estudos centrados nas estruturas hospitalares, que passaram de 12,1% do total de 32,2% do total, para 0,8% a 18%. Quando se trata de estudos sobre as instituições, manteve-se e concentrou-se o interesse pelo médico enquanto agente social atuante na sociedade como um todo. No primeiro levantamento, a quantidade girava em torno de 15,1% a do total de 32,2%, e no segundo, passou a 16,2% do total de 18%.
A rubrica Medicina e Sociedade envolve um grande número de temas e, a rigor, todo assunto que se refere à medicina diz respeito às relações entre esta prática e a estrutura social na qual ela está envolvida. No entanto, como grandes tendências, podemos perceber algumas alterações significativas. A primeira concerne a um aumento expressivo que envolve uma migração do enfoque em estudos acerca das Tendências e Inovações Tecnológicas, em conjunto com Estudo Psicossociológico da Instituição, para os estudos das relações entre a Medicina e a Sociedade. Os valores passam de 46,3% a 64,1%, mudança que vai das condições internas da prática médica para o mundo social. Preocupa-se em entender a prática e o seu significado. Em suma, entrou em cena o questionamento sobre esse conjunto de saberes milenares e a maneira como ele se justifica enquanto prática sobre os agentes sociais.
Dentro da categoria Medicina e Sociedade houve um grande incremento, de 2,5% a 17%, dos estudos sobre as Representações Sociais da Medicina e da Doença: como se legitimam e se explicam os novos e velhos modelos da medicina e como se alteram, no espaço social, as maneiras como a medicina é apreendida pela sociedade. Da mesma forma, os estudos psicossociológicos da relação corporação médica-sociedade e médico-paciente cresceram substancialmente, chegando a 15,4%.
Em terceiro lugar, os estudos referentes à Economia e Planificação em Saúde, cuja representação estava no patamar de 15,6% do total de 46,3% da rubrica Medicina e Sociedade, o que correspondia a 33,7% de todos os temas classificados. No segundo período, Economia e Planificação em Saúde passou a somente 8,5% do total de 64,1% da rubrica Medicina e Sociedade. Isso significa que as demandas por conhecimentos sobre necessidades e consumos médicos, custos de saúde, política de saúde e seguridade social passaram ao largo das preocupações dos pesquisadores da Actes e não parecem ter a mesma legitimidade acadêmica de outros temas menos aplicados, como o da representação social.
Conteúdos teórico-conceituais
Além da análise por meio dos temas de pesquisa, realizou-se uma outra, teórico-conceitual dos conteúdos dos artigos, acompanhada de uma quantificação.
Os resultados são mostrados na Tabela 3.
Depois de analisado todo o material empírico, percebe-se que dentre os conceitos legados pelo instrumental teórico de Bourdieu, o conceito de campo é de longe o mais largamente utilizado, pois aporta possibilidades e hipóteses de trabalho vastas. Em geral, os autores da área têm utilizado esse conceito como plataforma teórica com base na qual se realizam análises sobre objetos restritos e pontuais.
O conceito de habitus enfrenta dificuldades inerentes à sua origem e peculiaridade. Normalmente, o habitus, seja individual, de grupo ou de classe, é delineado e objetivado pelas suas manifestações, o mais das vezes sutis, intangíveis, complexas. Na pesquisa, as condições necessárias para isso não são fáceis de estabelecer. Podemos pensar aqui nos meios de discernimento da hexis corporal: em geral não há técnicas adequadas de análise da postura, da "elegância", da desenvoltura, dos gestos e afins. Essa metodologia de pesquisa ainda está em desenvolvimento na sociologia. Como exemplos clássicos, o uso da fotografia para esses fins foi publicado no trabalho de Gregory Bateson 28; ou a análise dos corpos na propaganda feminina proposta por Goffman 29.
Mesmo não pertencendo ao conjunto teórico de Pierre Bourdieu, o conceito mais utilizado e que aparece em muitos artigos é o de representação social, seguido muito proximamente do conceito de campo e mais esparsamente do de habitus. Os conceitos de campo e habitus raramente apareceram em conjunto, somente em dois casos isto aconteceu: os pesquisadores utilizaram-se de uma ou outra categoria alternadamente.
Constatou-se maior freqüência do uso do conceito de representações sociais. A meu ver, quando se busca entender o pensamento e as idéias "nativas", daqueles que agem e estabelecem estratégias de ação, faz-se mister encontrar uma instância mediadora que possibilite realizar a transição entre estrutura ou organização social e o indivíduo. Nos trabalhos estudados, o conceito de representações sociais, a despeito de uma razoável utilização do conceito de habitus, foi quem realizou e cumpriu essa lógica de mediação. No instrumental de Bourdieu, ao habitus caberia esse papel; no entanto, no conjunto de artigos analisado esse conceito apareceu somente em cinco casos, o que aponta uma utilização esporádica, mesmo considerando os conceitos de ethos e hexis como pares do conceito de habitus, como soe acontecer nas obras de Bourdieu.
Alguns autores utilizaram conjuntamente o conceito de campo e representação social, em número de sete artigos; ou de campo a par do conceito de habitus - em número de dois - perfazendo um total de nove artigos. Percebe-se claramente que a utilização do conceito de campo impõe ao pesquisador alguma categoria de mediação que possibilite passar da dimensão estrutural à das práticas sociais. Por isso, são raros os casos em que o conceito de campo apresenta uma utilização de forma isolada, somando-se dois casos somente, sem contraponto com os dois outros conceitos citados até aqui.
Por outro lado, o conceito de representações sociais apareceu em muitos trabalhos de forma isolada. Em cerca de sete artigos, foi empregado em relação à idéia de campo e nos outros 11 casos restantes apenas serviu como uma categoria explicativa, sem ligação com o instrumental teórico de Bourdieu. O conceito de habitus, por sua vez, teve a mesma sina: foi usado duas vezes em situação relacional com o conceito de campo, trazendo a análise ao nível do grupo social ou do indivíduo, mas nas restantes duas vezes foi utilizado de forma isolada ou parcial.
Uma abordagem mais recente e de grande importância surgiu dentro desse corpus. A abordagem metodológica de gênero foi utilizada quatro vezes dentro do universo dos artigos selecionados. Cabe relevar essa presença, em torno de 12% do total de artigos, que apontou para uma vertente interessante e significativa dentro da linha teórica bourdieusiana. Ainda, conceitos como "medicalização" e "desclassificação" têm uma boa representatividade e apontam movimentos da prática médica dentro da sociedade.
Por fim, uma ausência inesperada. Contava-se com um maior número de trabalhos ligados à problemática dos estilos de vida, conceito estreitamente ligado a uma teoria da distinção e classificação social, tão bem elaborada na obra de Bourdieu. Do total dos artigos, somente dois trabalhos tomaram como fulcro esse conceito, o que representou 4% do total. Talvez a lógica da busca por assistência à saúde esteja infensa a uma lógica distintiva, talvez esses estudos restem por fazer.
Considerações finais: sociologia da saúde ou sociologia do corpo
O grande valor do trabalho de Bourdieu e de seu grupo para a área da saúde, até o momento, concentrou-se na chamada sociologia da medicina, externa ao espaço médico, de cunho crítico e estrutural, como se constata nos números especiais dedicados ao tema pela revista Actes e nas abordagens empregadas. As exceções residem, por vezes, justamente em autores externos à perspectiva bourdieusiana que publicaram em sua revista, como Goffman, Cicourel e Kleinman 30.
Por outro lado, poucos autores exploraram com profundidade a sociologia do corpo colocada em questão por Bourdieu, aportando novas possibilidades, com as meras exceções talvez de Wacquant 31 e Champagne 32. Vale enfatizar que o corpo sempre se apresenta como um objeto temático transversal e sua transversalidade, ao mesmo tempo, justifica e dilui sua importância: nos artigos presentes na revista Actes, por muitas vezes o corpo aparece como um meio de discussão de temas diversos, como as técnicas corporais, o esporte, o comércio ligado ao corpo, a sexualidade e o gênero 13. Dada a sua precocidade, centralidade e extensão, toda uma análise do conceito na obra de Bourdieu resta a fazer e aprofundar, sobretudo em seus principais livros e artigos 13.
O desenvolvimento e engrandecimento de sua teoria, com a colocação em prática de outros conceitos como o de campo, capital (simbólico, econômico e social), de poder simbólico, illusio e, ao cabo, a formalização de uma teoria geral dos campos, acabou por esconder e diluir a importância do habitus e sua dimensão profundamente corporal, na difusão da obra de Bourdieu. O seu sucesso teórico, constatado por incontáveis aplicações de seu instrumental e a disseminação de categorias que se prestaram a uma leitura economicista ou utilitarista (freqüentemente mal intencionada na forma e no conteúdo), gerou um paradoxo: se a ancoragem corporal do habitus e os tipos de dominação exercidos por meio dele foram a revezes objeto de tematização, não ocorreu, no entanto, a integração e a análise aprofundada deste conceito como base estrutural da obra de Bourdieu, privilegiando-se outros, como poder e violência simbólicos e campo. Dessarte, corre-se um grande risco de tornar escolástico o pensamento do autor, se deixarmos espaço para uma possível leitura "fisiocentrada" que encara o corpo como uma coisa material; "personalista" que trata a ação social como o resultado de um ato puramente individual sem o concurso da sociedade; ou "cerebral" que trata esta mesma ação como puramente consciente; todas posturas denunciadas e criticadas por Bourdieu por meio de seus textos 33.
Como apontou Dominique Memmi 3, Bourdieu indicou certas "estratégias destinadas a transformar o corpo, a aproximá-lo da conformação aceita como legítima" 34 (p. 51) por meio de um conjunto de tratamentos intencionalmente aplicados a todo aspecto modificável do corpo, mas as características ativas da relação indivíduo/corpo e as apropriações realizadas pelo agente social daquilo que ele é (habitus) através de seu corpo, não foram sistematicamente exploradas pelo autor.
Resta a realizar todo um trabalho de afinamento e de colocação em obra de um método e de formas de descrição das características eminentemente positivas da hexis em si mesma, ou então das modalidades de recuperação da capacidade de realizar esta alteração pelo próprio sujeito, tanto quanto possível durável e constante. Igualmente dever-se-ia mostrar e analisar os dispositivos sociais, existentes ou em construção, de modificação coletiva das hexis grupais ou de classe. Opondo-se à "tomada de consciência" assumida como um ato suficiente para a mudança social, Bourdieu aponta que "um trabalho de 'contra-adestramento', que implica a repetição de exercícios, pode, à maneira do treinamento de um atleta, transformar duravelmente os habitus" 33 (p. 248).
Como constamos, se o investimento neste aspecto da teoria da práxis pelos pesquisadores não foi plenamente realizado, as prováveis hipóteses são as de que os conceitos mais escolásticos de sua obra foram os que melhor se prestaram a interpretações utilitaristas e mecanicistas; aqueles que permitiam uma maior distância dos pensadores que lhe eram próximos em relação a uma adesão sem reservas ao seu pensamento; sejam ainda aqueles conceitos que responderam melhor às demandas simbólicas de trabalhos de reflexão sobre o próprio mundo intelectual.
Nesse projeto de uma moderna sociologia da saúde, acreditamos que as possibilidades futuras de pesquisa dentro de seu referencial estarão sensivelmente ligadas ao desenvolvimento de linhas de pesquisa nas quais o conceito de habitus e seu fundamento, o corpo, representarão o cerne. Essas pesquisas estarão ligadas a questões de identidade, de memória dos grupos sociais e de constituição de diferentes disposições corporais e de habitus, crivadas pela estratificação social que engendra os diferentes modos de colocação em cena e de utilização do corpo individual. Assim, falta o desenvolver de uma "sociologia do corpo" dentro do panorama da sociologia da saúde em geral, evitando-se somente a concentração destas análises em torno de temas candentes e específicos como a sexualidade, doenças sexualmente transmissíveis ou AIDS.
Há muito a contribuir para o campo da saúde ao utilizar-se o seu referencial, sobretudo do ponto de vista de uma sociologia na medicina, caracterizada, como na tradição norte-americana, pela inserção de pesquisadores das ciências humanas nas instituições da área da saúde.
Conclusão
Em resumo, desde seus primórdios até seus últimos estudos, Bourdieu mostrou uma profundidade e acuidade metodológica centrada nas práticas humanas e como elas são incorporadas em potência nos agentes sociais. A busca da precisão teórica, do ajustamento de seu instrumental conceitual aos resultados das observações do mundo e os investimentos em pesquisas diversas podem ser resumidos por uma questão central: como a sociedade existe nos indivíduos e como eles procuram escapar desta condenação desconhecida, espécie de pecado original.
Bourdieu foi talvez um narrador lúcido do mundo social, como o de Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Márquez 35, que descreveu o desenrolar de um processo histórico de uma maldição que se repete e renova. Enfim, talvez Bourdieu seja mesmo o autor de um único livro, sujeito a seu olhar característico e sobre um mesmo tema, mas no qual transparece a miríade humana. Assim, e mesmo sem tocar diretamente no tema da saúde, sua obra esclarece algumas possibilidades teóricas e práticas neste domínio.
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Correspondência
M. A. Montagner
Mestrado em Saúde Coletiva
Universidade de Fortaleza
Rua Eduardo Ellery Barreira 29, apto. 703A
Fortaleza, CE
60810-010, Brasil
montagner@hotmail.com
Recebido em 17/Mai/2007
Versão final reapresentada em 25/Out/2007
Aprovado em 23/Nov/2007