NOTA RESEARCH NOTE

 

Esquistossomose em área de ecoturismo do Estado de Minas Gerais, Brasil

 

Schistosomiasis in an ecotourism area in Minas Gerais State, Brazil

 

 

Cristiano Lara MassaraI; Graciela Larissa AmaralI; Roberta Lima CaldeiraI; Sandra Costa DrummondII; Martin Johannes EnkI; Omar dos Santos CarvalhoI

ICentro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, Belo Horizonte, Brasil
IISecretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, são discutidos os modos de transmissão da esquistossomose na localidade de São José da Serra, com 500 habitantes, no Município de Jaboticatubas, Minas Gerais, Brasil. A região ao redor recebe, durante todo o ano, milhares de pessoas para a prática de ecoturismo. A ocorrência de esquistossomose aguda em um casal que viajou para essa área, no carnaval de 2007, motivou este estudo. Exames de fezes foram feitos em 268 moradores, 53,6% da população total. Trinta e cinco (13%) estavam eliminando ovos nas fezes. Comparando os resultados coproscópicos com os de um inquérito feito em 2005, observa-se um aumento da proporção de positivos de 9,6% para 12,5%, entre 56 pessoas que participaram em ambos os estudos. Foram coletados 65 exemplares de Biomphalaria glabrata, sendo 1 (1,5%) positivo. No inquérito malacológico realizado em 2005, em 182 biomphalarias, nenhum exemplar foi encontrado positivo. Esses dados indicam a ocorrência de transmissão ativa de esquistossomose na área, revelando a necessidade de planejamento coordenado no desenvolvimento do setor turístico, incluindo a implantação de programas educativos integrados para a comunidade e, principalmente, para os turistas.

Transmissão de Doença; Esquistossomose; Turismo


ABSTRACT

This paper discusses schistosomiasis transmission in São José da Serra, a village with a population of 500 in the county of Jaboticatubas, Minas Gerais State, Brazil. The area receives thousands of visitors a year for ecotourism. The study was motivated by a case of acute schistosomiasis involving a couple that spent the 2007 Carnival (Mardi Gras) holiday in the area. Stool tests from 268 local residents (53.6% of the population) showed that 35 (13%) were positive for the infection. A comparison with a previous survey (2005) in the same location showed an increase in the schistosomiasis-positive rate from 9.6% to 12.5%, among the 56 individuals who participated in both surveys. A malacological survey of 65 Biomphalaria glabrata snails showed one specimen (1.5%) eliminating cercariae. In a similar survey in 2005, no positive snail specimens were found. The study indicates that active schistosomiasis transmission is occurring in the area, and that integrated educational programs are needed for both the local community and tourists.

Disease Transmition; Schistosomiasis; Tourism


 

 

Surtos de esquistossomose aguda em regiões turísticas estão cada vez mais freqüentes no Brasil. Relatos já foram feitos nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte (Minas Gerais) 1,2, de Recife (Pernambuco) 3,4,5, e de Aracaju (Sergipe) 6 e no interior do Estado de São Paulo 7.

Em Minas Gerais, um local muito procurado para a prática do ecoturismo é o Parque Nacional da Serra do Cipó, região preservada por Lei Federal, que tem 60% de sua área no Município de Jaboticatubas.

O primeiro relato da esquistossomose, nesse município, foi feito por Pellon & Teixeira 8, no inquérito nacional sobre esquistossomose, há mais de 50 anos, ocasião em que foi registrada uma prevalência de 35,7%. A partir desse fato e, em decorrência de o município concentrar um forte apelo para o ecoturismo, a doença tornou-se mobilizadora e ocupou espaço na mídia nacional. Na década de 1960 9, Jaboticatubas ficou conhecida como "capital da esquistossomose". Atualmente, o município é considerado pela Secretaria Estadual de Saúde como de média prevalência (na primeira avaliação censitária, feita no município entre os anos de 1999 e 2006 - numa lâmina de uma única amostra pelo método de Kato-Katz - a prevalência foi de 11,8%), em virtude dos sucessivos tratamentos, realizados durante as últimas décadas em parceria com a Fundação Nacional de Saúde, e após 1999, com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais.

A geografia da região, com cachoeiras, rios e córregos cortando povoados rurais, vegetação típica de cerrado, o acesso fácil e a proximidade de Belo Horizonte, capital do estado, fazem do município um lugar privilegiado, onde milhares de turistas de Minas Gerais, de outros estados e, até mesmo de fora do país, vão buscar lazer e descanso, principalmente em finais de semana e feriados prolongados.

Por esses motivos, hotéis, pousadas, pesque-pagues, balneários e áreas de camping, oferecendo vasta opção de lazer, estão disponíveis em todo o município. A localidade de São José da Serra, distante cerca de 20km da sede de Jaboticatubas por estrada sem pavimentação, recebe, durante todo o ano, visitantes para a prática de camping e turismo ecológico.

No início de 2007, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais foi notificada sobre a ocorrência de dois casos de esquistossomose aguda, atendidos em hospital da rede particular de saúde do estado. O casal infectado relatou contato com água em fim de semana nessa localidade. A secretaria solicitou ao Laboratório de Helmintologia e Malacologia Médica do Centro de Pesquisas René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz, referência nacional para exame e identificação de moluscos do gênero Biomphalaria, um inquérito malacológico e um estudo da prevalência da esquistossomose na área. Foram pesquisadas coleções hídricas na localidade, freqüentada pela população local e pelos turistas, utilizando-se uma concha metálica perfurada. Sessenta e cinco exemplares de moluscos foram capturados em três coleções de água. Esses moluscos foram embalados e etiquetados, encaminhados para o laboratório, medidos e examinados por estímulo luminoso para verificação de cercarias. Os exemplares negativos foram esmagados entre placas de vidro e examinados ao microscópio estereoscópico. A identificação dos moluscos foi realizada pela morfologia dos sistemas renal e genital, segundo Paraense 10, e por biologia molecular 11. Todos os moluscos foram identificados como B. glabrata e um exemplar eliminava cercarias de Schistosoma mansoni. Foi realizado um inquérito parasitológico na população local, utilizando-se a técnica de Kato-Katz 12 , duas lâminas de uma única amostra de fezes por pessoa. Foram examinadas 268 amostras, sendo que 35 (13%) apresentavam ovos de S. mansoni. Os participantes positivos foram tratados com Praziquantel pelo serviço de saúde local, seguindo as recomendações do Ministério da Saúde 13.

Para se entender melhor a situação da esquistossomose no local é importante conhecer a avaliação feita em 2005 por Massara 14. Na época, foram coletados 182 exemplares de B. glabrata e em nenhum deles foi encontrado positivo. Um total de 56 pessoas participou do inquérito em 2005 e neste estudo. Nesse grupo, foram detectados cinco positivos para S. mansoni em 2005 e sete em 2007, indicando, respectivamente, uma taxa de infecção de 9,6% e 12,5%. Dessas sete pessoas positivas no inquérito em 2007, três eram positivas em 2005 e quatro foram casos novos.

Essas prevalências podem ser explicadas, em primeiro lugar, pela associação das condições de vida com a falta de saneamento básico; segundo, pelas medidas apenas pontuais de educação em saúde e; terceiro, pela não utilização, desde 1986, de moluscicida em larga escala no controle da endemia.

A migração também é um importante fator que está associado à doença nessa área. A transformação da ocupação e do uso da terra geram a dispensa de mão-de-obra pelos antigos agricultores, agora pequenos empresários, donos de estabelecimentos turísticos. Empregados dispensados migram para a periferia de centros urbanos, contribuindo para a expansão da esquistossomose nesses locais. Outros permanecem no campo, ficando desempregados, vivendo em condições miseráveis, sendo excluídos do desenvolvimento gerado por essa transformação. Segundo Carvalheiro 15, essa situação e o modelo de desenvolvimento capitalista refletem a expansão e mudança de perfil das populações, alvo das doenças endêmicas.

Entretanto, foram encontrados outros fatores para manutenção da doença na região. Um deles é a presença de Biomphalaria positiva. Esta constatação indica a necessidade de maior vigilância, pois, apesar de baixas prevalências, há risco de expansão geográfica do molusco e conseqüentemente da endemia. Outros fatores são balneários com águas correntes, muitas vezes conectados a criadouros de vetores, as práticas agrícolas, domésticas e de lazer, bem como a própria locomoção no ambiente que requer a travessia de córregos, colocando as pessoas em permanente contato com áreas de risco.

Os dados do presente estudo com caramujo positivo e casos novos de esquistossomose indicam ocorrência de transmissão ativa na área, apesar das medidas de controle adotadas.

Considerando o fato de que essa localidade recebe um número significativo de turistas de áreas endêmicas e não-endêmicas, durante todo o ano, associado à presença de hospedeiros intermediários, somente o tratamento da população local não é suficiente. Fica claro que o problema central da transmissão da esquistossomose se relaciona com a contaminação fecal humana das coleções hídricas, mantida pela população residente. A continuação do ciclo da doença é assegurada pelo lançamento de esgotos sem tratamento nas coleções hídricas e pela população residente durante atividades domésticas e profissionais que envolvem contato com água. Já os visitantes se infectam realizando atividades relacionadas ao lazer e turismo nas mesmas coleções de águas contaminadas. A implantação de saneamento básico associada a programas educativos nas escolas, na comunidade e para os turistas é, sem dúvida, a medida que resultará em benefícios duradouros.

A esquistossomose revela-se, nesse contexto, como uma endemia que atinge populações regionais sócio-economicamente desfavorecidas, e, devido às características locais, como risco para populações de outros extratos sociais que procuram a localidade por razões de lazer ou turismo. Faz-se necessário, portanto, desenvolver estratégias de controle mais adequadas que incluam esses grupamentos populacionais. A modificação do ambiente pelo homem na busca de crescimento econômico, muitas vezes não planejado e coordenado, incluindo a construção de desvios de cursos de água para a irrigação, coincidindo com trilhas e estradas por onde a população circula; represas de armazenamento de água, que são utilizadas para a criação de gado e ainda na recreação e na subsistência, no caso da criação de peixes para pesque-pagues, contribuem para esse quadro. O turismo rural, outra importante fonte de renda, enquadra-se nessa modificação ambiental, transformando antigas fazendas e pequenas chácaras, antes produtivas, em pousadas, balneários e condomínios de luxo, onde a rentabilidade da família e dos moradores locais é maior com menos trabalho braçal. Nesse contexto e segundo Melo & Zech Coelho 16, a poluição do meio ambiente propicia a propagação da doença. De um lado, a contaminação do ambiente com fezes humanas em decorrência da prática generalizada de construção de esgotos que desembocam sem tratamento diretamente nos córregos, favorecendo a infecção dos caramujos. Por outro, a poluição com material orgânico como fonte de alimentação favorece um aumento populacional dos moluscos. Dessa maneira, o turismo sem controle e planejamento contribui para a expansão e transmissão da doença, e, além disto, neutraliza os efeitos positivos de programas de controle 1,2.

 

Colaboradores

C. L. Massara participou do contato com a população, coleta de fezes, análise e interpretação dos dados e redação do artigo. G. L. Amaral participou do contato com a população, coleta e exame de moluscos, exame de fezes, desenho do estudo e contribuiu cientificamente e intelectualmente na concepção do trabalho. M. J. Enk e O. S. Carvalho colaboraram no contato com a população, análise e interpretação dos dados, redação do artigo. S. C. Drummond foi responsável pelos registros dos casos de esquistossomose aguda na Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais e supervisão do trabalho de campo, participou do desenho do estudo e contribuiu cientificamente e intelectualmente na concepção do trabalho. R. L. Caldeira participou da coleta, exame e identificação específica dos moluscos, do desenho do estudo e contribuiu cientificamente e intelectualmente na concepção do trabalho.

 

Referências

1. Enk MJ, Amorim A, Schall VT. Acute schistosomiasis outbreak in the metropolitan area of Belo Horizonte, Minas Gerais: alert about the risk of unnoticed transmission increased by growing rural tourism. Mem Inst Oswaldo Cruz 2003; 98:745-50.         

2. Enk MJ, Caldeira RL, Carvalho OS, Schall VT. Rural tourism as risk factor for the transmission of schistosomiasis in Minas Gerais, Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2004; 99 Suppl 1:105-8.         

3. Barbosa CS, Pieri OS, Silva CB, Barbosa FS. Ecoepidemiologia da esquistossomose urbana na Ilha de Itamaracá, Pernambuco. Rev Saúde Pública 2000; 34:337-41.         

4. Barbosa CS, Montenegro SML, Abath FG, Domingues AL. Specific situations related to acute schistosomiasis in Pernambuco, Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2001; 96:169-72.         

5. Barbosa CS, Domingues ALC, Abath F, Montenegro SML, Guida U, Carneiro J, et al. Epidemia de esquistossomose aguda na praia de Porto de Galinhas, Pernambuco, Brasil. Cad Saúde Pública 2001; 17:725-8.         

6. Jesus AR, Silva A, Santana LB, Magalhães A, Jesus AA, Almeida RP, et al. Clinical and immunologic evaluation of 31 patients with acute schistosomiasis mansoni. J Infect Dis 2002; 185:98-105.         

7. Tomé CM, Cipolli E, Coelho da Silva CLPA, Borges DA, Soares MS. Esquistossomose na estância turística de Holambra (SP, Brasil). In: Anais do 9º Simpósio Internacional sobre Esquistossomose. Belo Horizonte: Programa Integrado de Esquistossomose, Fundação Oswaldo Cruz; 2003. p. 68.         

8. Pellon AB, Teixeira I. Distribuição geográfica da esquistossomose mansônica no Brasil. Rio de Janeiro: Divisão de Organização Sanitária; 1950.         

9. Um caramujo que hospeda a morte. O Cruzeiro 1962; 24 nov. p. 99-107.         

10. Paraense WL. Estudo atual da sistemática dos planorbídeos brasileiros. Arquivos do Museu Nacional 1975; 55:105-28.         

11. Vidigal THDA, Caldeira RL, Simpson AJ, Carvalho OS. Further studies on the molecular systematics of Biomphalaria snails from Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2000; 95:57-66.         

12. Katz N, Chaves A. Pellegrino J. A simple device for quantitative stool thick-smear technique in schistosomiasis mansoni. Rev Inst Med Trop São Paulo 1972; 14:397-400.         

13. Ministério da Saúde. Manual do agente de saúde: instruções para coproscopia e tratamento. 4ª Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2003.         

14. Massara CL. Investigação e análise de estratégias para controle da esquistossomose: um estudo em área endêmica de Minas Gerais - Brasil [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz; 2005.         

15. Carvalheiro JR. Processo migratório. Processo migratório e disseminação de doença. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz/ABRASCO; 1986. (Textos de Apoio de Ciência Social, I).         

16. Melo AL, Zech Coelho PM. Schistosoma mansoni e a doença. In: Neves DP, organizador. Parasitologia humana. São Paulo: Editora Atheneu; 2005. p. 193-212.         

 

 

Correspondência
C. L. Massara
Laboratório de Helmintologia e Malacologia Médica
Centro de Pesquisas René Rachou
Fundação Oswaldo Cruz.
Av. Augusto de Lima 1715, Belo Horizonte, MG
30190-002, Brasil.
massara@cpqrr.fiocruz.br

Recebido em 06/Nov/2007
Versão final reapresentada em 10/Abr/2008
Aprovado em 28/Abr/2008

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br