CARTAS LETTERS
Episódios do El Niño e a distribuição temporal de calazar na Ilha de São Luís, Maranhão, Brasil
El Niño episodes and temporal distribution of kala azar on São Luís island, Maranhão State, Brazil
José M. M. Rebêlo
Departamento de Biologia, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Brasil
Laboratório de Entomologia e Vetores, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Brasil
Em 1934, Madureira Pará notificou o primeiro caso de calazar no Maranhão 1, Brasil, e deste ano até 1967 foram diagnosticados e notificados 53 casos por viscerotomias 2 e dois casos autóctones da Ilha de São Luís 3. Um novo caso autóctone foi descrito somente em 1974 4, e deste ano até 1981 não houve relato da ocorrência de calazar no Maranhão. Porém, em 1982, ocorreu um surto epidêmico, tendo sido descritos por Silva (1986, apud Costa et al. 2) 39 casos autóctones da Ilha de São Luís, que a partir daí, passou a constituir uma importante área endêmica da doença. Para se ter uma noção dessa situação, basta verificar que no período de 1982 a 2003 foram notificados na Ilha 2.559 casos, com grande expansão da doença, chegando a atingir 293 localidades. Os surtos surgiram em intervalos irregulares ao longo dos anos, sem se saber exatamente as causas dos episódios.
Considerando que o calazar é uma parasitose transmitida por vetor biológico, a sua epidemiologia depende da interação de um conjunto de fatores interdependentes (agente etiológico, vetor, reservatório, susceptível e ambiente) e independentes que atuam concomitantemente. Entre esses, a variabilidade climática é apontada como um importante fator que vem afetando a epidemiologia de certas parasitoses e causando impacto na saúde humana. Alguns estudos demonstraram forte evidência da relação entre o fenômeno El Niño e o risco de epidemia de doenças transmitidas por vetores em várias regiões do mundo 5,6, incluindo o calazar no Nordeste brasileiro 7.
Com base nos dados apresentados na Figura 1, que mostra os números de casos anuais de calazar na Ilha de São Luís, distribuídos de 1982 a 2003, fez-se uma relação com os episódios do fenômeno El Niño registrados neste período. Observam-se três importantes incrementos na ocorrência da doença nos anos de 1984-1985, 1993-1994 e 1998-1999. Esses períodos se seguiram imediatamente aos episódios do fenômeno El Niño de 1982-1983, 1991-1993 e 1996-1997, quando a seca afetou o Estado do Maranhão, assim como o Nordeste brasileiro, e muito provavelmente provocou migrações humanas internas, no sentido rural-urbano, e de outros estados nordestinos, favorecendo a introdução do agente infeccioso do calazar na Ilha.
Em 1961, Alencar 8 já afirmava que a migração de outros nordestinos para o Maranhão acabaria por torná-lo um novo foco de calazar. Foi o que aconteceu, pois de acordo com Mendes et al. 9, na década de 1980, o Município de São Luís recebeu grande fluxo migratório oriundo em parte do deslocamento de lavradores que fugiam da seca no Piauí e no Ceará, bem como do êxodo de famílias que viviam na zona rural do estado. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 10, o volume acumulado de entradas no Estado do Maranhão, em 1980, era de 478.878 migrantes; a quase totalidade destes procedia do próprio Nordeste (88,7%), com predominância de piauienses, que representaram 53,3%, seguidos dos cearenses (24,5%), sendo o eixo Teresina-São Luís o de concentração dos mais altos números de migrantes.
Assim, o grande fluxo de pessoas procedentes de áreas endêmicas de calazar, sobretudo, de outros estados nordestinos, afetados pelo El Niño, contribuiu para vulnerar a população local, culminando com o surgimento de epidemias da doença. Estudos têm demonstrado que as principais conseqüências do El Niño no semi-árido estão relacionadas às secas, que além de originar baixa produtividade na agricultura e pecuária, causando escassez de alimento 11, têm efeitos mais insidiosos e indiretos na saúde, como determinante de fenômenos sócio-demográficos e culturais 12. Então, considerar os surtos de calazar assinalados neste trabalho como uma conseqüência dos episódios do El Niño parece constituir uma hipótese razoável, mas não o único fator, pois o surgimento e manutenção da doença dependem também da ocorrência de outros fenômenos inerentes ao ambiente e aos seres humanos e suas atividades.
1. Deane LM. Epidemiologia e profilaxia do calazar americano. Rev Bras Malariol Doenças Trop 1958; 10:431-50.
2. Costa JML, Viana GM, Saldanha ACR, Nascimento MAS, Alvim AC, Burattini MN, et al. Leishmaniose visceral no Estado do Maranhão, Brasil. A evolução de uma epidemia. Cad Saúde Pública 1995; 11:321-4.
3. Fiquene S. Analogias parasitárias, novo tratamento de leishmaniose. Revista Maranhão Médico 1964; 2:9-18.
4. Brandão AAR. Leishmaniose visceral no Maranhão. Relato de um caso. Rev Soc Parasitol Doenças Trop Maranhão 1974; 1:95-9.
5. Kovats RS. El Niño and human health. Bull World Health Organ 2000; 78:1127-35.
6. Nicholls N. El Niño-Southern oscillation and vector-borne disease. Lancet 1993; 342:1284-5.
7. Franke CR, Ziller M, Staubach C, Latif M. Impact of the El Niño/Southern oscillation on visceral leishmaniasis, Brazil. Emerg Infec Dis 2002; 8: 914-7.
8. Alencar JE. Profilaxia do calazar no Ceará, Brasil. Rev Inst Med Trop São Paulo 1961; 3:175-80.
9. Mendes WS, Silva AAM, Trovão JR, Silva AR, Costa JML. Expansão especial da leishmaniose visceral Americana em São Luís, Maranhão, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2002; 35:227-31.
10. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas do Maranhão. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 1984.
11. Rao VB, Hada K, Herdies DL. On the severe drought of 1993 in northeast Brazil. Int J Climatol 1995; 15:697-704.
12. Nascimento MDSB, Nascimento SB, Costa JML, Fiori BIP, Viana GMC, Filho MSG, et al. Aspectos epidemiológicos determinantes na manutenção da leishmaniose visceral no Estado do Maranhão, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 1996; 29:233-40.
Correspondência
J. M. M. Rebêlo
Laboratório de Entomologia e Vetores
Departamento de Patologia
Universidade Federal do Maranhão
Praça Madre Deus 2, São Luís, MA 65025-560, Brasil
macariorebelo@uol.com.br
Recebido em 01/Abr/2008
Versão final reapresentada em 24/Abr/2008
Aprovado em 25/Abr/2008