ARTIGO ARTICLE
Perfil dos idosos residentes em dois municípios pobres das regiões Norte e Nordeste do Brasil: resultados de estudo transversal de base populacional
Profile of the elderly population in two poor municipalities in North and Northeast Brazil: the results of a cross-sectional population-based survey
Juraci A. CesarI, II; Joel A. Oliveira-FilhoI; Grasiele BessI; Rafael CegielkaI; Joel MachadoI; Tatiane S. GonçalvesIII; Nelson A. Neumann IV
IDepartamento Materno-Infantil, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, Brasil
IIPós-graduação em Epidemiologia, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil
IIISecretaria de Assistência Social, Prefeitura Municipal de Paulo Afonso, Paulo Afonso, Brasil
IVCoordenação Nacional, Pastoral da Criança, Curitiba, Brasil
RESUMO
Determinar o perfil de pessoas com 60 anos ou mais de idade residentes em dois municípios pobres nas regiões Norte e Nordeste do Brasil em 2005. Por meio de delineamento transversal e amostragem sistemática, aplicou-se a idosos questionário padronizado domiciliar buscando informações sobre suas características demográficas, nível sócio-econômico, condição de habitação e saneamento, realização de atividades físicas, estado vacinal, problemas de saúde e consumo de medicamentos. Dentre os 1.013 idosos identificados, 528 residiam no Município de Caracol, Piauí, e 487 em Garrafão do Norte, Pará. Cinqüenta e seis por cento possuíam entre 60 e 69 anos de idade, 10% viviam sozinhos, 69% não eram alfabetizados, 8% tinham renda familiar inferior a 1 salário mínimo; em somente 24% dos seus domicílios havia sanitário com descarga e 60% possuíam rádio, televisão e geladeira; 88% referiram pelo menos uma doença crônica, 47% tinham de comprar todos os medicamentos consumidos, 84% foram vacinados contra influenza e pelo menos 90% disseram-se capazes de realizar atividades da vida diária. Entre os idosos estudados, as condições de moradia mostraram-se inadequadas, o acesso a bens e serviços insuficiente e elevado padrão de morbidade.
Saúde do Idoso; Envelhecimento; Fatores Socieconômicos
ABSTRACT
This study aimed to determine the profile of the elderly population (> 60 years) in two poor municipalities in North and Northeast Brazil in 2005. Using a cross-sectional survey with a systematic sample, previously trained interviewers applied a standard household questionnaire on demographic characteristics, socioeconomic status, household conditions, physical activity, immunization status, health problems, and expenditures on medicines. Of the total sample (n = 1,013), 528 lived in Caracol, Piauí State, and 478 in Garrafão do Norte, Pará State. 56% were 60-69 years old, 10% lived alone, 69% were illiterate, 8% had a family income less than the minimum wage, 24% of the households had a flush toilet, 60% had a radio, television, and refrigerator, 88% reported at least one chronic disease, 47% had to purchase all their medicines out-of-pocket, 84% had received influenza vaccination, and 90% were able to perform normal activities of daily living. Elderly people included in this study showed poor household conditions, inadequate access to health care, and high levels of morbidity.
Health of the Elderly; Aging; Socieconomic Factors
Introdução
O envelhecimento populacional é um dos maiores desafios da saúde pública contemporânea, sobretudo nos países em desenvolvimento. Nesses países, a população idosa cresce vertiginosamente, resultado da queda nas taxas de fecundidade, mortalidade infantil e, também, da mortalidade nas idades mais avançadas 1. No Brasil, a população idosa cresceu 36% na última década 2,3,4,5. Atualmente somam 18 milhões, o que corresponde a 10% de toda a população 6. Estima-se que em 2025 supere a casa dos 30 milhões de indivíduos com 60 anos ou mais de idade, tornando o Brasil o sexto país com o maior número de idosos em todo o mundo 7.
Apesar do crescente interesse pelo bem-estar do idoso, estudos representativos sobre esta população são escassos no Brasil, sobretudo em municípios de pequeno porte. Excetuando-se Bambuí, Minas Gerais, onde uma coorte de idosos foi constituída em 1997 e, desde então, sete acompanhamentos já foram realizados, não se encontrou um único estudo representativo sobre essa população em municípios com esse perfil 8. O conhecimento das condições de sobrevivência dessa população nesses locais, na maioria das vezes muito distantes dos grandes centros urbanos e com enormes carências em infra-estrutura básica, pode contribuir para o estabelecimento de programas que possibilitem conceder-lhes melhor educação em saúde e assistência preventiva e curativa e, conseqüentemente, melhorar sua qualidade de vida.
A Pastoral da Pessoa Idosa (ou Pastoral do Idoso) foi criada em 2004 pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida de pessoas com 60 anos ou mais de idade por meio da promoção de ações junto às famílias e à comunidade. Para tanto, líderes voluntários visitam, em média, 10-12 idosos a cada mês em seus domicílios oferecendo cuidados básicos em saúde, educação e integrando-os a famílias e à comunidade. Durante essas visitas, os líderes utilizam um questionário denominado Folha de Acompanhamento Domiciliar do Idoso (FADI), que é posteriormente enviado à coordenação nacional para abastecer o Sistema de Informação da Pastoral do Idoso (SIPI). No primeiro trimestre de 2007, a Pastoral do Idoso contava com 9.158 líderes, em 23 estados brasileiros, acompanhando mensalmente 82.367 idosos 9.
Em virtude da implantação da Pastoral do Idoso nesses pequenos municípios decidiu-se por realizar, como linha de base, o presente estudo em dois deles, sendo um na Região Norte e outro na Região Nordeste do Brasil. O objetivo era determinar o perfil de pessoas com 60 anos ou mais de idade ali residentes. Os resultados desse estudo são apresentados neste artigo.
Metodologia
O presente estudo foi conduzido nos municípios de Caracol, Estado do Piauí, e Garrafão do Norte, Estado do Pará. Caracol localiza-se na região sul do estado e dista cerca de 650km da capital Teresina, enquanto Garrafão do Norte está situado na região norte, próximo à divisa com o Maranhão, a uma distância aproximada de 280km de Belém. A Tabela 1 resume alguns dos principais indicadores desses municípios.
Foram incluídas neste estudo todas as pessoas com 60 anos ou mais de idade residentes nos domicílios visitados. Utilizou-se delineamento transversal pelo fato de ser o mais apropriado para medir diversas exposições e desfechos de forma simultânea, rápida e a um custo relativamente baixo 10.
A coleta de informações foi realizada com base em dois questionários padronizados e previamente testados. Um desses questionários buscava informações sobre o idoso e o outro sobre sua família. Sempre que possível tentou-se aplicá-los diretamente ao idoso. No caso de este encontrar-se impossibilitado de responder, eram aplicados à pessoa que lhe prestava cuidados. No questionário sobre a sua família investigou-se o número de moradores no domicílio, condições de habitação e saneamento, presença de equipamentos domésticos, renda familiar, recebimento de aposentadoria e de auxílio de programas governamentais. No questionário sobre o idoso inquiriu-se sobre suas características demográficas, grau de escolaridade, se vivia sozinho ou acompanhado, atividades físicas realizadas nas últimas quatro semanas, recebimento de vacinas contra gripe, habilidade para realizar algumas tarefas de rotina no domicílio, ocorrência de quedas e fraturas, se portador de alguma doença ou problema de saúde, se consumia algum medicamento, gastos com medicamentos e se recebia aposentadoria.
Seis candidatos com nível superior completo foram selecionados e treinados durante cinco dias úteis. Quatro deles foram escolhidos para realizar entrevistas e os outros mantidos como suplentes para eventuais substituições. A coordenadora (T. S. G.) já havia sido previamente definida em virtude de sua ampla experiência neste tipo de trabalho. O estudo-piloto foi realizado na periferia de Aracaju, Sergipe, e teve por objetivo testar a aplicabilidade e adequação das perguntas, familiarizar o entrevistador com o questionário e tentar reproduzir as mesmas condições em que o entrevistador iria atuar.
As estimativas para este estudo foram feitas com base no nível de significância de 95%, exposição variando de 15% a 40%, poder de 80% e erro máximo de 3,6 pontos percentuais. Baseando-se nesses parâmetros, este estudo deveria incluir pelo menos 739 idosos.
Tomando por base os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), visitando 50% dos domicílios em Caracol e 33% em Garrafão do Norte seria possível obter, respectivamente, 370 e 390 idosos, número suficiente para alcançar o tamanho mínimo de amostra desejado.
A coleta de dados em cada um desses municípios foi realizada em cerca de oito semanas, entre os meses de maio e setembro de 2005. Ao final de cada dia de trabalho, cada entrevistador revisava os questionários aplicados e os entregava ao coordenador para revisão inicial e envio à Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil), para codificação das questões abertas, revisão final e digitação.
O controle de qualidade dessas entrevistas foi feito pela coordenadora do estudo e consistiu na revisão imediata dos questionários e repetição de cerca de 10% das entrevistas ou de partes dela. Essas entrevistas foram escolhidas de forma aleatória ou quando alguma informação parecia destoante em relação às demais.
Os dados foram duplamente digitados, comparados e corrigidos usando-se o programa Epi Info versão 6.04 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos). A análise de consistência, categorização de variáveis, obtenção da listagem de freqüências e avaliação das diferenças entre os municípios foram realizadas utilizando-se o pacote estatístico Stata versão 9.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos).
Resultados
Nos 3.405 domicílios visitados nos dois municípios foram identificadas 1.041 pessoas com 60 anos ou mais de idade, sendo 533 em Caracol e 498 em Garrafão do Norte. Desse total, foram obtidas informações sobre 1.023 deles, totalizando 1,7% de perdas, sendo de 1% em Caracol e 2,6% em Garrafão do Norte.
Oitenta e oito por cento dos questionários foram respondidos pelo próprio idoso, sendo este percentual ligeiramente maior em Caracol (90%) do que em Garrafão do Norte (85%). Essa diferença foi estatisticamente significativa (p = 0,032).
A Tabela 2 refere-se às características demográficas e condições sócio-econômicas da população estudada. A maioria dos idosos residia em área urbana, era do sexo masculino, possuía entre 60 e 69 anos, era de cor da pele parda, casado ou vivia junto com companheiro/a. Todas essas categorias ocorreram em maior porcentual no Município de Caracol, sendo essas diferenças estatisticamente significativas. Chama a atenção o fato de, em Garrafão do Norte, haver cerca de duas vezes mais indivíduos com 80 anos ou mais de idade, de cor da pele preta, solteiros e vivendo sozinhos em relação a Caracol. Cerca de 70% dos idosos amostrados não sabiam ler nem escrever e somente 10% possuíam quatro anos ou mais de escolaridade. Em relação à renda familiar, verificou-se que esta era ligeiramente melhor entre idosos residentes no Município de Garrafão do Norte. No entanto, 8% de todas as famílias possuíam renda inferior a 1 salário mínimo mensal, sendo esta proporção 42% maior em Caracol do que em Garrafão do Norte. Nove em cada dez entrevistados estavam recebendo aposentadoria em ambos os municípios, em geral equivalente a 1 salário mínimo mensal (Tabela 2).
A Tabela 3 mostra que praticamente todos os idosos eram proprietários de suas moradias, dois terços residiam em casa construída de tijolos com piso de cimento. Essas moradias possuíam, em média, seis compartimentos e dois quartos de dormir; somente 25% dos domicílios possuíam água encanada e 60% consumiam água proveniente de cisterna ou poço na comunidade, sendo isto mais comum no Município de Caracol. Sanitário com descarga foi identificado em apenas um quarto de todos os domicílios estudados. Cerca de 30% não possuíam qualquer tipo de sanitário, sendo este percentual significativamente maior em Garrafão do Norte. Praticamente nenhum domicílio estava conectado à rede de esgotos nesses municípios, enquanto que 85% estavam ligados à rede de energia elétrica. Praticamente metade dos domicílios era assistida por algum programa governamental, sendo mais comum o Vale Gás (21%), seguido pelo Bolsa Escola (16%) e pelo Bolsa Família (10%).
A Tabela 4 mostra que 88% afirmaram sofrer de pelo menos uma doença ou problema de saúde, enquanto um terço disse sofrer três ou mais. Dentre os que sofriam de algum problema de saúde, dois terços tomavam remédio para pelo menos um destes problemas, enquanto cerca de 10% tomavam remédio para três ou mais deles. Para aqueles que tomavam algum tipo de medicamento, praticamente metade tinha de comprá-los, enquanto cerca de 30% os recebiam gratuitamente. Dentre os que compravam medicamentos, cerca de 80% gastaram menos de um quarto do salário mínimo mensal e 7% pelo menos metade dele. Pouco mais de 10% dos idosos tiveram alguma queda nas últimas quatro semanas, sendo mais freqüente entre aqueles residentes no Município de Garrafão do Norte (14%) do que em Caracol (9%). Sete por cento de todos os idosos tiveram pelo menos uma fratura depois de completar 60 anos de idade. Finalmente, pelo menos 80% afirmaram ter recebido vacina contra gripe, sem diferença importante entre os municípios (Tabela 4).
A realização de algumas atividades físicas e de autocuidado são apresentadas na Tabela 5. Nas últimas quatro semanas, 80% dos idosos de ambos os municípios fizeram pelo menos uma caminhada, 40% saíram para fazer compras e cerca de um terço para passear. Praticamente todos disseram ser capazes de alimentar-se e vestir-se por conta própria, enquanto pouco mais de 90% afirmaram-se aptos a caminhar e 80% a realizar as tarefas da casa sozinhos.
Discussão
Os resultados obtidos mostram que os idosos estudados possuem baixo nível sócio-econômico, precárias condições de moradia, elevado número de doenças e/ou problemas de saúde e consumo contínuo de medicamentos, o que lhes consome boa parte dos rendimentos. Apresentam ainda elevada ocorrência de quedas, mas baixa fre- qüência de fraturas, e alta taxa de vacinação contra gripe; são fisicamente ativos, capazes de cuidar-se e de realizar as tarefas da casa, mas pouco se divertem. Observa-se ainda que, mesmo entre municípios pobres, há diferenças importantes para vários dos indicadores estudados.
A proporção de idosos vivendo sozinhos vem aumentando no Brasil. Em 1999 eram 2%, em 2001 somavam 13% e em 2007 alcançavam 15% 6,11. Um dos principais determinantes de viver sozinho é a renda familiar. Estudo realizado em São Paulo mostrou que a prevalência de idosos vivendo sozinhos era de 9,2% entre aqueles com renda de até 1 salário mínimo mensal e de 41,8% para aqueles com renda superior a 3 salários mínimos mensais 12; na periferia de São Carlos, São Paulo, 12,2% viviam sozinhos 13. Neste estudo, cerca de 10% dos idosos estudados viviam sozinhos, sendo este percentual significativamente maior em Garrafão do Norte, onde a renda familiar média era maior e havia maior proporção de indivíduos aposentados.
O grau de escolaridade revela importantes desigualdades no Brasil. Enquanto 20% dos brasileiros com 60 anos ou mais de idade não sabem ler nem escrever 11, na periferia de São Carlos são 56% 13 e em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 10% 14. Neste estudo, 69% não eram alfabetizados. Isso confirma a enorme disparidade regional e a maior necessidade de investimentos nesta área, sobretudo em municípios como os aqui estudados.
A renda do idoso é um dos principais determinantes do seu estado de saúde. Em geral, idosos com renda mais baixa apresentam piores condições de saúde, função física e menor uso de serviços de saúde 15. Neste estudo, a renda média dos idosos foi bastante baixa. Considerando-se que havia em média quatro pessoas nos domicílios onde eles residiam e que e a renda mensal média foi de 2,2 salários mínimos, cada idoso dispunha de cerca de US$ 3,00 por dia para sua manutenção. No Brasil como um todo, o terço mais pobre das famílias com idosos apresenta renda per capita também de US$ 3,00 por dia 11. Ou seja, a renda média de todos os idosos de Garrafão e Caracol é ainda inferior à média do terço pior dos idosos brasileiros. Isso é compatível com o quadro de precariedade em que sobrevive essa população nessas duas localidades.
A aglomeração familiar é uma das características da pobreza. Estudos conduzidos na periferia das cidades de São Paulo 16, Fortaleza (Ceará) 17 e São Carlos 13, revelaram prevalência de famílias multigeracionais entre idosos de 59%, 75% e 85%, respectivamente. Em Caracol e Garrafão do Norte, não foi diferente. Três de cada quatro idosos viviam com familiares. Nesses municípios, que estão entre os mais pobres do Brasil, a presença de um idoso no domicílio significa aumento da renda familiar, visto que 90% deles estavam recebendo aposentadoria. Para se ter uma idéia, nessas mesmas localidades, enquanto 35% das famílias com idosos apresentavam renda mensal inferior a 1 salário mínimo, nas famílias com crianças menores de cinco anos isto ocorria para 68% delas. Parece, portanto, possível sugerir que o idoso funciona, também, como uma fonte geradora de recursos às famílias nesses dois municípios.
As condições de moradia da população estudada mostraram-se bastante inadequadas, sobretudo no que se refere ao saneamento básico. A presença de eletrodomésticos também ficou aquém do poder de compra das famílias. Estudo sobre saúde infantil nesses municípios mostrou que famílias com muito menor renda apresentam maior disponibilidade de eletrodomésticos em relação aos domicílios onde há idosos. Possivelmente, a renda por eles auferida destina-se, sobretudo, à aquisição de alimentos e de medicamentos, como será discutido mais adiante. Chama a atenção ainda o fato de estudos que tratam do perfil do idoso não descreverem suas condições de moradia, como se isto não fosse um determinante importante do seu bem-estar e, por conseguinte, do seu padrão de morbimortalidade.
Os programas de assistência social do governo federal têm contribuído para a melhoria do poder de compra das famílias 18. Em Caracol e Garrafão do Norte, praticamente metade dos domicílios dos idosos era assistido por algum programa governamental, sendo mais comum o Vale Gás, seguido pelo Bolsa Escola e, por último, pelo Bolsa Família. Nos últimos anos, a renda per capita de famílias com idosos foi a que mais aumentou. No grupo com 60 anos ou mais, a renda sofreu um incremento real de 43%, enquanto que para aqueles indivíduos de 20 a 29 anos de idade, por exemplo, a variação foi de 19,3%. Isso, segundo os autores, contribuiu para uma melhora diferenciada no estado de saúde de pessoas idosas, principalmente entre as de baixa renda 19.
Como era de se esperar, a prevalência de doenças crônico-degenerativas é alta entre idosos. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1998, 69% dos entrevistados com 60 anos ou mais disseram-se portadores de pelo menos uma doença crônica 15; em São Paulo 16, foram 86%, em São Carlos 13, 75% e em Fortaleza 17, 92%. Cerca de nove em cada dez idosos estudados em Caracol e Garrafão do Norte referiram algum problema de saúde. Esta prevalência não é diferente de outras localidades. O agravante é que, diferente de outras localidades, os idosos desses dois municípios, sobretudo os de Garrafão do Norte, não dispunham de serviços de saúde suficientes para atender às suas necessidades, inclusive no que diz respeito a medicamentos básicos, como mostrado a seguir.
O consumo de remédios é extremamente alto entre idosos. No Rio de Janeiro, nove em cada dez mulheres estudadas consumiam diariamente pelo menos um medicamento. Em média, o consumo diário era de quatro remédios, sendo 17% deles totalmente inadequados ao uso 20. Em Belo Horizonte, Minas Gerais, o gasto mensal médio por aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) chegava a US$ 39 21. Em Caracol e Garrafão do Norte, 60% dos idosos disseram tomar medicamentos para pelo menos uma doença. No entanto, somente 30% deles os conseguiam gratuitamente. Os demais tinham de comprá-los, o que consumia boa parte da sua renda.
Quedas representam um sério problema aos idosos e estão associadas a elevados índices de morbimortalidade, redução da capacidade funcional e institucionalização precoce 22,23. As quedas resultam principalmente da instabilidade postural, decorrente de doenças, uso de medicamentos, ambiente físico inadequado, entre outros. A taxa de queda entre idosos é da ordem de 30% ao ano, aumentando para 40% entre aqueles com 80 anos ou mais de idade 22. No Município de São Paulo, 31% dos idosos disseram ter caído nos 12 meses anteriores ao inquérito. Nesse mesmo estudo verificou-se que, quanto maior a incapacidade para as atividades da vida diária, maior o risco de quedas 24. Entre idosos atendidos em um hospital público de Ribeirão Preto, as quedas foram mais comuns naqueles de maior idade e decorrentes de ambiente físico inadequado e conseqüente à doença e uso de medicamentos 24.
Neste estudo, cerca de 10% dos idosos tiveram alguma queda nas últimas quatro semanas, sendo mais freqüente entre aqueles residentes no Município de Garrafão do Norte (14%) do que em Caracol (9%). Além das causas já mencionadas, sobretudo, em Garrafão do Norte, o idoso tem de realizar tarefas que aumentam a exposição a quedas e, conseqüentemente, a probabilidade de vir a cair como, por exemplo, apanhar água fora do domicílio e auxiliar na atividade agrícola da família. Apesar de freqüentes, essas quedas não foram graves visto que somente 7% deles disseram ter sofrido alguma fratura após completar 60 anos de idade.
A vacinação contra influenza é a principal forma de prevenir e reduzir a morbimortalidade entre idosos 22. São poucos os estudos de base populacional que investigam a cobertura vacinal contra influenza entre idosos. Em 2001-2002, essa cobertura vacinal em três municípios da região metropolitana de São Paulo alcançou 67% 25 e em Botucatu 63% 26. Neste último, a proporção de vacinados variou consideravelmente conforme a idade. Entre aqueles com 60 a 64 anos, a cobertura foi de 41% contra 80% naqueles com 75 anos ou mais.
Em Caracol e Garrafão do Norte, pelo menos oito em cada dez idosos disseram ter recebido pelo menos uma dose de vacina contra influenza no passado. Esta maior cobertura em relação a municípios mais desenvolvidos pode ser explicada pelo tempo de recordatório referido - nos estudos conduzidos nos municípios paulistas o período referido foi de 12 meses, enquanto neste estudo foi em qualquer momento no passado - e do tempo decorrido desde a coleta de dados que, neste estudo, foi realizada em 2005 e nos outros em 2001-2002, quando havia grande resistência por parte dos idosos e quase nenhum incentivo à sua realização por parte dos médicos 27. Editorial recente sobre o assunto sustenta que há necessidade de aumentar e homogeneizar a cobertura vacinal entre idosos. Para tanto é necessário priorizar idosos de menor idade, de maior escolaridade, residentes em zona rural e portadores de doença crônica 28. Acrescentaria também como prioridade, idosos residentes nos pequenos municípios onde a estrutura em saúde é muito deficiente ou quase inexistente, como é o caso de Garrafão do Norte.
A avaliação das atividades de vida diária, que incluem a realização de autocuidado tal como banhar-se, vestir-se e deambular, entre outros, é freqüentemente utilizada como indicadores de incapacidade física refletindo o nível de comprometimento dos idosos 22. Em Bambuí, cerca de um quarto da população idosa mostrava-se incapaz de autocuidar-se. Mostrou também que, quanto maior a renda familiar, o grau de escolaridade e melhor estado geral de saúde, menor a necessidade de cuidador 29. Tanto em São Paulo 16 quanto em São Carlos 13, cerca de metade dos entrevistados referiu a necessidade de ajuda para realizar pelo menos uma tarefa da vida diária.
Em Caracol e Garrafão do Norte, praticamente todos os entrevistados disseram-se capazes de realizar as avaliações das atividades de vida diária. Além disso, pelo menos oito em cada dez disseram-se aptos a fazer as tarefas da casa e a realizar caminhada sem o auxílio de outras pessoas. Ao mesmo tempo em que as dificuldades de viver em um município pobre levam a população idosa a freqüentes quedas pela maior exposição como anteriormente mencionado, eles também propiciam maior atividade física, o que pode refletir na capacidade funcional muito superior à observada em outras localidades. A dependência é o maior temor nessa faixa etária e evitá-la ou postergá-la passa a ser uma função do idoso, da família e da equipe de saúde.
Este estudo mostrou as precárias condições em que sobrevivem os idosos nesses municípios. Excetuando-se a realização de atividades da vida diária e a ocorrência de quedas, para a grande maioria dos indicadores estudados (renda familiar, aglomeração domiciliar, grau de escolaridade, condições de habitação e saneamento, imunizações, prevalência de doenças crônico-degenerativas e acesso a medicamentos) os idosos de Caracol e Garrafão do Norte estiveram em desvantagem em relação a indicadores observados em outras localidades como Bambuí, cidade de São Paulo, São Carlos e Botucatu e Fortaleza. Isso mostra, além da evidente necessidade de programas em atenção a essa população, as múltiplas realidades sociais e de saúde existentes no país que precisam ser levadas em conta quando do estabelecimento de programas em nível nacional. Por exemplo, nos dois municípios estudados, a ocorrência de quedas, de fraturas e a realização de avaliação das atividades de vida diária não se mostraram tão prevalentes quanto em Bambuí, São Paulo ou em São Carlos. No entanto, o acesso a bens e serviços foi extremamente precário nos dois municípios, sobretudo em Garrafão do Norte. Essas diferentes realidades requerem diferentes necessidades que devem ser consideradas quando do estabelecimento de programas nacionais.
A atenção à saúde do idoso é um dos mais importantes desafios a serem enfrentados pela sociedade brasileira nos próximos anos. Há urgente necessidade de estabelecer programas específicos em atenção a essa população. Esses programas deveriam incluir desde a reintegração social do idoso até o manejo adequado dos seus problemas, passando pela adaptação da infra-estrutura existente às suas necessidades e limitações. Nesse sentido não somente o poder público deveria estar mais atuante como também o setor privado e as organizações não-governamentais poderiam contribuir de forma mais efetiva, como é o caso da Pastoral do Idoso recentemente criada. Essa contribuição poderia se dar no sentido de evitar o isolamento social dessa população por meio da promoção de atividades comunitárias, prestar assistência continuada a idosos que vivem sozinhos, prevenir a ocorrência de incapacidades, facilitar o acesso a bens e serviços que lhes permitam vida digna e tratamento apropriado e continuado aos seus problemas de saúde, monitorar e garantir cuidados adequados àqueles institucionalizados, priorizar o idoso em maiores necessidades, que são os de menor poder aquisitivo, os de maior idade, os quer vivem sozinhos, os institucionalizados, os que residem nos pequenos municípios, entre outros. Do contrário, será mais um desafio coletivo não vencido com importantes repercussões em nível individual.
Colaboradores
J. A. Cesar delineou o estudo, coordenou a coleta de dados, realizou as análises de consistência e final e redigiu o artigo. J. A. Oliveira-Filho preparou o banco de dados e auxiliou nas análises de consistência e final e na redação do artigo. G. Bess, R. Cegielka e J. Machado contribuíram na revisão e digitação de questionários e auxílio na análise de dados e na redação do artigo. T. S. Gonçalves supervisionou a coleta de dados e auxiliou na redação final do artigo. N. A. Neumann auxiliou no delineamento do estudo, análise de dados e redação final do artigo.
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Correspondência
J. A. Cesar
Pós-graduação em Epidemiologia
Universidade Federal de Pelotas
Rua Marechal Deodoro 1100, sala 313
Pelotas, RS, 96020-220, Brasil
jacesar@terra.com.br
Recebido em 03/Set/2007
Versão final reapresentada em 19/Nov/2007
Aprovado em 21/Dez/2007