RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Claudia Abbês Baêta Neves

Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil. abbes@luma.ind.br

 

 

SAÚDE: A CARTOGRAFIA DO TRABALHO VIVO. Merhy EE. 3ª Ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2002. (Saúde em Debate, 145).

ISBN: 85-271-0580-2

Cartografando na saúde os "inconscientes que protestam"

Foucault 1 chamava atenção para a emergência, desde o século XIX, de uma nova tecnologia de poder que funciona tomando "posse da vida desde o orgânico ao biológico". Ele a denomina de biopolítica e mostra que ela se exerce tomando a população. Já não toma mais o corpo para individualizar, docilizar e disciplinar, mas o toma para operar uma individualização que recoloca os corpos nos "processos biológicos de conjunto", como fenômenos coletivos que só ganham pertinência no nível das massas. Apesar de funcionar de modo inverso às antigas tecnologias de poder da soberania - expressas na vontade e no direito do soberano de "fazer morrer e deixar viver" - e da disciplina - que rege a multiplicidade dos homens para torná-los individualidades a serem controladas, treinadas e vigiadas -, o biopoder não as apaga. Ele as conjuga, "penetrando-as, perpassando-as e modificando-as" e, em seu exercício de "fazer viver e deixar morrer" toma a vida do homem como ser vivo, como espécie.

Do ponto de vista biopolítico, esses processos de intensificação da vida estão incondicionalmente conjugados aos processos de ativação das forças produtivas e de sua reprodução, pois o modo de produção capitalista, hoje, materializa-se não só em toda a sociedade e em todas as relações sociais, mas também, e, primordialmente, no governo da "natureza humana" e da vida em sua virtualidade. Os afetos, o conhecimento, o desejo são fortemente incorporados ao atual regime de acumulação capitalista.

O funcionamento generalizado do poder no "capitalismo mundial integrado" 2 vai ser apontado, por Negri & Hardt 3, como uma nova forma de soberania chamada Império. O império é sem limites e sem fronteiras em vários sentidos, desde o englobar a totalidade do espaço-mundo, apresentando-se como ordem a-histórica, eterna, definitiva, até a penetração na vida das populações, nos seus corpos, mentes, inteligência, desejo e afetividade. Ele se encarrega positivamente da produção e da reprodução da própria vida organizando a totalidade das atividades da população.

Prolongando a intuição foucaultiana sobre o biopoder, os autores mostram que o poder agora não é mais restritivo, punitivo e não se exerce verticalmente, mas sob a forma de uma rede horizontal esparramada, entrelaçada ao tecido social e à sua heterogeneidade, articulando singularidades étnicas, religiosas minoritárias, e requerendo, com isto, novas modalidades de controle e primordialmente de luta.

É nesse campo de exercício dos poderes: as ciências, o capital, o Estado, a mídia, em seus hibridismos e flexibilizações no capitalismo contemporâneo que Merhy analisa os processos de reestruturação produtiva no trabalho em saúde, afirmando que, hoje, o território em disputa é o campo de ação do trabalho vivo em ato, na sua capacidade de imprimir novos arranjos tecnológicos e rumos para os atos produtivos em saúde.

O livro de Merhy, em sua terceira edição, reúne um conjunto de textos tecidos na interface entre os processos de gestão e cuidado em saúde, e tem como idéia-força a problematização dos modos cotidianos de se produzir saúde tendo como plano político-metodológico a análise micropolítica do trabalho vivo em ato. Utilizando o método cartográfico acompanha, no cotidiano das ações em saúde, as produções/efeitos das tecnologias de reestruturação produtiva atinentes às estratégias contemporâneas de acumulação do capital, em suas materialidades e imaterialidades, chamando atenção para a centralidade que o capital financeiro vem assumindo na biopolítica das práticas de gestão e atenção em saúde. Ao mesmo tempo, oferta uma "caixa de ferramentas" que funcione com potência de bússola para o pensar num terreno de tensionamentos e desafios, em meio aos quais o "agir em saúde" se afirma como experiência radical de (re)invenção da saúde como bem público e potência de luta "a serviço da vida individual e coletiva".

Na "caixa de ferramentas" utilizada pelo autor temos conceitos-força que compõem o plano de consistência para as análises micropolíticas, advindos dos campos da filosofia, da economia política, da saúde pública que funcionam indagando "o que se passa entre", nos caminhos que se criam por entre impossibilidades no cotidiano das práticas de saúde. Desde o início do livro, Merhy anuncia seus aliados nesta empreitada, quais sejam: "os inconscientes que protestam".

Temos já na apresentação um "convite-convocação" para alguns deslocamentos, seja dos territórios instituídos que nos polarizam e/ou polarizamos como de protagonismo ou de vítimas do estado de coisas, seja da armadilha transcendente que nos circunscreve como sujeitos da razão, já constituídos, cujas ações se balizam em garantias prévias, fora do plano das relações, "das misturas". Plano esse, no qual experimentamos apostas, afecções coletivas em meio às quais nos des-subjetivamos, na porosidade dos "muitos em nós" e em meio aos quais produzimos outros sentidos e reinventamos a nós e a nossas ações.

Nos primeiro e terceiro capítulos e apêndice 3, o autor sinaliza que, desde o final do século XX vivemos um novo ciclo de acumulação do capital cujos processos de reestruturação produtiva e inovações tecnológicas vão incidir primordialmente no terreno do trabalho vivo, ou seja, nas tecnologias leves e leve-duras. Trazendo essas reflexões para o campo da saúde, mostra a pouca incidência de estudos que atentem para a micropolítica desta transição e os limites das análises que se estruturam em torno de algumas correntes marxistas da Sociologia do Trabalho, que se pautam no modelo fabril dando acento nas críticas ao modelo médico hegemônico da medicina tecnológica. Para o autor é preciso atentar para o fato de que essa crítica já foi incorporada e laminada pelo capital financeiro, que se "pluga" nos processos do trabalho vivo por meio das proposições da Atenção Gerenciada (AG) que deslocam a "microdecisão clínica pela administrativa", impondo nova forma tecnológica de constituir o próprio ato de cuidar e o modo de operar a sua gestão.

Chama atenção para como a AG tem sido "olhada com carinho" por governos locais, principalmente da América Latina, e organizações internacionais que têm grande influência para criar temáticas para os projetos de reforma na saúde. No Brasil, esse ideário ganha força entre os prestadores de serviço de saúde vinculados aos seguros privados, e vem se difundindo nos veículos de comunicação como solução para a "crise da saúde", sua inoperância e seu alto custo para o Estado brasileiro. Agrupa-se a isso, hoje, o namoro do governo brasileiro com propostas de transformação dos hospitais públicos em Equipamentos Sociais, que buscariam complementos financeiros no mercado de consumidores individuais e/ou coletivos disponíveis.

Mostra que o lócus de discussão da reestruturação produtiva se faz nos modos de se fazer e gerir os processos de cuidado, atentando para o que chama dos quatro atores-chave na construção dos modelos contemporâneos para a produção do cuidado: os captadores de recursos e administradores, os financiadores, os provedores e os consumidores.

O campo de atuação privilegiado da lógica de reestruturação produtiva, expressa sob a ótica acumulativa do capital financeiro, é o dos processos de cuidado e sua gestão, ou seja, o território das tecnologias leves e leves-dura, campo este, paradoxalmente, o dos projetos anti-hegemônicos dos que lutam pela saúde como bem público e estão comprometidos com uma lógica vitalista e de dignificação do cuidado.

Nos segundo e quarto capítulos e apêndices (1 e 2), discute os diferentes modos do agir humano, nas formas de trabalho morto e vivo, em suas diferenciações, combinações e nas capturas e subversões de um sobre o outro nos atos produtivos. Retoma o conceito de tecnologia, desenvolvido em trabalhos anteriores, num ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas, fazendo um exercício micropolítico de análise sobre o que se produz no encontro entre o médico e o usuário, e as caixas de ferramentas tecnológicas que este profissional utiliza em seus desdobramentos materiais e imateriais.

Ao afirmar que o trabalho em saúde é centrado no trabalho vivo em ato, mostra que este não pode ser globalmente capturado pela lógica do trabalho morto, expresso pelos equipamentos e pelo saber tecnológico estruturado, pois se afirma em tecnologias relacionais, nos encontros entre subjetividades que portam um grau de liberdade significativo nas escolhas do modo de fazer esta produção. O ato clínico em saúde se dá em meio à existência efetiva do trabalho vivo em ato, e deste modo implica uma imprevisibilidade que impossibilita, fora do encontro, marcar a subsunção de um pólo sobre outro, de uma valise sobre a outra, pois ele é construído pela ação territorial dos atores em cena, "no ato intercessor do agir em saúde". Desse modo, é um espaço aberto à exploração de potências nele inscritas, em imanência com a ação de dispositivos disparadores de desvios para novas subjetivações e reinvenções do agir em saúde. É nesse entendimento que o método cartográfico se afirma indagando o que se passa? Quais os princípios ético-políticos que neste ato se materializam? Com que modo de vida me co-responsabilizo? Em meio a que processos de produção de autonomia, de produção de saúde, afirmo minhas intervenções?

O agir em saúde, em sua micropolítica, traz à cena as tensões autonomia versus controle em meio às quais se constroem as ações humanas nos ambientes produtivos em saúde. O ponto de inflexão de suas análises se faz no entendimento que é na efetivação da tecnologia leve do trabalho vivo em ato na saúde, expresso por relações intercessoras que têm como operação chave o encontro usuário/trabalhador de saúde, que se faz o território de disputa da reestruturação produtiva em saúde. Nesse território impreciso é que se expressam os modelos tecnoassistenciais em disputa da saúde como bem de mercado regido pela acumulação do capital e os projetos de saúde como bem público e patrimônio coletivo e individual de uma sociedade.

Os fluxos de conhecimento, de afeto, de desejo e de comunicação são valores indestrutíveis e imprevisíveis em suas conexões. Esses fluxos, ao mesmo tempo em que se tornaram o "capital fixo" ou a base dos vínculos produtivos imprescindíveis para acumulação do capital, são potencialmente perigosos a esta acumulação, pois portam a potência vigorosa das linhas de escape da resistência, cuja multiplicidade se afirma num revolucionar-se constante.

Para Merhy, a superação do modelo médico hegemônico neoliberal implica o gerenciamento das organizações de saúde de modo mais coletivo, com ordenamento organizacional coerente com ações em saúde voltadas para uma lógica "usuário-centrada, que permite a construção, no cotidiano, de vínculos e compromissos estreitos entre trabalhadores e usuários na formatação das intervenções tecnológicas em saúde, conforme suas necessidades individuais e coletivas".

Aceitando o convite do autor, "crie sua leitura e aproveite do jeito que bem entender", nos indagamos: se entendemos que a análise micropolítica nos desloca do terreno das relações entre unidades previamente constituídas, tais como sujeito e objeto, como apreender o que se passa nos encontros em saúde, na micropolítica dos atos relacionais, operando com uma lógica pólo centrada? É possível pensar o trabalhador de saúde como coadjuvante nesse processo, reagindo a apendicularidade com que o usuário tem sido hegemonicamente colocado nas práticas de produção de saúde? Pensamos que se nossos aliados são os "inconscientes que protestam", eles só se produzem no paradoxal exercício imanente de descentramentos e deslocamentos dos pólos instituídos, fora das lógicas centradas, sejam elas profissional centrada, usuário centrada ou mesmo capital financeiro centrada. Não seria o caso de pensarmos que o que orienta nosso plano de intervenção são as relações que se fazem por entre estas "unidades/pólos"? Não estaria aí o plano de reinvenção e dos desvios dos modos hegemônicos de operação de valor impressos no agir em saúde "capital-financeiro centrado"?

Este é mais um dos importantes e ousados livros de Merhy, pensador singular que afirma em cada publicação seu desejo pelas misturas, pelo exercício do diálogo transdisciplinar em saúde. Com certeza Merhy não se propôs a "dar receitas", mas indubitavelmente ofertou "temperos" preciosos e indispensáveis para pesquisadores, profissionais e alunos envolvidos no seu cotidiano com as práticas de atenção e gestão em saúde, bem como com a aventura de se deixar "molhar" com "os inconscientes que protestam".

 

1. Foucault M. Em defesa da sociedade. curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes; 1999.         

2. Guatttari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes; 1985.         

3. Negri A, Hardt M. Império. Rio de Janeiro: Record; 2001.        

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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