ARTIGO ARTICLE
Dez anos de heterocontrole da fluoretação de águas em Chapecó, Estado de Santa Catarina, Brasil
Ten years of external control over water fluoridation in Chapecó, Santa Catarina State, Brazil
Mirvaine Panizzi; Marco Aurélio Peres
Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo foi analisar a concentração de flúor na água de abastecimento público em Chapecó, Santa Catarina, Brasil, no período de 1995 a 2005 e, adicionalmente, avaliar a efetividade de uma intervenção ocorrida em 2003 na qualidade da fluoretação. Foram analisadas 989 amostras de água. Para adequação da concentração de flúor as amostras foram classificadas obedecendo a três critérios utilizados no Brasil. Uma intervenção político-jurídica foi realizada pela municipalidade no ano de 2003. A fim de avaliar a tendência da fluoretação ao longo de todo período e antes e depois da intervenção, utilizou-se o procedimento de Prais-Winsten. Nos dez anos analisados, o sistema de fluoretação de águas apresentou 46%, 32% e 43% de amostras adequadas, dependendo do critério adotado. Previamente à intervenção municipal, a proporção de amostras adequadas foi de 40%, 26% e 36%, aumentando para 63%, 49% e 61% após intervenção, segundo os diferentes critérios de análise. Verificou-se uma melhora na adequação da concentração de flúor após a intervenção municipal. Recomenda-se a continuidade da vigilância da fluoretação de águas, considerando-a processual e de caráter permanente.
Abastecimento de Água; Fluoração; Análise da Água
ABSTRACT
This study aimed to analyze fluoride concentration in the public water supply in Chapecó, Santa Catarina State, Brazil, from 1995 to 2005 and to assess the effectiveness of a fluoridation quality intervention in 2003. A total of 989 water samples were analyzed. Fluoride concentrations were classified according to three different criteria used in Brazil. The city conducted a political and legal intervention in 2003. The Prais-Winsten procedure was used to evaluate the fluoride concentrations over time. In the ten years, the water fluoridation system showed 46%, 32%, and 43% of adequate samples, depending on the criterion. Prior to the municipal intervention, the proportion of adequate samples was 40%, 26%, and 36%, increasing to 63%, 49%, and 61% after the intervention, according to the three criteria. Fluoride concentration improved after the municipal intervention. On-going surveillance is recommended, including water fluoridation, dental caries, and dental fluorosis.
Water Supply; Fluoridation; Water Analysis
Introdução
A fluoretação das águas de abastecimento público constitui-se em método populacional eficaz e efetivo para a prevenção da cárie dentária, além de seguro quando em concentrações adequadas 1,2. A medida apresenta uma ótima relação custo-benefício: US$ 0,8 por pessoa/ano nos Estados Unidos 1 e US$ 0,03 (R$ 0,08 em 2003) por pessoa/ano na cidade de São Paulo, Brasil 3. Por esses aspectos, foi considerado um dos dez maiores avanços da Saúde Pública no século XX nos Estados Unidos 4.
No Brasil, a obrigatoriedade da fluoretação onde exista estação de tratamento de água é prevista pela Lei Federal nº. 6.050 5, de 24 de maio de 1974, regulamentada pelo Decreto nº. 76.872 6, de 22 de dezembro de 1975. Em 2006, adotavam a medida 45,7% dos municípios brasileiros, beneficiando mais de 100 milhões de pessoas, aproximadamente 54% da população brasileira 7.
Para produzir os efeitos preventivos em relação à cárie dentária com efetividade e segurança, é necessária a concentração ótima de flúor, que no Brasil varia entre 0,7 e 1,0 partes por milhão (ppm), bem como a continuidade da medida ao longo do tempo. No entanto, quando ingerido continuadamente em concentrações acima das recomendadas durante o período de formação dos dentes, pode acarretar fluorose dentária, caracterizada por malformações do esmalte dentário com alterações de coloração e de forma nos casos mais graves 8.
A constatação de que, em muitas localidades brasileiras, ocorriam oscilações nas concentrações do flúor adicionado à água de abastecimento público, motivou a formulação de uma proposta para implantação de sistemas de vigilância sanitária da fluoretação das águas de abastecimento público 9, baseados no princípio do heterocontrole. Este pode ser definido como "o princípio segundo o qual se um bem ou serviço qualquer implica risco ou representa fator de proteção para a saúde pública e então além do controle do produtor sobre o processo de produção, distribuição e consumo deve haver controle por parte das instituições do Estado" 10 (p. 51). Recomenda-se que o heterocontrole seja operacionalizado por entidades ou instituições públicas, privadas, ou ambas, diferentes das companhias de abastecimento de água.
São escassos os estudos que abordem o heterocontrole da fluoretação das águas realizados no Brasil no âmbito dos serviços públicos de saúde e que avaliem a adequação das concentrações de flúor em período superior a dois anos. Em pesquisa nas bases de dados MEDLINE, SciELO, LILACS e BBO, no período de 1990 a 2006, publicações com tais características não foram localizadas.
O presente estudo tem como objetivo analisar a concentração de flúor na água de abastecimento público no período de 1995 a 2005 e, adicionalmente, avaliar a efetividade de uma intervenção municipal ocorrida em 2003 na qualidade da fluoretação de águas de Chapecó, Santa Catarina, Brasil.
Método
O Município de Chapecó situa-se na região oeste do Estado de Santa Catarina, Sul do Brasil. Dista 569km de Florianópolis, a capital. A população estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE; http://www.ibge.gov.br) para o ano de 2005 foi de 169.256 habitantes, sendo 92,7% na zona urbana. Recebem água tratada e fluoretada 135.882 habitantes na zona urbana, perfazendo 84,3% da população do município. Iniciou-se a fluoretação das águas de abastecimento público em 1982, sendo a medida operacionalizada pela Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN), com interrupções conhecidas apenas no período de março a outubro de 1987. A zona urbana do município é abastecida por uma única estação de tratamento, e a concentração ótima de flúor determinada para o município é de 0,8ppm. A concentração foi estabelecida de acordo com a Portaria nº. 635 11 de 26 de dezembro de 1975, segundo a média das temperaturas máximas diárias.
O sistema de vigilância sanitária de fluoretação das águas de abastecimento público no município foi instituído em 1995, pela Secretaria Municipal de Saúde de Chapecó (SMS-Chapecó). Foram definidos dez pontos para a coleta mensal das amostras de água. O número foi definido de acordo com as normas do Laboratório de Vigilância do Flúor da Fundação Universidade Vale do Itajaí (UNIVALI), responsável pela análise da concentração de flúor, que estabelece uma relação entre porte populacional e número de pontos de coleta. Unidades básicas de saúde foram os locais selecionados para a coleta, segundo critérios geográficos de distribuição (Figura 1).
As amostras de água foram coletadas em duplicata, diretamente das torneiras, em frascos de polietileno de 50mL, identificados e etiquetados (coletor, ponto de coleta, local da coleta e data) e previamente enxaguados com a água da torneira. A coleta foi realizada uma vez por mês, em dia definido por sorteio, em cada um dos pontos. Depois de coletadas, as amostras foram enviadas via postal ao laboratório. As análises das concentrações de flúor foram realizadas pelo método eletrométrico, que utilizou eletrodo combinado seletivo para flúor e potenciômetro (Orion 9609 e Orion 920ª, respectivamente; Orion Research Inc., Cambridge, Estados Unidos). Mensalmente, resultados das análises foram enviados do laboratório para a SMS-Chapecó e desta à CASAN.
Cada uma das amostras coletadas e analisadas no período entre novembro de 1995 a novembro de 2005 foi classificada segundo sua concentração de flúor, de acordo com três critérios:
a) critério I: de acordo com a legislação vigente, Portaria nº. 635 11, a concentração ótima de flúor para o município está determinada em 0,8ppm, com limite mínimo de 0,7ppm (variação de 0,1ppm) e limite máximo de 1,0ppm (variação de 0,2ppm). Dessa forma, considera-se adequada a concentração entre 0,7ppm e 1,0ppm, inadequada baixa quando < 0,7ppm e inadequada alta quando > 1,0ppm;
b) critério II: adotado pela maioria dos estudos de heterocontrole publicados no Brasil 10,12,13,14,15,16,17, segundo a concentração ótima determinada para a maioria das localidades brasileiras (Portaria nº. 635 11) que admitem variação na concentração ótima de 0,1ppm para os limites inferior e superior. Ao adotar este critério, considera-se adequada a concentração entre 0,7ppm e 0,9ppm, inadequada baixa quando < 0,7ppm e inadequada alta quando > 0,9ppm;
c) critério III: a partir da proposta de Narvai modificada por Ramires em 2004 18, que admite variação na concentração ótima de flúor de 0,15ppm para o limite inferior e 0,14ppm para o superior, a fim de conferir maior precisão matemática ao resultado. Para este critério considera-se adequada a concentração entre 0,65ppm e 0,94ppm; inadequada baixa quando < 0,65ppm e inadequada alta quando > 0,94ppm.
Realizou-se a estatística descritiva para a concentração dos teores de flúor por meio das medidas de tendência central e de dispersão e a distribuição por quartis das concentrações de flúor das amostras de água segundo o local das coletas, no período entre novembro de 1995 e novembro de 2005.
A intervenção político-jurídica realizada pelo sistema de vigilância sanitária da fluoretação das águas de abastecimento público consistiu de um processo, viabilizado por algumas ações. Iniciou-se com reuniões entre técnicos e dirigentes da SMS-Chapecó e os responsáveis pela fluoretação da CASAN de Chapecó, fundamentadas nos resultados das análises realizadas e objetivando adequação e manutenção da concentração de flúor conforme a preconizada para o município. Permanecendo inalterada a situação, a SMS-Chapecó apresentou um relatório com análises das concentrações de flúor no período de 1995 a 2002 à Promotoria de Justiça/Defesa do Meio Ambiente, que resultou na instauração de procedimento administrativo. Em decorrência deste procedimento, a CASAN efetivou medidas de melhoria do sistema, como a aquisição de aparelho íon analisador com uso do tampão TISSAB II, em agosto de 2003, e remessa da análise mensal de qualidade da água a SMS-Chapecó, resultando no arquivamento do processo. Como forma de exercer o controle social e tornar público o problema, a SMS-Chapecó promoveu um evento intitulado Fluoretação com Qualidade: Direito de Cidadania, com participação da Promotoria Pública, CASAN, representantes de diversas entidades e instituições odontológicas, entre elas Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais de Saúde de Santa Catarina e do Paraná, Universidade Federal de Santa Catarina, além de representantes dos usuários.
Para avaliar a efetividade da intervenção, estabeleceu-se um ponto de corte dentro do período estudado, agosto de 2003, quando foram implantadas as melhorias decorrentes da intervenção. As concentrações de flúor foram avaliadas de acordo com os três critérios descritos anteriormente, no período anterior à intervenção (novembro de 1995 a julho de 2003) e no período posterior (agosto de 2003 a novembro de 2005). Além disso, foi analisada a proporção de amostras adequadas nos dois períodos. A fim de avaliar se a tendência da fluoretação ao longo de todo período e antes e depois da intervenção foi de ascensão, de declínio ou estacionária, utilizou-se o procedimento de Prais-Winsten para regressão linear generalizada 19. Foram calculados os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) e considerada estacionária a tendência cujo coeficiente de regressão não foi diferente de zero (p > 0,05). Como este procedimento exige continuidade no período envolvido na análise, foram excluídos os meses anterior e posterior a este intervalo, pois não houve coletas neles. Dessa forma, foi considerado para análise o período de março de 1999 a junho de 2005. Para digitação e análise dos dados, utilizou-se o programa Stata 9.0 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos).
Resultados
Foram analisadas 989 amostras de água no período de novembro de 1995 a dezembro de 2005, com uma média de 98,9 amostras para cada ponto de coleta. A Tabela 1 mostra que a concentração de flúor apresentou grande variação nos dez anos estudados, apresentando como valor mínimo 0,08ppm e valor máximo 2,05ppm. A média para o município apresentou o valor 0,89ppm e a mediana 0,88ppm, no período 1995 a 2005. A concentração de flúor no 1º quartil da distribuição das concentrações de flúor foi de 0,71ppm e no 3º de 1,05ppm, ou seja, em conjunto, 50% das amostras estiveram abaixo ou acima destes valores. Entre os pontos de coleta houve pequena variabilidade. Nenhum local excedeu em 75% das amostras o teor máximo de flúor recomendado.
Na Figura 2, observa-se que a proporção de amostras consideradas inadequadas variou de 54%, 68% e 57%, de acordo com os critérios I, II e III, respectivamente. Os anos de 2000, 2001 e 2002 apresentam a maior proporção de amostras inadequadas altas, para os três critérios adotados.
Foram analisadas 720 amostras relativas a 79 meses, no período anterior à intervenção municipal, das quais estavam adequadas 40%, 26% e 36% pelos critérios I, II e III, respectivamente. No período posterior à intervenção, a partir de agosto de 2003, foram analisadas 269 amostras correspondentes a 27 meses, e a proporção de adequadas passou para 63%, 49% e 61%, pelos critérios I, II e III, respectivamente (Figura 3).
Na Figura 4, verifica-se que a concentração de flúor na água de abastecimento público apresentou uma tendência de estabilidade (p = 0,103) no período de março de 1999 a junho de 2005. Considerando como ponto de corte o mês agosto de 2003, a média da concentração de flúor encontrada para o período de março de 1999 a julho de 2003 foi de 0,96 (IC95%: 0,95-0,97) e de 0,77 (IC95%: 0,76-0,79) para o período posterior, de agosto de 2003 a junho de 2005, diferença estatisticamente significante. Embora a média no período anterior à intervenção tenha sido maior do que no período subseqüente, constatou-se uma tendência de estabilidade (p = 0,507), enquanto para o período posterior identificou-se uma tendência de acréscimo (p = 0,013).
Além do sistema de vigilância sanitária da fluoretação das águas de abastecimento público, o município realiza vigilância epidemiológica da cárie e fluorose dentárias. Entre 1995 e 2005, foram realizados quatro levantamentos epidemiológicos conduzidos com o mesmo protocolo, de acordo com os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS) 20 (dados não apresentados). Em escolares de 12 anos de idade, de escolas públicas e privadas da zona urbana, vale dizer, residentes em área abastecida com água tratada e fluoretada, o índice CPO-D (dentes permanentes cariados, perdidos e obturados) médio apresentou redução de 39% de 1996 (3,39) para 1999 (2,07), de 25% de 1999 para 2002 (1,56), e aumento de 8% de 2002 para 2005 (1,69), diferenças estatisticamente significantes. A proporção de escolares livres de cárie passou de 21%, em 1996, para 43%, em 2005. A prevalência da fluorose dentária reduziu significativamente de 1996 (46%) a 1999 (28%), manteve-se de 1999 para 2002 (28%) e apresentou um aumento não estatisticamente significante de 2002 a 2005 (32%).
Discussão
O presente estudo avaliou dez anos de heterocontrole da fluoretação de águas e utilizou dados produzidos pelo serviço público de saúde municipal. Com semelhantes características, conhece-se apenas o estudo de Narvai 10. No início da implementação do sistema de vigilância sanitária da fluoretação das águas de abastecimento público, não houve coleta em alguns meses, constituindo-se em limitação deste estudo. Entretanto, o sistema apresentou continuidade nos últimos sete anos, com apenas quatro meses sem informação.
A comparação com os resultados de outros estudos deve ser cuidadosa por vários motivos. Um deles refere-se à inadequada utilização exclusiva da média para apresentar os resultados de análise da fluoretação. Medidas de tendência central não representam a melhor alternativa para expressar a adequação da fluoretação, já que sua distribuição não é normal. Por exemplo, em Chapecó, a média para o período estudado foi de 0,89 partes por milhão de íon fluoreto (ppmF), variando segundo os locais de coleta de 0,81ppmF a 0,94ppmF, o que poderia parecer adequado para um intervalo aceitável de 0,70ppmF a 1,00ppmF. Porém, a média oculta a grande variação detectada ao longo do período e dos pontos de coleta, pois em 50% das amostras o valor encontrado esteve abaixo de 0,71ppm ou acima de 1,05ppm. Esse aspecto é basilar, especialmente em redes complexas de tratamento e distribuição das águas. Os resultados de dois estudos que utilizaram informações relativas ao mesmo período de tempo no Município de Bauru, São Paulo, Brasil 18,21, evidenciam o problema.
A adoção de três critérios para a classificação da concentração de flúor nas amostras deveu-se a inexistência de uma recomendação ou legislação única quanto à variação admitida em torno do valor ótimo e para possibilitar a comparação com os resultados de estudos publicados no Brasil. De acordo com a Portaria nº. 635 11, os estados da região Sul (Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná) encontram-se no intervalo de temperatura para concentração ótima de 0,8ppmF, admitindo-se variação de 0,1ppmF para o limite inferior e de 0,2ppmF para o superior. Para os demais estados brasileiros, preconiza-se o valor ótimo de 0,7ppmF, admitindo variação de 0,1ppmF para os limites inferior e superior. Não foi encontrado na literatura embasamento para essa diferenciação admitida, ora de 0,1ppmF, ora de 0,2ppmF aquém ou além da concentração ótima para os dois intervalos. Parece paradoxal admitir uma adição maior na concentração de flúor na água e ao mesmo tempo uma variação no limite superior também maior. Além disso, mudanças na concentração de 0,2ppmF podem resultar em alterações mensuráveis na prevalência e gravidade da fluorose dentária 1.
Ao utilizar o critério I para classificação das amostras, constata-se, no período estudado, uma proporção de 54% de amostras classificadas como inadequadas. Proporção semelhante foi detectada em Lages, Santa Catarina 22; Joinville, Santa Catarina 23 e em 37 cidades do Estado de Santa Catarina 24, em estudos cujos períodos de tempo variaram de um a seis anos. Resultado diferente foi constatado em Curitiba, Paraná, mas durante apenas quatro meses 25.
De acordo com o critério II, detectou-se 68% de amostras classificadas como inadequadas. Resultado semelhante foi observado em Pelotas, Rio Grande do Sul 26. No entanto, foram detectadas de 75% a 100% de amostras inadequadas em Niterói, Rio de Janeiro 14; Bauru 12; 40 municípios do Estado de São Paulo 16; Rio de Janeiro 15; Salvador, Bahia 13 e nos municípios de Teresina, Floriano e Parnaíba no Estado do Piauí 17, em períodos que variaram de um a 24 meses. Todavia, no Município de São Paulo 10 em dez anos de estudo, a proporção de amostras adequadas foi sempre igual ou superior a 80%.
Ao utilizar o critério III foram consideradas inadequadas 57% das amostras. Também foi identificada grande proporção de inadequadas em dois meses no Município de Bauru 27 e na avaliação de um mês em bairro do mesmo município 21. Contudo, outro estudo de um ano no mesmo município 18 detectou apenas 15% de amostras inadequadas.
É importante considerar que, se avaliássemos apenas um ano em Chapecó, por exemplo, 2004, teríamos 18% de amostras inadequadas, valores bem próximos daqueles encontrados em Bauru entre 2004 e 2005 18. Estas diferenças indicam outro aspecto a ser considerado para avaliação adequada da fluoretação: a diferença do período de monitoramento nos estudos. Por exemplo, se fosse considerado apenas o ano de 2004, 78% das amostras seriam consideradas adequadas pelo critério I; 65% pelo critério II e 81% pelo critério III. Por outro lado, se o ano escolhido fosse 2003, a proporção de adequação seria de apenas 20% pelo critério I; 13% pelo critério II e 22% pelo critério III. Resultados bem diferentes dos encontrados para o período como um todo.
Estudo realizado em Joinville 23 também detectou variação de 6% a 50% de inadequadas altas quando considerado o ano como unidade de análise, no período de 1995 a 1999. A indicação do heterocontrole é de que seja permanente enquanto houver fluoretação de águas, períodos muito curtos podem detectar ou não variações, como evidenciado em Chapecó e corroborado pelos resultados de Joinville 23 e Bauru 18,21.
Todos os estudos citados mostraram variação na adequação da concentração de flúor ao longo do tempo e dos pontos de coleta, e elevada proporção de concentrações consideradas inadequadas em sua maioria 12,14,15,17,21,22,23,24,26. Evidenciam-se, assim, dificuldades operacionais na manutenção adequada da concentração ótima de flúor nas águas de abastecimento público no contexto brasileiro, justificando a necessidade e importância da instituição e manutenção de sistema de vigilância sanitária da fluoretação das águas de abastecimento público. Em acréscimo, problemas legais contribuem para tal situação. Ainda que a legislação federal (Portaria nº. 635 11) e as legislações estaduais 28,29 estabeleçam valores máximos para a concentração de flúor, a Portaria nº. 518 de 25 de março de 2004 30 estabelece o valor limite de 1,5ppmF para a potabilidade da água, possibilitando interpretações diversas.
Neste contexto, o critério III, que admite variação estatisticamente igual para os limites inferior e superior em relação à concentração ótima determinada, e confere maior precisão matemática ao resultado em decorrência da evolução das técnicas de mensuração, mostra-se o mais adequado para avaliar a concentração de flúor nas águas de abastecimento.
Além dos critérios e do tempo, verifica-se uma não-uniformidade quanto à determinação do número de coletas nos estudos citados, que utilizaram referências diversas. Entre elas: as normas do Laboratório de Vigilância do Flúor da UNIVALI, que foram utilizadas em Chapecó e também em outros estudos 23,26; a Portaria nº. 518 30, que estabelece um ponto de coleta para cada 10 mil habitantes 18; e a distribuição por região administrativa e geográfica 12,15,16,17,27. Ressalta-se que para o cálculo de tamanho de amostra deve-se avaliar a variabilidade do fenômeno, considerando a interferência de fatores como o número de estações de tratamento e a densidade populacional, não apenas o porte populacional.
Passadas quase duas décadas das pioneiras experiências brasileiras de heterocontrole da fluoretação, implantadas no Município de São Paulo 10 e no Estado do Rio Grande do Sul 31 em 1990, mostra-se oportuna a reflexão acerca dos aspectos destacados para o seu aprimoramento e da necessidade de sua incorporação pela vigilância sanitária do poder executivo; tanto pela atribuição legal de responsabilidade sanitária quanto pela possibilidade de intervenção conferida a esta instância.
A intervenção político-jurídica realizada pelo Município de Chapecó produziu resultados que mostraram significativo aperfeiçoamento da adequação das concentrações de flúor, mesmo que insuficiente para garantir sua manutenção regular nos valores adequados ao longo do tempo e dos pontos de coleta. Uma intervenção neste nível envolve vontade política, articulação intersetorial e controle social, atributos em construção no Sistema Único de Saúde (SUS). Não obstante a relevância desta ação e dos esforços empreendidos, deve-se considerar seu caráter processual (não consistiu uma ação pontual) sendo, portanto, os resultados positivos obtidos parciais e não necessariamente permanentes.
Com base nesta experiência surgem algumas lições aprendidas e outras emergem como questões para reflexão. O heterocontrole da fluoretação não deve se limitar à coleta e análise de dados em um período de tempo, de forma burocrática, mas ser um processo contínuo e permanente. Intervenções e ações decorrentes da análise das informações obtidas por meio do heterocontrole também devem ser processuais e permanentes. Em relação à intervenção municipal, pode-se concluir que ações intersetoriais no campo da saúde coletiva ainda se constituem em desafio a ser superado. Ademais, ainda persistem dificuldades em transformar questões de complexidade técnica e política em informações que viabilizem a apropriação do tema pelo controle social. Finalmente, notou-se que apenas o contato formal (envio das análises a companhia de abastecimento) se caracterizou como burocrático. Os resultados efetivos foram obtidos com o envolvimento do Ministério Público e com a divulgação do problema. Ressalta-se que na literatura não foi localizado nenhum estudo apresentando intervenções realizadas em decorrência do heterocontrole, por mais que praticamente todos indiquem haver necessidade.
Apesar dos problemas identificados pela vigilância, o índice CPO-D médio apresentou uma redução de 50% em escolares de 12 anos da zona urbana de Chapecó, com declínio na prevalência de cárie e acréscimo na proporção de crianças livres de cárie no período de 1996 a 2005 32. No Brasil, observa-se declínio na prevalência e gravidade da cárie dentária, fato que tem sido atribuído particularmente à expansão da fluoretação das águas de abastecimento público, à introdução de dentifrícios fluoretados (em 1989 mais de 90% dos dentifrícios estavam fluorados) e à mudança de enfoque nos programas de odontologia em saúde pública 33. Em Chapecó, a água é fluoretada desde 1982, 95% das crianças de 12 anos de idade referiram utilizar dentifrício fluoretado 34, e programa municipal preventivo atinge todos os escolares de escolas públicas desde 1993 32.
Recomenda-se a vigilância epidemiológica da fluorose dentária, com monitoramento periódico a fim de detectar qualquer aumento na sua prevalência ou superação dos níveis aceitáveis 2,35. Em Chapecó a prevalência da fluorose dentária, aos 12 anos, apresentou redução de 1996 (46%) a 1999 (28%) 32 e manteve-se sem aumento estatisticamente significativo entre 1999 e 2005 (32%). Para a redução apresentada entre 1996 e 1999, uma das hipóteses explicativas pode ser a influência da diferença nos critérios padronizados pela terceira edição do manual da OMS utilizada em 1996, e a quarta edição utilizada em 1999, conforme aponta estudo realizado por Frazão et al. 36. Embora a prevalência de 32%, em 2005, seja alta quando comparada a outros estudos 35, a quase totalidade dos afetados apresentou graus de fluorose muito leve e leve, caracterizando opacidades no esmalte dentário. Peres et al. 34 avaliaram o impacto da cárie e fluorose dentárias na satisfação com a aparência e mastigação nos escolares de 12 anos de Chapecó e concluíram que, nos graus de gravidade encontrados, a fluorose não esteve associada à satisfação com a aparência e mastigação, nesta população.
O presente estudo não foi delineado de forma a inferir uma relação causa-efeito entre a prevalência da cárie e fluorose dentárias e a fluoretação da água de abastecimento público nesta população, que está exposta a outras formas de acesso ao flúor 32,34. Entretanto, a análise da vigilância do flúor e estudos epidemiológicos periódicos devem ser realizados de forma concomitante e integrados, pois fazem parte do mesmo processo. Deve-se enfatizar a importância da vigilância epidemiológica destes agravos conjuntamente ao heterocontrole da fluoretação da água para avaliar a efetividade desta medida.
A avaliação dos dez anos do sistema de vigilância sanitária da fluoretação das águas de abastecimento público no Município de Chapecó permite concluir que a fluoretação das águas de abastecimento público apresentou continuidade, entretanto com grande variação na concentração de flúor ao longo do tempo e nos pontos de coleta. Ocorreu melhora significativa na adequação da concentração de flúor após intervenção político-jurídica da SMS-Chapecó. A intervenção foi processual e obteve resultados efetivos, ainda que parciais, apenas após envolvimento intersetorial para além da CASAN, com a inclusão do Ministério Público, controle social, entidades e instituições odontológicas. Tanto o heterocontrole da fluoretação quanto as intervenções decorrentes da análise das informações produzidas e disponibilizadas necessitam ser consideradas e tratadas como de caráter processual e permanente. Reitera-se a importância da vigilância sanitária da fluoretação e recomenda-se sua continuidade e reavaliação periódica visando à melhoria do sistema de fluoretação.
Colaboradores
M. Panizzi concebeu o estudo, realizou a análise dos dados e redigiu o artigo. M. A. Peres orientou todas as etapas do estudo, colaborou na análise dos dados e contribuiu na redação do artigo.
Agradecimentos
Aos professores Dr. João Carlos Caetano, Dra. Maria Cristina Marino Calvo e Dr. Paulo Capel Narvai pelas sugestões. Ao professor Antonio Fernando Boing, pelo auxílio na análise estatística e à Secretaria Municipal de Saúde de Chapecó, pela cessão dos bancos de dados.
Referências
1. Centers for Disease Control and Prevention. Recommendation for using fluoride to prevent and control dental caries in the United States. MMWR Recomm Rep 2001; 50(RR-14):1-42.
2. Jones S, Burt BA, Petersen PE, Lennon MA. The effective use of fluorides in public health. Bull Word Health Organ 2005; 83:670-5.
3. Frias AC, Narvai PC, Araújo ME, Zilbovicius C, Antunes JLF. Custo da fluoretação das águas de abastecimento público, estudo de caso - Município de São Paulo, Brasil, período de 1985-2003. Cad Saúde Pública 2006; 22:1237-46.
4. Center for Disease Control and Prevention. Achievements in public health, 1900-1999: Fluoridation of drinking water to prevent dental caries. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 1999; 48: 241-6.
5. Brasil. Lei Federal nº. 6.050, de 24 de maio de 1974. Dispõe sobre a obrigatoriedade da fluoretação das águas em sistemas de abastecimento. Diário Oficial da União 1974; 27 jul.
6. Brasil. Decreto nº. 76.872. Regulamenta a Lei nº. 6.050, de 24 de maio de 1974, que dispõe sobre a fluoretação da água em sistemas públicos de abastecimento. Diário Oficial da União 1975; 22 dez.
7. Almeida LMB. Análise situacional da fluoretação de água de abastecimento público no Brasil. Brasília: Coordenação Nacional de Saúde Bucal, Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde; 2006.
8. Cury JA. Uso do flúor e controle da cárie como doença. In: Baratireri LN, Monteiro Junior S, Andrada MAC, Vieira LCC, Ritter AV, Cardoso AC, et al., organizadores. Odontologia restauradora. São Paulo: Editora Santos; 2001. p. 34-68.
9. Schneider Filho DA, Prado IT, Narvai PC, Barbosa SR. Fluoretação da água: como fazer a vigilância? Rio de Janeiro: Rede Cedros; 1992. (Cadernos de Saúde Bucal, 2).
10. Narvai PC. Fluoretação da água: heterocontrole no Município de São Paulo no período 1990-1999. Revista Brasileira de Odontologia em Saúde Coletiva 2000; 2:50-6.
11. Brasil. Portaria nº. 635, de 26 de dezembro de 1975. Aprova normas e padrões sobre a fluoretação da água de sistemas públicos de abastecimento. Diário Oficial da União 1974; 26 dez.
12. Buzalaf MAR, Granjeiro JM, Damante CA, Ornelas F. Fluctuations in public water fluoride level in Bauru, Brazil. J Public Health Dent 2002; 62:173-6.
13. Gesteira CMM, Câmara VM. Um estudo sobre a fluoretação em água de abastecimento público no município de Salvador, Estado da Bahia, Brasil. Cad Saúde Colet (Rio J) 2005; 13:185-94.
14. Maia LC, Valença AMG, Soares EL, Cury JA. Controle operacional da fluoretação da água de Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2003; 19:61-7.
15. Modesto A, Tanaka FHR, Freitas AD, Cury JA. Avaliação da concentração de fluoreto na água de abastecimento público do município do Rio de Janeiro. Rev Bras Odontol 1999; 56:217-21.
16. Saliba NA, Moimaz SAS, Tiano AVP. Fluoride level in public water supplies of cities from the northwest region of São Paulo State, Brazil. J Appl Oral Sci 2006; 14:346-50.
17. Silva JS, Val CM, Costa JN, Moura MS, Silva TAE, Sampaio FC. Heterocontrole da fluoretação das águas em três cidades no Piauí, Brasil. Cad Saúde Pública 2007; 23:1083-8.
18. Ramires I, Maia LP, Rigolizzo DS, Lauris JRP, Buzalaf MAR. Heterocontrole da fluoretação da água de abastecimento público em Bauru, SP, Brasil. Rev Saúde Pública 2006; 40:883-9.
19. Antunes JLF, Waldman EA. Trends and spatial distribution of deaths of children aged 12-60 months in São Paulo, Brazil, 1980-98. Bull World Health Organ 2002; 80:391-8.
20. World Health Organization. Oral health surveys, basic methods. 4th Ed. Geneva: Word Health Organization; 1997.
21. Ramires I, Olympio KPK, Maria AG, Pessan JP, Cardoso VES, Lodi CS, et al. Fluoridation of the public water supply and prevalence of dental fluorosis in a peripheral district of the municipality of Bauru, SP. J Appl Oral Sci 2006; 14:136-41.
22. Toassi RFC, Kuhnen M, Cislaghi GA, Bernardo JR. Heterocontrole da fluoretação da água de abastecimento público de Lages, Santa Catarina, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2007; 12:727-32.
23. Paiano HMA, Furlan AS, Freitas SFT. Fluoretação da água de abastecimento em Joinvile, de 1994 a 1999. Revista Saúde e Ambiente 2001; 2:41-6.
24. Ferreira R. Fluoretação das águas de abastecimento público no Estado de Santa Catarina nos anos de 1994, 1995 e 1996. In: Anais do II Encontro Catarinense de Odontologia em Saúde Coletiva. Florianópolis: Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social/Universidade Federal de Santa Catarina; 1996. p. 36-41.
25. Dantas NL, Domingues JEG. Sistema de vigilância dos teores de flúor na água de abastecimento público de Curitiba. Divulg Saúde Debate 1996; 13:70-81.
26. Lima FG, Lund RG, Justino LM, Demarco FF, Del Pino FA, Ferreira R. Vinte e quatro meses de heterocontrole da fluoretação das águas de abastecimento público de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saúde Pública 2004; 20:422-9.
27. Lodi CS, Ramires I, Buzalaf MAR, Bastos JRM. Fluoride concentration in water at the area supplied by the water treatment station of Bauru, SP. J Appl Oral Sci 2006; 14:365-70.
28. Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul. Portaria nº. 10/99, de 16 de agosto de 1999. Define teores de fluoreto nas águas para consumo humano fornecidas por Sistemas Públicos de Abastecimento. http://www2.portoalegre.rs.gov.br/dmae/ (acessado em 15/Abr/2006).
29. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Resolução nº. SS-250, de 15 de agosto de 1995. Define teores de concentração do íon fluoreto nas águas para consumo humano, fornecidas por sistemas públicos de abastecimento. http://www.mp.sp.gov.br/pls/portal/docs/ (acessado em 12/Set/2006).
30. Ministério da Saúde. Portaria nº. 518, de 25 de março de 2004. Estabelece os procedimentos e responsabilidades relativas ao controle e vigilância da qualidade da água para o consumo humano e seu padrão de potabilidade, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2004; 26 mar.
31. Ely HC, Cesa KT, Aerts DRGC. Vigilância da saúde bucal. In: Antunes JLF, Peres MA, organizadores. Epidemiologia da saúde bucal. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan; 2006. p. 295-321.
32. Panizzi M, Peres MA, Moscheta JDF. Saúde bucal: em busca da universalidade, da integralidade e da eqüidade. In: Franco TB, Peres MA, Foschiera MMP, Panizzi M, organizadores. Acolher Chapecó: uma experiência de mudança do modelo assistencial, com base no processo de trabalho. São Paulo: Editora Hucitec; 2004. p. 145-79.
33. Narvai PC, Frazão P, Roncalli AG, Antunes JLF. Cárie dentária no Brasil: declínio, polarização, iniqüidade e exclusão social. Rev Panam Salud Pública 2006; 19:385-93.
34. Peres KG, Latorre MRDO, Peres MA, Traebert J, Panizzi M. Impacto da cárie e da fluorose dentária na satisfação com a aparência e com a mastigação de crianças de 12 anos de idade. Cad Saúde Pública 2003; 19:323-30.
35. Moysés ST, Moysés SJ. Fluorose dentária. In: Antunes JLF, Peres MA, organizadores. Epidemiologia da saúde bucal. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan; 2006. p. 115-24.
36. Frazão P, Peverari AC, Forni TIB, Mota AG, Costa LR. Fluorose dentária: comparação de dois estudos de prevalência. Cad Saúde Pública 2004; 20:1050-8.
Correspondência:
M. A. Peres
Programa de Pós-graduação em Saúde Pública
Centro de Ciências da Saúde
Universidade Federal de Santa Catarina
Campus Universitário Trindade
Florianópolis, SC 88010-970, Brasil
mperes@ccs.ufsc.br
Recebido em 14/Ago/2007
Versão final reapresentada em 19/Dez/2007
Aprovado em 22/Jan/2008