ARTIGO ARTICLE

 

A implicação de trabalhadores de ambulatórios municipais, em Uberaba, Minas Gerais, Brasil, na reorganização de serviços preconizada pelo Sistema Único de Saúde

 

Involvement of workers from municipal outpatient services in Uberaba, Minas Gerais State, Brazil, in the reorganization of services under the Unified National Health System

 

 

Bethania Ferreira GoulartI; Maria Imaculada de Fátima FreitasII

ICurso de Enfermagem, Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, Brasil
IIEscola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa foi desenvolvida em dois ambulatórios municipais de especialidades na cidade de Uberaba, Minas Gerais, Brasil. Busca compreender a implicação dos trabalhadores de saúde no seu trabalho e nas propostas de reorganização de serviços de saúde, sob a ótica deles e considerando a gestão participativa preconizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A pesquisa foi realizada com nove trabalhadores que apresentam ou não formação específica em saúde, mas estão envolvidos com atividades no setor. Os participantes foram sorteados por categoria profissional ou função (grupos: odontológico, infra-estrutura, médico, serviço social, psicologia, coordenação, enfermagem e farmacêutico e bioquímico), considerando-se um participante por "categoria" de cada serviço. O conteúdo foi analisado fundamentando-se nos procedimentos da análise estrutural de narração. Foram identificadas três categorias: a gerência, implicação no trabalho e implicação nas propostas do SUS. Ressalta-se que este estudo não pretende universalizar resultados sobre a implicação dos trabalhadores em saúde, no geral, mas aponta para a importância de se compreender a interação entre o modelo gerencial e a reorganização de serviços preconizada pelo SUS.

Administração de Serviços de Saúde; Serviços Ambulatoriais; Sistema Único de Saúde


ABSTRACT

This study was conducted in two specialized municipal outpatient clinics in the city of Uberaba, Minas Gerais State, Brazil. The study analyzes the involvement of professionals in their work and the reorganization of health services from their perspective, considering the participatory management recommended by the Unified National Health System (SUS). The study included nine workers with or without specific health training, all involved in health sector activities. Participants were selected according to profession or job (groups: dentistry, infrastructure, medicine, social work, psychology, coordination, nursing, pharmacy, and biochemistry), with one participant per "category" for each clinic. The content was submitted to structural narrative analysis. Three analytical categories were identified: management, involvement in work, and involvement in the SUS proposals. The study was not intended to generalize results on health workers' involvement, but it does highlight the importance of understanding the interaction between the management model and the reorganization of services as recommended under the SUS.

Health Services Administration; Ambulatory Health Services; Single Health System


 

 

Introdução

A organização e o planejamento do trabalho não são recentes. Para Ermel & Fracolli 1 datam da história antiga indícios de planos formais de organização, compreendendo desde a construção de monumentos épicos até a coordenação de distintas tarefas.

Marinuzzi & Fajardo 2 destacam que a administração começou a despontar como ciência com a Escola da Administração Científica, pela publicação de Princípios da Administração Científica por Taylor, em 1911, enfatizando-se a execução de tarefas. Entendia-se que no trabalho existia uma dicotomia entre a concepção e a execução, e que, o bom administrador deveria comandar e controlar as atividades dos subordinados.

Vale lembrar que a palavra subordinado tem significado de dependente, subalterno, inferior 3. Assim, os pressupostos da Escola Clássica da Administração fundamentam o modelo verticalizado de administração de serviços de saúde, no qual os atores estão em dois pólos: um que pensa e ordena e outro que silencia e executa, conduzindo à desumanização no processo de trabalho 4,5.

Ermel & Fracolli 1 afirmam que nessa trajetória da administração surgem a Escola das Relações Humanas, a Teoria dos Sistemas e o Behaviorismo.

Todas essas correntes refletem pensamentos sobre o trabalho humano, que mesmo diferenciados, têm em comum a eficiência por meio do controle e da ordem.

Entretanto, atualmente, apesar dos avanços teóricos sobre o trabalho humano e suas formas de organização e gerência, percebe-se no cotidiano dos serviços de saúde uma tendência de modelos gerenciais centralizadores e verticalizados, e o coordenador do serviço concentra poderes para decidir e direcionar as decisões e ações no local. Muitas vezes, a participação e o envolvimento dos trabalhadores na discussão, e reflexão da própria prática, parecem inexistentes.

Porém, sabe-se que na legislação do Sistema Único de Saúde (SUS), de 1988, são propostas novas abordagens de organização e gerência, contemplando a participação abrangente dos trabalhadores nos processos de decisão 6.

Como tal incorporação está ocorrendo na prática dos serviços de saúde?

Como se implicam os trabalhadores nas propostas de reorganização dos serviços, tendo como base a gestão participativa preconizada pelo SUS?

A reorganização dos serviços de saúde para atender às diretrizes do SUS parece não incorporar, ainda, formas de gerência que dêem conta de atuações criativas, inovadoras e humanizadas. Obviamente, pode-se supor que tal reorganização, que demanda mudanças tanto estruturais como nas pessoas, exige tempo, mas cumpre questionar a eficácia dos serviços de saúde administrados, segundo uma ótica verticalizada, em relação à contemplação dos princípios do SUS assegurados legalmente. Como os trabalhadores de saúde conseguem exercer suas atividades no bojo das contradições entre a teoria participativa e uma prática instituída no tempo, distante dessa teoria?

Tal distanciamento aparece refletido no silêncio que permeia o dia-a-dia dos trabalhadores desses serviços. Parece que, ao mesmo tempo em que eles se subordinam às normas sem questioná-las, também criam mecanismos de fuga ou de inibição 7 para se protegerem da falta de participação nas decisões do próprio trabalho.

Apesar da influência taylorista nos serviços de saúde, defendendo uma gerência que controla e regulamenta toda e qualquer possibilidade imaginável de trabalho 8, supõe-se que esses locais também incluem espaços em que muitos não se contentam mais em serem somente parte de um processo de trabalho fragmentado e vazio de sentido.

Os serviços de saúde pública em Uberaba, Minas Gerais, Brasil, ainda têm, como a maioria dos serviços de saúde no Brasil, modelos gerenciais verticalizados e centralizadores 5, ao mesmo tempo em que estão integrados aos modelos de gestão plena do SUS, sofrem avaliações e preconizam uma gerência participativa. Porém, não existem estudos sistematizados sobre o desenvolvimento da gestão desses serviços em foco neste estudo, de forma a contemplar a implicação dos trabalhadores nas propostas de reorganização dos serviços de saúde e considerando a gestão participativa preconizada pelo SUS.

Acredita-se que este estudo poderá contribuir especialmente na discussão sobre o modelo gerencial desenvolvido nas unidades de saúde pública, consideradas como espaços promotores de saúde e construtores da cidadania no país. Além, então, de contribuir para a discussão mais geral sobre o SUS, pretende-se ampliar a reflexão sobre os modelos de gestão em saúde, seus avanços e dificuldades.

Diante do exposto, o objetivo do presente trabalho é compreender a implicação dos trabalhadores de saúde no seu trabalho e nas propostas de reorganização de serviços de saúde em Uberaba, sob a ótica deles, considerando a gestão participativa preconizada pelo SUS.

 

Metodologia

Cenário do estudo

O estudo foi desenvolvido junto aos trabalhadores de dois ambulatórios municipais de especialidades de Uberaba: Centro Médico Dr. Antônio José de Barros e Central de Atendimento Multiprofissional do Município.

O referido município apresenta uma população aproximada de 261.049 habitantes 9 e tem gestão plena de sistema desde 1998.

Ressalte-se que Uberaba foi uma das últimas cidades de porte médio a ter gestão plena, tendo dificuldades para implantar as equipes de saúde na atenção.

Tenta-se reorganizar a demanda dos serviços de saúde no município 9, no entanto isso ainda não permitiu que a porta de entrada no sistema seja centrada nas unidades de atenção básica, havendo procura por atendimento básico também nos ambulatórios de especialidades e no serviço de pronto-atendimento de 24 horas.

Quanto ao gerenciamento, observa-se que os coordenadores dos referidos serviços são indicados e, normalmente, permanecem no cargo durante um mandato político.

Suspeita-se que esses ambulatórios ainda não se adequaram à proposta gerencial preconizada pelo SUS, considerando-se que mantêm um modelo gerencial verticalizado, centralizador e pouco democrático.

Vale investigar o que os sujeitos daqueles serviços entendem sobre a questão da gerência e como ela se relaciona com o processo de trabalho e a efetivação do SUS no cotidiano dos serviços.

Trabalho de campo

Esta pesquisa contou com entrevistas e observação de campo voltada para a observação-participação, construídas numa relação com os seus participantes.

Foram realizadas com os trabalhadores de saúde dos dois ambulatórios de especialidades, entrevistas abertas conforme um roteiro básico: (1) fale-me sobre o significado do trabalho para você e para o serviço; (2) fale-me como você vê as propostas estabelecidas pelo SUS; (3) fale-me sobre sua participação na efetivação dessas propostas; (4) fale-me sobre a gerência no seu serviço de saúde.

Todas as entrevistas ocorreram de maio a julho de 2003, sendo gravadas e transcritas pelo próprio pesquisador.

Sujeitos participantes da pesquisa

Considerando como trabalhadores de saúde todos os que possuem ou não formação específica em saúde, mas que atuam nas funções pertinentes ao setor 8,10, optou-se por englobar como sujeitos participantes da pesquisa todos os trabalhadores envolvidos com atividades nos ambulatórios, sendo pertencentes a distintas categorias profissionais.

Foi realizado um sorteio e os trabalhadores foram divididos conforme a categoria ou função, nos grupos: odontológico, infra-estrutura, médico, serviço social, psicologia, coordenação, enfermagem, farmacêutico e bioquímico.

Foram considerados como critérios de exclusão: a não-aceitação do sorteado e, se ele tivesse menos de um ano no serviço.

Estava previsto, a princípio, um número inicial de 14 entrevistas para que se contemplasse um trabalhador por categoria de cada serviço, pois os grupos de serviço social e psicologia não eram presentes nos dois ambulatórios, cada um ocorria em um dos serviços. Entretanto, a coleta foi interrompida após a nona entrevista, quando ocorreu a saturação em torno dos eixos temáticos.

Participaram do estudo: um auxiliar de consultório dentário, um agente administrativo, um vigia, um assistente social, dois coordenadores, um enfermeiro, um farmacêutico e bioquímico e um psicólogo.

Todos os sorteados aceitaram participar da pesquisa.

As entrevistas foram realizadas no horário e local solicitados pelo trabalhador. Em todos os casos, ocorreram no local e horário de trabalho, com duração média de uma hora, com liberação do participante pelo coordenador do serviço.

Para preservação do sigilo, optou-se por não identificar os entrevistados por sexo, todos são descritos como pertencentes ao sexo masculino. O local de trabalho não foi identificado. O nome foi preservado, sendo o entrevistado identificado com um número, respeitando-se a Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

Após a realização de cada entrevista, passou-se à análise preliminar e, ao final de nove entrevistas, foi possível definir que não era necessária a realização de outras, pois se havia atingido a saturação em torno dos eixos temáticos.

Análise das informações

Após a transcrição literal das informações, o conteúdo foi analisado com fundamento nos procedimentos da Análise Estrutural de Narração 11. Esses procedimentos foram retomados por Freitas & Argellies 12 com os passos: Leitura Vertical, Leitura Horizontal, Leitura Transversal.

• Leitura vertical

Apreensão do sentido geral de toda a entrevista, síntese da fala do entrevistado.

• Leitura horizontal

Divisão completa da entrevista em seqüências definidas pelo objeto do discurso. Dentro de cada seqüência (S) foram identificados os fatos relatados (F) e as explicações, justificativas e sentimentos (J). Também foram identificadas as personagens (P).

Em seguida, cada seqüência de fala é nomeada pelo pesquisador para identificação objetiva dos "objetos de discurso" 13.

Posteriormente, essas seqüências são agrupadas em torno de um mesmo assunto/tema que é identificado por um título temático.

• Leitura transversal

Leitura de todas as entrevistas pela qual se organizam os temas tratados por todos os entrevistados, com as notas de campo e analisadas à luz do referencial teórico da Análise Institucional.

O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (processo nº. 100/03). Todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em conformidade com as normas da instituição.

 

Resultados e discussão

Mediante análise das falas dos entrevistados, fundamentando-se no referencial teórico da Análise Institucional, foi possível destacar três categorias empíricas: A Gerência, Implicação nas Propostas do SUS e Implicação no Trabalho.

A gerência

Neste estudo, constatou-se que o significado de gerência é de que ela é de responsabilidade dos coordenadores. Isso reflete a centralização do poder e das decisões naqueles locais.

Para alguns entrevistados, a gerência oferece possibilidade de diálogo, mas não avaliam de que forma suas idéias são interpretadas e discutidas. Não refletem se representam um poder de decisão, ou somente são escutados.

Na prática, às vezes, confunde-se a possibilidade de simplesmente expor suas idéias com participação nas decisões.

Os entrevistados apontam para a ausência do sentimento de formarem uma equipe, além de obstáculos referentes à questão de verbas insuficientes, à interferência da política no cotidiano dos serviços de saúde, à falta de planejamento local e à ausência de capacitação e treinamento para os coordenadores.

Constata-se que a maioria dos entrevistados relata que o processo de trabalho segue uma lógica fragmentada. Percebe-se, além disso, que eles não atentam para o fato de que isso pode ser desastroso para o usuário, uma vez que a assistência recebida é parcelar e não integral.

Nos serviços de saúde pública, ainda predominam as relações verticalizadas e a departamentalização. Isso pode levar à alienação do trabalhador, uma vez que, estando fixo a uma etapa do projeto terapêutico, há um distanciamento do resultado final da própria intervenção 5,8,14.

Para se criar um novo modo de gerenciar, é fundamental alterar os organogramas dos serviços de saúde, geralmente, fundamentados no fayolismo e no taylorismo 2,4. Existe uma proposta que busca extinguir os antigos departamentos montados conforme as categorias profissionais e elaborar unidades seguindo as lógicas específicas de cada processo de trabalho 14.

Alguns entrevistados discorrem sobre a necessidade de melhoria do gerenciamento.

Um deles afirma que os gerentes visam somente às questões pertinentes aos seus interesses, não dando importância para os funcionários que ele denomina de "pequenos".

Outros dois entrevistados percebem a necessidade de melhoria, mas argumentam que, muitas vezes, isso não depende dos coordenadores.

Quanto à participação, alguns entrevistados afirmam que não participam do gerenciamento.

Alguns conseguem falar sobre a questão da participação de maneira reflexiva, mas quanto aos demais, não se pode avaliar se desconhecem o direito de participação ou se, em decorrência do processo de trabalho, se habituaram a ser isolados e colocados à margem do processo decisório.

Para Jacobi 15, as distintas formas de interpretar a participação relacionam-se a diferentes concepções políticas e econômicas, marcadas pela ambigüidade e pelos limites da inserção.

Implicação nas propostas do SUS

Alguns entrevistados consideram que os trabalhadores têm pouco conhecimento a respeito do SUS, desconhecendo, inclusive, o que conduziu ao surgimento do sistema.

Ressalta-se que o entendimento dos trabalhadores sobre o referido tema poderá contribuir na construção do modelo assistencial oferecido à população.

Neste estudo, a maioria dos sujeitos apresenta críticas em relação ao SUS. Algumas se referem à percepção do sistema no plano teórico, havendo uma dicotomia entre a proposta legal e a prática nos serviços de saúde.

Alguns falam sobre a questão da dependência da vontade política, de precários recursos materiais, humanos e financeiros, e que o usuário deve ser mais bem informado.

Um dos entrevistados percebe a assistência universalizada como inviável num país com tantos contrastes como o Brasil. Ele representa uma força instituinte que almeja alterar a proposta do SUS. Não acredita no sistema universal, considerando as polaridades no Brasil, e defende um sistema voltado para populações que possuam até determinado rendimento mensal.

Por intermédio dessa proposta afronta-se de uma só vez a universalidade e o controle público.

Vale lembrar que não será com exclusão, por princípio, que se poderá ter justiça social no país.

Apesar de todos os problemas e dificuldades enfrentados pelo SUS, ele representa uma importante e avançada política social em cursos no país 5,16.

Nesse sentido, os entrevistados apontam aspectos positivos ao afirmarem que as propostas são boas e que é importante implementá-las. Destacam que o SUS busca qualificar a saúde pública no Brasil, e que é melhor que o sistema anterior em relação à qualidade da atenção, com aumento da cobertura e mais democracia no que se refere ao acesso.

Alguns entrevistados falam sobre a esperança que têm na melhora do sistema e acreditam que as propostas são realmente boas.

A esperança de que os caminhos vão sendo encontrados pode ser um fator facilitador para a implantação do SUS, representando uma força instituinte que é a do desejo. Assim os trabalhadores podem atuar como forças instituintes neste processo de construção.

Verificou-se que a percepção da participação do trabalhador nas propostas do SUS está, muitas vezes, condicionada à sua formação, pertencimento à determinada categoria profissional e cargo ocupado.

De um lado, surgem questões referentes a pouca participação em razão da exclusão decorrente da categoria profissional a que pertencem e, de outro lado, a questão de que é possível aproveitar as idéias expostas por todos no presente ou no futuro, e que gostariam de saber como podem participar ativamente.

Todavia, constata-se na prática e na literatura 4,5,8,14,5,17 que as instituições de saúde não democratizam os processos decisórios, dificultando a inserção do trabalhador no processo de trabalho como um todo. Essa cultura organizacional representa o conjunto de significados compartilhados pelo grupo.

Implicação no trabalho

Quanto ao significado do trabalho sob o olhar de quem o realiza, para os entrevistados o trabalho significa muito. Conseguem percebê-lo como dignidade. Gostam do que fazem e o fazem por opção, apesar dos salários ruins. É gratificante por possibilitar a ajuda ao próximo.

O trabalhador experimenta e vivencia o próprio trabalho, valorizando-o conforme os seus paradigmas e significações.

Fundamentando-se nas narrativas, constata-se que todos os entrevistados consideram o seu trabalho importante para o serviço, cada um percebendo-o de maneira singular.

Muitos afirmam que o seu trabalho é importante e, ao mesmo tempo, explicitam em suas falas o desejo de reconhecimento e valorização.

Os trabalhadores podem desejar vivenciar um cotidiano diferente, mas as condições de trabalho instituídas dificultam esse processo. A execução do trabalho de uma maneira não muito coletiva pode tornar os sonhos frágeis e os desejos meros delírios.

Para alguns entrevistados, o trabalhador extrapola suas funções específicas, para atender ao usuário dentro das suas necessidades. Entendem que todo trabalhador, independentemente da categoria profissional, pode contribuir para melhorar a qualidade da saúde pública.

Um deles, contudo, explicita um forte sentimento de exclusão da equipe de trabalho, em função da categoria a que pertence.

Por esse relato, fica nítida a percepção de que a divisão técnica do trabalho coincide com uma divisão social, fundamentada na desvalorização do trabalho de uns em detrimento de outros. Isso gera fenômenos de mal-estar, de conflito, de disfunção, constituindo parte do não-dito institucional 18.

No cotidiano em foco, algumas questões geram insatisfação no trabalhador, como a dificuldade de mudanças na organização por causa de problemas de ordem política e econômica; a inadequada qualidade da saúde pública e a dificuldade de acesso do usuário. Tais questões podem dificultar a implicação do profissional no trabalho e gerar posturas alienadas. Isso pode ser modificado pela sensibilização do trabalhador para a importância da sua participação nos níveis decisórios, implicando a elaboração de maneiras mais democráticas e participativas de gerência.

Emerge, nos discursos, a questão da baixa remuneração do trabalhador da saúde.

Atualmente, discute-se muito a questão dos baixos salários e as condições inadequadas de trabalho no serviço público, relacionando-as ao desempenho dos trabalhadores.

Pode-se observar um trabalhador insatisfeito, pontuando que não faz seu trabalho devido à baixa remuneração e à ausência de perspectiva de desenvolvimento. Porém o baixo desempenho constatado no setor público não pode ser atribuído apenas à incompetência, a salários ruins e às más condições de trabalho, mas também, à inexistência de alguém capaz de conduzir o grupo para atingir os objetivos organizacionais. O fato de ganhar mal não justifica o não-trabalho 2,19.

Fundamentando-se nas narrativas e na literatura, pode-se asseverar que os serviços de saúde vivenciam uma situação delicada, cuja solução não envolve uma única medida.

Alguns entrevistados apontam para a importância de oferecer uma assistência de qualidade, evitando que o usuário seja empurrado de um lado para outro.

Entretanto, muitas vezes, o modelo gerencial dificulta a assistência integral. O trabalhador torna-se um mero executor de tarefas e o usuário recebe uma assistência fragmentada e com pouco compromisso e resolubilidade. As questões gerenciais estão intimamente imbricadas com o modelo assistencial 5,8.

Fundamentando-se nas entrevistas, aparece a importância de mudanças na formação profissional, buscando-se adequação aos pressupostos do SUS.

Alguns entrevistados discutem, particularmente, sobre a inadequada formação médica. Discorrem sobre a necessidade de melhor preparo do profissional de saúde.

É importante rever posturas profissionais e refletir como o trabalho acontece no dia-a-dia. Analistas institucionais apontam a importância de reconhecer não somente os entraves e dificuldades explícitas, mas sobretudo aquelas implícitas, como a parte oculta de um iceberg na qual a subjetividade, os não-ditos têm seu lugar 20.

Constata-se que um dos entrevistados entende a essência deste estudo como uma tentativa de melhorar o SUS para os cidadãos como um todo. Afirma que a pesquisa contribuirá para o desenvolvimento do exercício da cidadania.

Isso mostra que existem trabalhadores que, mesmo silenciados refletem sobre a prática. Buscam compreender a saúde pública como um campo intersetorial, com várias facetas, mas acima de tudo, tendo a possibilidade de ser construída coletivamente.

Todos os participantes da pesquisa, com seus olhares singulares, vivências, sofrimentos e desejos contribuíram para que se pudesse seguir nesta trajetória, construindo coletivamente um novo olhar em relação ao SUS. Desse modo, a Análise Institucional mostrou que pesquisadores e pesquisados se acrescentam e saem modificados do processo de pesquisa.

 

Conclusões

O estudo aqui apresentado diz respeito a dois ambulatórios municipais de especialidades, em Uberaba. Não tem, portanto, a pretensão de universalizar resultados sobre o SUS, sobre as implicações dos trabalhadores em saúde, mas aponta para a importância de se compreender a interação entre o modelo gerencial e a reorganização de serviços preconizada pelo sistema.

Esse, que é visto como uma política social, preconiza uma assistência integral, universal e com eqüidade à população. Com essa nova política, objetiva-se oportunizar o exercício da cidadania, buscando ampliar a democracia, considerando o espaço dos serviços como algo a ser construído coletivamente.

Também visa humanizar as relações naqueles espaços, estimulando a criação de vínculos entre trabalhadores e comunidade. Para isso, aposta em serviços gerenciados de maneira mais participativa, nos quais a liberdade de opinião e o direito à participação, decisão e planejamento devem ser assegurados. Acredita-se que envolver os profissionais no gerenciamento representa uma ferramenta importante para sua implicação nos processos de mudança e na implantação efetiva do SUS.

Entretanto, na prática, verifica-se que os serviços de saúde seguem uma lógica taylorista, podendo gerar como conseqüências a alienação, o descompromisso e a apatia.

Como uma alternativa a esse quadro, estudiosos sugerem modelos gerenciais mais participativos, flexíveis e humanos, acreditando ser um caminho que possibilite o exercício da cidadania e a possível implantação efetiva do sistema.

Ressalta-se, assim, a estreita ligação entre a operacionalização do SUS e o modelo gerencial, pois o gerenciamento tanto pode servir como instrumento libertador e justo, como também, ferramenta de dominação e poder.

Observou-se que o cotidiano dos serviços analisados neste estudo é permeado por contradições, desejos, desigualdades e determinação.

Foi surpreendente como os trabalhadores de saúde tiveram dificuldades em falar a respeito do SUS, apesar de trabalharem nesse contexto.

Outro fato marcante foi a idéia de um entrevistado em reformular o sistema, assegurando o direito ao acesso às pessoas com determinada remuneração, o restante tendo de recorrer a convênios médicos, assistência particular, dentre outros. Isso aponta para visões instituídas na sociedade brasileira de modelos de atenção excludentes e diferenciados de acordo com a classe social a que pertencem os usuários.

Chamou atenção o fato de que os trabalhadores consideram que o SUS ainda não acontece, efetivamente, no cotidiano dos serviços. Essas questões denunciam o distanciamento entre a teoria e a sua prática.

Por outro lado, alguns entrevistados percebem o referido sistema como positivo, pois apresenta avanços em relação ao anterior.

Pode-se compreender que, se por um lado, forças instituintes querem reformular o SUS, conforme um outro referencial, por outro, forças também instituintes querem a sua permanência e desejam que ele seja melhorado.

Constata-se que o modelo gerencial instituído permite a fragmentação, a estruturação do serviço conforme as distintas categorias profissionais, contrariando o proposto pelo sistema. Isso exclui os trabalhadores dos processos decisórios.

Vários profissionais explicitaram o desejo de ter acesso às informações, ao planejamento e às decisões. Relataram que ou não sabem como exercer a participação ou não podem exercê-la.

O cotidiano é recortado por lógicas que dificultam a implicação dos trabalhadores na implantação do SUS e no planejamento das ações, acarretando possível alienação, descompromisso e sentimento de desconforto.

Já é tempo de rever velhos modelos instituídos e possibilitar o surgimento e o fortalecimento do novo, que traz como essência o direito à participação e o envolvimento do trabalhador em todas as etapas do projeto terapêutico.

Observa-se, com base nas falas, que o modelo gerencial ainda possui fortes características centralizadoras e excludentes. Poucos decidem pela grande maioria. Considera-se que isso dificulta o processo de mudança e transforma o cotidiano num espaço de enfrentamento ou de silêncio, e nas duas circunstâncias impera o poder nas mãos de alguns e resta a outros tantos a submissão.

Novos estudos deverão ser realizados, comparando-se, por exemplo, a visão de profissionais de outros níveis de atenção à saúde na cidade, bem como comparações com outras cidades nas quais a implantação do SUS esteja em processo mais adiantado.

O assunto não se esgota aqui, já que a realização desta pesquisa possibilitou o entendimento de que os resultados apresentados não devem ser considerados como conclusões definitivas a respeito do tema.

 

Colaboradores

B. F. Goulart realizou a pesquisa e análise dos dados, assim como a redação do artigo. M.I. F. Freitas contribuiu na orientação e revisão do trabalho.

 

Referências

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Correspondência:
B. F. Goulart
Curso de Enfermagem
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Rua Senador Feijó 157, apto. 203
Uberaba, MG 38015-080, Brasil
bethania.ferreira@terra.com.br

Recebido em 08/Ago/2006
Versão final reapresentada em 30/Nov/2007
Aprovado em 27/Mar/2008

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br