DEBATE DEBATE
Atenção Primária à Saúde seletiva ou abrangente?
Ligia Giovanella
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. giovanel@ensp.fiocruz.br
O debate internacional e nacional sobre estratégias de Atenção Primária à Saúde foi intensificado na última década, e medidas para fortalecê-la fazem parte das reformas de saúde em diversos países europeus e latino-americanos, sendo assim muito bem-vindo o ensaio de Eleonor Minho Conill.
A partir de revisão de literatura internacional sobre casos específicos e selecionada análise de estudos recentes sobre a atenção básica/atenção primária no Brasil, a autora discute a trajetória da atenção primária enquanto política de reforma setorial. Descritos de forma clara e sintética, destacando os elementos centrais para a análise, os casos internacionais estudados, Canadá e Reino Unido, exemplificam experiências de países nos quais a atenção primária foi foco de um processo reiterado de reformas e permitem sinalizar as trajetórias da Atenção Primária à Saúde em países de industrialização avançada. A autora aponta, com fundamento, uma tendência nas reformas em saúde mais recentes de fortalecimento da atenção primária e de integração da rede assistencial. Para o Brasil, sua análise destaca resultados, condicionantes e desafios para a política de Atenção Primária à Saúde.
Atenção primária em saúde é termo que envolve distintas interpretações, como apontado pela autora que identifica duas concepções predominantes: cuidados ambulatoriais na porta de entrada e como política de reorganização do modelo assistencial de forma seletiva ou ampliada. Todavia, as concepções seletiva e ampliada de atenção primária subentendem questões teóricas, ideológicas e práticas muito distintas com conseqüências diferenciadas quanto às política implementadas e à garantia do direito universal à saúde, e valeria distingui-las apontando três interpretações principais. Uma primeira, mais comum em países europeus, como discutido pela autora, é aquela de serviços ambulatoriais de primeiro contato do paciente com o sistema de saúde, não especializados, incluindo amplo espectro de serviços clínicos e, por vezes, de ações de saúde pública, direcionados a resolver a maioria dos problemas de saúde de uma população. Outra interpretação é de programa focalizado e seletivo com cesta restrita de serviços. Essa concepção, como apontado pela autora, implica em distinto modelo assistencial, todavia não se conforma em estratégia de reorganização do sistema com um todo. Subentende apenas programas com objetivos restritos para cobrir determinadas necessidades de grupos populacionais em extrema pobreza, com recursos de baixa densidade tecnológica e sem possibilidade de acesso aos níveis secundário e terciário, correspondendo a uma tradução restrita dos objetivos preconizados, em Alma Ata, em 1978, para a Estratégia de Saúde para Todos no Ano 2000.
Nas proposições de Alma-Ata, a Atenção Primária à Saúde é entendida como função central do sistema nacional de saúde, integrando um processo permanente de assistência sanitária - que inclui prevenção, promoção, cura, reabilitação - e, como parte do processo mais geral de desenvolvimento social e econômico, envolvendo a cooperação com outros setores para promover o desenvolvimento social e enfrentar os determinantes de saúde. Esta terceira interpretação de Atenção Primária à Saúde, denominada de abrangente ou ampliada, corresponde a uma concepção de modelo assistencial e de reorientação e organização de um sistema de saúde integrado centrado na Atenção Primária à Saúde com garantia de atenção integral.
Para os países em desenvolvimento, esse debate não é secundário, pois, no pós Alma-Ata, em contexto internacional distinto, a Atenção Primária à Saúde foi, em geral, implementada, nesses países, em sua forma seletiva por iniciativa e financiamento de agências internacionais, e, assim, Atenção Primária à Saúde passou a designar um pacote de intervenções de baixo custo para controle de determinados agravos 1. Inicialmente proposta como estratégia interina e afirmada como complementar às proposições de Alma- Ata, a Atenção Primária à Saúde seletiva passou a predominar. Pode-se argumentar que, na difusão por agências internacionais, o pólo democrático/participativo foi negligenciado, para não dizer abandonado, e ocorreu a exacerbação do pólo tecnocrático (muito bem identificados pela autora), com racionalização de práticas e seleção de algumas atividades custo-efetivas como a terapia de reidratação oral ou acompanhamento do crescimento e desenvolvimento. Ainda que se reconheça a efetividade dessas intervenções, a garantia apenas dessa restrita cesta de serviços atenta contra o direito universal à saúde.
Nos anos 80, a Atenção Primária à Saúde seletiva se tornou hegemônica (não é por menos que o termo foi abandonado no Brasil), pois a esta certa "racionalização" se somaram questões ideológicas de peso. Na América Latina, políticas de ajuste fiscal e reformas macroeconômicas estruturais neoliberais centradas na desregulamentação dos mercados, abertura comercial e financeira e na redução do Estado com privatização importante de serviços sociais e de infra-estrutura, incentivadas por organismos financeiros internacionais, preconizaram concepção de proteção social assistencial focalizada em grupos populacionais em extrema pobreza e na saúde cesta restrita de serviços. Nesse contexto, no processo de implementação do SUS, observa-se uma tensão permanente entre a construção de um serviço nacional de saúde de acesso universal a todos os níveis de atenção e um sistema direcionado aos mais pobres com programas seletivos. Na consolidação de sistemas universais em países periféricos, a tensão entre expandir cobertura apenas com cuidados básicos e garantir cesta ampla está sempre presente, e a direcionalidade depende muito da constelação de forças políticas em cada momento histórico.
De fato, a comparação internacional mostra que a implementação de diferentes concepções de Atenção Primária à Saúde está condicionada pelo modelo de proteção social à saúde em cada país. Assim, nos países europeus, os serviços ambulatoriais de primeiro contato estão integrados a um sistema de saúde de acesso universal, isto é, o direito à saúde é garantido por meio de sistema universal com financiamento público ou por meio de contribuições específicas a seguros sociais, na prática universais, e a seletividade da Atenção Primária à Saúde não se coloca como questão: a atenção individual é garantida em todos os níveis. Nos países europeus com serviços nacionais de saúde, a Atenção Primária à Saúde é porta de entrada de um sistema de atenção à saúde de acesso universal. Nos países com seguros sociais, a Atenção Primária à Saúde é pouco desenvolvida e não se constitui na porta de entrada, predominando o cuidado individual e a livre escolha 2.
Em países periféricos, com esquema de proteção social de caráter residual, como muitos da América Latina, em geral, a Atenção Primária à Saúde é seletiva, correspondendo ao modelo focalizado. A extensão de cobertura em saúde que vem ocorrendo em diversos países da América Latina por meio de seguros específicos para certos grupos, como o materno infantil, concretiza princípios da concepção seletiva da Atenção Primária à Saúde. Por sua vez, o grau de segmentação dos sistemas de saúde condiciona as possibilidades de implementação de uma Atenção Primária à Saúde abrangente. Assim, na maior parte dos países da América Latina, a cobertura é segmentada, convivendo esquemas diferenciados com importantes desigualdades no acesso, e a atenção primária é incorporada apenas no setor público com programas seletivos.
No caso do Brasil, a situação é mais complexa, pois nosso sistema formalmente universal expandiu cobertura para amplas parcelas populacionais antes sem acesso, com oferta diversificada de serviços, ainda que insuficiente. Convive, contudo, com esquemas privados de seguros para camadas médias, produzindo segmentação, o que lhe confere, de certo modo, uma dualidade. De outra parte, a extensão da população brasileira coberta pelo SUS e que utiliza seus serviços não pode ser tipificada como residual. Todavia, a abrangência da cesta a ser garantida pelo sistema público está sempre colocada em questão. Assim, a seletividade e a focalização subentendidas nas propostas de Atenção Primária à Saúde para países periféricos permitem entender o atual interesse que o Banco Mundial demonstra ao apoiar a expansão de programa de atenção primária no país.
Outro aspecto que quero destacar é a importância da Atenção Primária à Saúde no cuidado de portadores de doenças crônicas, no qual a coordenação e a longitudinalidade, atributos de uma Atenção Primária à Saúde robusta, como proposto por Starfield 3, são qualidades assistenciais imprescindíveis para garantia da adesão e continuidade do cuidado. Assim, o recente processo de renovação da Atenção Primária à Saúde, impulsionado pelas agências multilaterais em saúde, pode ser uma oportunidade de tencionar necessárias mudanças no modelo assistencial, produzindo estratégias de cuidados menos invasivas e mais dialógicas com produção de autonomia para os sujeitos como suportado pelo "eixo democrático/participativo" da Atenção Primária à Saúde. Entretanto, a reorganização do sistema de saúde com fortalecimento do papel da Atenção Primária e exercício da função de coordenação pelo profissional/equipe de Atenção Primária à Saúde implica em credibilidade desse profissional/equipe frente aos pacientes e outros prestadores, o que, como bem apontado por Conill, depende de mudanças culturais e na formação desses profissionais. Como afirma a autora, é a dinâmica dos atores sociais, sujeitos das relações no cotidiano assistencial, que reproduz ou cria novos modelos assistenciais.
1. Cueto M. The origins of primary health care and selective primary health care. Am J Public Health 2004; 94:1864-74.
2. Giovanella L. A atenção primária à saúde nos países da União Européia: configurações e reformas organizacionais na década de 1990. Cad Saúde Pública 2006; 22:951-63.
3. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/Ministério da Saúde; 2002.