DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Sichieri & Souza

 

Debate on the paper by Sichieri & Souza

 

 

Malaquias Batista Filho

Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira, Recife, Brasil. mbatista@imip.org.br

 

 

Depois de um milenar e, segundo Castro 1, intencional silêncio cultural do Ocidente, no último século a humanidade foi despertada para o grave problema da fome mundial, que passou a fazer parte da agenda de pensadores, estadistas, comunicadores, lideranças políticas e religiosas e, notadamente, de estudiosos dos problemas de saúde em nível populacional e clínico. Estabeleceu-se assim, com legitimidade ética e justificativa científica, a grande focalização sobre as formas mais grosseiras das carências nutricionais ou suas manifestações menos visíveis e de maior prevalência, chamadas emblematicamente de "fome oculta".

A mobilização de idéias e empreendimentos em torno das carências alimentares/nutricionais representou um processo historicamente muito positivo, resultando no reconhecimento da alimentação como um dos direitos fundamentais do homem. Todavia, como sempre foi comum na história, criou-se um apriorismo que acabou retardando a observação de uma outra face da moeda: o contraponto dos excessos e impropriedades alimentares e suas manifestações específicas ou associadas, como o sobrepeso/obesidade, as dislipidemias, diabetes mellitus, doenças cardiovasculares, osteoarticulares e alguns tipos de neoplasias que atualmente respondem por 58% das causas de morte. Essa outra face adversa do problema só ganhou status de primeira ordem em nível institucional há cinco anos, quando as Nações Unidas, com a adesão de todos os países, exceto os Estados Unidos, concordaram com os termos e princípios da Estratégia Global para Alimentação, Atividade Física e Saúde 2. Trata-se, de fato, de um movimento de resgate de uma nova situação que começou a ser percebida, sem maiores repercussões, vinte anos depois de se estabelecer o consenso (ou o grande compromisso?) em torno das restrições agudas ou crônicas de consumo alimentar nos países em desenvolvimento.

É nessa perspectiva que o artigo de Sichieri & Souza representa uma contribuição oportuna, pertinente e muito relevante para a análise do problema. Torna-se até mesmo um estudo matricial, na medida em que pode assumir, não apenas nas instituições de ensino e pesquisa, mas num espaço e num tempo bem mais amplos, um efeito reprodutivo de novos desdobramentos e aprofundamentos. Assim, as observações analíticas que se seguem têm um caráter mais complementar que contraditório em relação à excelente contribuição que o estudo representa. Desse modo, os comentários e questionamentos aqui apresentados já representariam um subproduto de reflexões e sugestões oportunizadas pelo artigo e que podem ser reunidas em dois grupos: o primeiro, de ordem conceitual e metodológica, e o segundo aplicado mais restritivamente à particularidade de alguns resultados, conclusões e perspectivas.

Ressalta-se que os estudos sobre eventos comportamentais não são bem resolvidos com abordagens quantitativistas. É o caso típico do desmame precoce, estudado durante décadas com questionários que, quase invariavelmente, implicavam resultados concordantes (e falsos!) sobre a insuficiente produção de leite, doença da mãe e da criança, leite "fraco" ou "doce", recusa da criança, ocupação da mãe etc., quando, de fato, outras razões ocultas não eram investigadas, como a questão da imagem corporal, a comodidade da alimentação heteróloga, o modismo do leite em pó e até a causa feminista (a amamentação estabelecia assimetria de deveres entre pais e mães).

O que é um bom resultado? Em relação à prevenção ou tratamento da obesidade, semelhanças estatísticas de respostas comparativas com as campanhas contra as drogas, o alcoolismo, o grupo DST/AIDS seriam pertinentes e legítimas? Pode-se até dizer que mesmo a estabilização num determinado nível de prevalência (20%, por exemplo) sem uma redução idealizada para 10%, seria um bom resultado, quando a tendência do problema seja de crescimento progressivo pela acumulação de novos casos. Exemplificando: na Paraíba, o estudo (a ser publicado) de uma população singularmente pobre demonstrou que a prevalência de sobrepeso/obesidade em adolescentes era de 12,4%, elevando-se para 44,3% na faixa de 20-39 anos, e para 58,5% no grupo de 40 anos e mais. Assim, se a situação prospectiva dos adolescentes de então se mantivesse para as faixas etárias subseqüentes, já seria um resultado marcantemente positivo. É evidente que não se dispõe de estudos de coortes atuais que possam iluminar este questionamento, de modo que a situação só pode ser analisada com as limitações do método ecológico.

Um fundamento conceitual (e até paradigmático) consiste em observar que, no curso de 200 anos, o domínio das condutas coletivas deslocou-se da hegemonia política - quase 150 anos - para o econômico e social (50 anos), chegando, finalmente, ao cultural propriamente dito nos últimos 15 anos. É nesse novo contexto, articulando e sobrepondo-se ao econômico, ao político e ao social, que deve ser compreendida a situação atual e suas projeções mais próximas 3. A epidemiologia e seu braço executivo - a saúde pública - ainda não dão conta da natureza e extensão do novo desafio. Assim, as formulações setoriais de seu objeto e método de estudo tornam-se necessariamente reducionistas, mesmo que, de forma timidamente experimental, se possa recorrer a contribuições de outros domínios. O ambiente obesogênico não é um fatalismo irreversível: a nova cultura e os novos papéis de governo, até a nova ética do desenvolvimento humano, incorporando as lições da ciência e da técnica, podem mudar a situação.

Em verdade, só muito recentemente a questão do sobrepeso/obesidade e co-morbidades associadas ganhou status de interesse público, por sua visibilidade epidemiológica. Com pouca acumulação histórica, as revisões sistemáticas e os estudos meta-analíticos deixam de apresentar a necessária consistência como leitura temporal, pois os experimentos de intervenção, em grande parte restritos a períodos de 1 a 3 anos, naturalmente se tornam inadequados para situações que são essencialmente crônicas, cursando ou interessando ao próprio ciclo da vida.

Seria interessante que os autores resgatassem as experiências bem sucedidas do controle do tabagismo nos países nórdicos nos últimos 50 anos e da redução bem mais lenta do sobrepeso/obesidade na população adulta, na Escandinávia. Em contraponto - e até surpreendentemente - no Brasil, em pouco mais de 15 anos, a diminuição da obesidade em mulheres adultas oferece sinais de uma redução consistente nos estados do sul e sudeste, o mesmo não acontecendo na população de homens adultos.

No mesmo sentido, convém lembrar o novo cenário que começa a se estabelecer em relação ao consumo de legumes, frutas e verduras em 15 capitais brasileiras, em avaliações de adultos e adolescentes. Embora sem uma linha de base obedecendo à mesma metodologia, os resultados comparativos com o Estudo Nacional da Despesa Familiar (ENDEF 1974-1975), ou com estudos qualitativos do consumo reproduzidos em seqüência no Estado de Pernambuco, Brasil, parecem evidenciar uma mudança consistente de hábitos, no sentido de diversificar a dieta na direção de práticas alimentares mais saudáveis. Pode-se questionar que os novos hábitos de consumo de maiores de 50 anos derivariam de recomendações clínicas específicas, tendo caráter dietoterápico, não representando necessariamente hábitos de promoção de saúde. Mas, por que os adolescentes passam a se comportar de forma bastante parecida?

São evidências ainda preliminares, mas promissoras. Na visão da nova cultura que está se estabelecendo, o estatuto (vamos chamá-lo assim) da alimentação e estilos de vida saudáveis começa a ganhar espaço.

 

 

1. Castro J. Geografia da fome. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Griphus; 1992.         

2. World Health Organization. Global strategy on diet, physical activity and health. Food Nutr Bull 2004; 25:292-302.         

3. Touraine A. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrópolis: Editora Vozes; 2005.        

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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