RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Ricardo Burg Ceccim

EducaSaúde - Núcleo de Educação, Avaliação e Produção Pedagógica em Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. burg.ceccim@ufrgs.br

 

 

Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de sus.
Matta GC, Lima, JCF, organizadores. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz; 2008. 422 pp.

ISBN: 978-85-7541-158-2

 

Saúde é luta: lutar com a formação?

Em 2008, ano em que comemoramos os 20 anos de criação do Sistema Único de Saúde (SUS) como definição ao setor da saúde no capítulo da Ordem Social na Constituição Federal brasileira, diversos títulos foram publicados em forma de artigo, manifesto ou livro. Gustavo Corrêa Matta e Júlio César França Lima, professores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz, lançaram-se a um balanço tendo em vista a política de formação dos profissionais de saúde, organizando o livro Estado, Sociedade e Formação Profissional em Saúde: Contradições e Desafios em 20 Anos de SUS. Sua obra não veio desacompanhada de leitores de relevância à educação e à saúde no Brasil, o livro é apresentado por leitores privilegiados com o primeiro acesso à obra: o educador Gaudêncio Frigotto e o sanitarista Gastão Wagner de Souza Campos; o primeiro uma referência nacional às relações Educação, Sociedade e Trabalho, e o segundo às relações Saúde, Sociedade e Trabalho em Saúde. Tais pesquisadores, analistas das políticas públicas de educação e de saúde, atestaram suas impressões na contracapa e orelhas da obra, respaldando a consistência de sua seleção de temas, autores e enfoques.

A obra tem corte nas análises estruturais da sociedade e da economia. Uma preocupação do livro foi a oferta de denúncias consistentes ao governo das estruturas sócio-econômicas sobre os resultados verificados em educação, saúde e seguridade social. O livro traz expoentes da educação e da saúde, convidados à mesa de exposição do capitalismo brasileiro contemporâneo. Da obra, participaram 12 autores, incluídos os organizadores, entre os quais profissionais das áreas de biologia, educação, enfermagem, filosofia, história, medicina, psicologia e sociologia. Foram 5 cientistas da área da saúde coletiva, 4 da área da política e 3 da educação. O livro contém cinco partes, cada uma com dois capítulos. Do balanço constam a globalização neoliberal; a seguridade social; a reforma sanitária brasileira; o público e o privado na saúde; democracia e participação; trabalho, integralidade e formação; política educacional e educação dos trabalhadores da saúde (com foco na educação do trabalho).

Dentre as contribuições especiais estão o exame dos fatos ou das circunstâncias subjacentes à realidade setorial da saúde ou a instigante abertura de margens à interrogação de docentes, pesquisadores e leitores do campo da educação na área da saúde. Pode-se citar a globalização: a massificação neoliberal ou o inédito acesso generalizado à informação, oportunidade de conhecimento cada vez maior por um número cada vez maior de pessoas, representando uma entrada mais veloz dos grupos sociais às fontes de saber antes represadas aos detentores de certo padrão de poder. Outra referência, a noção inédita de direitos sociais universais, como aspiração à seguridade social, em que, de um lado, ascende-se à proteção da cidadania, mas, de outro, verifica-se a explosão da oferta de seguros sociais. Oferta essa com uma dupla face: aos segmentos mais abastados, os planos e seguros privados de saúde e previdência; aos mais pobres, planos focais de prevenção ou tratamento de doenças ou agravos e promoção da saúde.

O "balanço" permite interrogar a volta da noção de saúde como bem de consumo, não como tematização da integralidade, uma conquista da sociedade bem explanada na abordagem de Ruben Mattos, colaborador da obra. Provoca reconhecer medidas de Estado orientadas novamente para a privatização, recentralização, capitalização e focalização por meio da crítica de potentes analistas de economia política, como Sônia Fleury. A Reforma Sanitária, como um movimento social e da sociedade civil, é reenfocada no escopo da obra, tendo em vista seu disparo a uma reforma social que trabalhe por democracia e direitos sociais. O trabalho de consciência sanitária, como trabalho de consciência política do direito à saúde, é retomado pelo reconhecimento do SUS não como a síntese da Reforma Sanitária, mas como a expressão de uma conquista popular histórica. A contribuição de Jairnilson Paim explora o andar da reforma com a compreensão de estrangulamentos e vias de passagem: financiamento, gestão, organização de sistema e modelo de atenção. O analista apresenta marcadores como o gasto em saúde, internacionalmente comparado; a saída arranjada das fundações estatais; o nó da acessibilidade e eqüidade diante da regionalização e hierarquização no sistema de atenção; e o nó da qualidade e integralidade diante da estratégia programática de saúde da família. Destaca o descenso do movimento social e a ascensão dos gestores no lugar protagonista dos rumos da política de saúde, apontando a urgência de retomada da totalidade da agenda da reforma sanitária.

O tema do público e do privado na saúde não poderia deixar de ser abordado, tema crucial ao debate contemporâneo do SUS: o complexo debate de que o privado não está fora do SUS, pois o sistema de saúde não é dual, ele comporta um subsetor público-estatal e um subsetor privado-suplementar. A novidade da regulação pública do subsetor privado-suplementar introduz novidade ao papel público do SUS. Lígia Bahia ilustra essas relações no Brasil, onde não se pode mais apenas falar de setor público e setor privado na saúde, pois, aqui, existe o SUS com um subsetor privado-suplementar. O SUS universal representa a efetivação do direito à vida. Ocorreu a expansão dos usuários de planos e seguros privados, mas ocorreu a expansão da rede pública, ambas cresceram na direção da atenção básica. Ocorreu o decréscimo da contratação do privado pelo público, mas também a ampliação do componente das filantrópicas, uma dupla vinculação privada e pública. A noção de público não estatal não foi abordada, mas, em uma história e memória da ação estatal não pública, poderíamos discutir uma cidadania ainda mais implicada e alargada: sobre os subsetores público e privado.

Conselhos e conferências de saúde, uma comemoração do Estado participativo, são mostrados em seu avanço mais na linha da fragmentação dos direitos e dos pleitos que de uma democracia forte. A retomada da politização na e pela mobilização social é reivindicada na colaboração de Nelson Rodrigues dos Santos: acumular forças para superar a lógica do mercado. Pode-se provocar, entretanto, que este não é um trabalho pela via da consciência, é justamente a consciência que captura a participação em direitos e pleitos, não mais a empolgação com a invenção da vida quando uma mobilização é pelo viver intenso.

A densidade do livro não projeta seus autores, mas a sua instituição de ensino e pesquisa, seu compromisso com a Joaquim Venâncio e desta com seus atores de trabalho educativo. O livro demonstra a densidade, o fôlego e a dedicação da Escola ao pensar crítico das relações Estado, Sociedade e Formação Profissional em Saúde. Esse pensar não é "o" ou "um" título do livro, é a natureza da ação educativa levada a efeito com primazia no que se refere à produção pedagógica da Joaquim Venâncio. O que se pode agregar é que o objeto da saúde é de natureza interdisciplinar, com práticas de investigação transdisciplinar e com a participação de uma equipe multiprofissional de operadores no cuidado, na pesquisa, na gestão e na docência. A aliança das dimensões técnica e política na reflexão sobre o ensino da saúde tem sido disparada por pressões e interpretações intelectuais como essas constantes da obra de Matta e Lima, indicativa de caminhos à mudança e razões de urgência para a mesma.

Uma lacuna ficou para uma próxima investida, de um lado pela agitação que os autores não conseguem conter, suspiram: "entre as lutas, pode-se enumerar (...)". Aí aparece o que ficou escondido, ventilado apenas pelo texto de Ruben Mattos, mas são os próprios autores que enunciam: a cobertura de cuidados foi ampliada, outros profissionais interpenetraram e transformaram a prática "médico-centrada" em "atenção integral" (profissionais médicos ou não, embora a entrada de profissionais não-médicos diga de uma prática de saúde que não se esgota na natureza médica dos adoecimentos), a desmanicomialização em saúde mental e a criação de formas de gestão de sistema de saúde segundo as necessidades de pessoas e populações (poderíamos citar a "regionalização solidária da saúde" ou a "imagem da mandala na gestão em rede de práticas cuidadoras"). É que a dimensão técnica pode ser A ou B, mesmo que aliada da dimensão política. A dimensão política pode ser A ou B, mesmo que aliada da dimensão técnica. O ensino da saúde, por exemplo, não pode ser sintetizado no debate do currículo de conteúdos e planejamento de abordagens docentes. O ensinar e o aprender saúde são dois movimentos componentes das relações de aprendizagem, as quais implicam reconhecer as especificidades desses movimentos e do próprio objeto ensino da saúde, a fim de que se trabalhe pela aprendizagem da integralidade, do sistema de saúde, da multiprofissionalidade e da horizontalização entre profissionais técnicos e profissionais superiores. O ensino da saúde participa do processo de determinação do sistema de saúde dos países, participa da tomada de consciência da cidadania, mas é produtor pedagógico do vibrar, da empolgação e da imagem de vida e de saúde a disputar para si e para o mundo. A educação dos profissionais de nível médio e a existência de escolas técnicas próprias do SUS ativam uma maneira de ler, interpretar e propor intervenções diante das necessidades sociais em saúde e do papel a ser exercido pela profissionalização, não apenas técnica ou tecnológica, mas alicerçada e alavancada pelo SUS. A luta por saúde e educação, portanto, ultrapassa a noção de uma saúde e educação "para todos", como colocam os colegas ao final da introdução. Tomo essa noção (educação e saúde para todos) como a generalização, ao sabor das organizações mundiais, que propõe uma saúde e uma educação para uma massa indistinta. Pego, então, a noção pelo contrapé: "para todos" é a suposição de uma serialização, ao sabor do Capitalismo Mundial Integrado. Afinal, o que é que serve "para todos"? A luta por educação e por saúde é para todos e todas, é, também, para cada um e cada uma. Penso deixar aí uma convocação aos educadores: lutar com a formação, mas em sua ressingularização permanente, em escuta pedagógica daquilo que pede passagem, em uma arte da educação. O processo de trabalho em saúde é reconfigurado pelas ações de ensino e profissionalização.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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