CARTAS LETTERS

 

Prevenção da dengue: a proficiência em foco

 

Dengue prevention: focus on proficiency

 

 

João Bosco Jardim; Virgínia Torres Schall

Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, Belo Horizonte, Brasil

Correspondência

 

 

Muito já se escreveu sobre a falta de efetividade das medidas de controle do Aedes aegypti, inclusive das ações educativas que visam a mobilizar moradores de regiões endêmicas de dengue no combate ao vetor 1. Ao comentar, em editorial da revista Epidemiologia e Serviços de Saúde, o aumento da incidência e da gravidade dos casos de dengue no mundo, Tauil 2 observa que mesmo programas de controle universalmente celebrados como bem-sucedidos não foram efetivos o suficiente para impedir novas epidemias da doença, resultado que, segundo o pesquisador, salienta a necessidade de um aperfeiçoamento das medidas de controle vetorial hoje disponíveis. Para nós, tal necessidade se aplica também aos programas de informação e educação que têm como alvo o comportamento do morador, razão pela qual as considerações a seguir são feitas com o intuito de contribuir para a ampliação da discussão e o possível aperfeiçoamento das medidas de controle domiciliar do vetor.

Presume-se que a efetividade de tal controle dependa, entre vários e complexos fatores, da melhoria do saneamento básico, especialmente do abastecimento de água às populações de regiões afetadas pela dengue 3. No entanto, dado o atual clima de responsabilização do morador em face das condições usualmente precárias de coleta e armazenamento de água nos domicílios dessas populações, parece-nos que a proficiência de certos comportamentos considerados de modo geral adequados para auxiliar o controle vetorial da doença está sendo negligenciada em favor de uma abordagem do problema que privilegia tão-somente a ação individual, sem consideração da sua especificidade.

De fato, a proficiência das ações de controle vetorial confiadas a moradores de regiões endêmicas de dengue não constitui, geralmente, uma preocupação dos programas educativos. Em vista da variabilidade natural da resposta humana às recomendações de conduta preventiva de tais programas, parece-nos que essa omissão pode implicar a ocorrência de comportamentos nos domicílios que, embora considerados preventivos pelos moradores, não caracterizam necessariamente uma ação efetiva.

 

Tampar e vedar

As fêmeas do vetor, como se sabe, põem ovos à beira de água parada. Os programas educativos instruem rotineiramente o morador a tampar reservatórios, baldes, pratos de vasos de planta e outros recipientes de água de uso doméstico, além de instruí-lo quanto a cuidados com inservíveis e instalações vulneráveis, como as calhas de telhado. Em se tratando de recipiente de uso doméstico, porém, a vedação total do acesso do mosquito à água constitui um comportamento mais proficiente (no sentido de ser provavelmente mais efetivo como ação preventiva) do que o mero ato ou efeito de tampar. Ainda que haja uma recomendação implícita de proficiência em mensagens educativas do tipo "tampe bem o recipiente", a efetividade preventiva do tapamento ficará comprometida se este comportamento do morador deixar brechas para a passagem de fêmeas grávidas de Ae. aegypti. Nessa circunstância, somente a vedação total do acesso das fêmeas à água irá prevenir a oviposição e, conseqüentemente, a transformação do recipiente em criadouro do mosquito. Lenzi & Coura 4 salientaram a pertinência dessa distinção no relato de uma avaliação do conteúdo informativo de folhetos de campanhas educativas, distribuídos por órgãos de saúde pública à população do Rio de Janeiro durante a epidemia de dengue enfrentada pelo estado em 2002.

Nas décadas recentes, a despeito da presumida relação entre a doença e as condições de vida das populações afetadas 5, uma variedade de intervenções tem procurado estabelecer comportamentos domiciliares capazes de contribuir para a redução dos criadouros 1. Parece-nos necessário que as recomendações nesse sentido considerem de modo mais explícito o aspecto fundamental da proficiência dos comportamentos que se pretende estabelecer. Para o propósito de controle vetorial do dengue nos domicílios, esse aspecto não pode ser deixado indefinido, vago ou ambíguo. As recomendações de proficiência são comumente aplicadas ao uso de cintos de segurança em veículos, ao uso de preservativo nas relações sexuais e a outras circunstâncias rotineiras de prevenção, mas não se verifica a mesma cautela quando se trata do uso seguro de recipientes de água em domicílios de regiões endêmicas de dengue. De fato, esse é um problema de saúde pública ainda pouco estudado em termos estritamente comportamentais.

 

Barreiras físicas

Nossa sugestão é a de que os educadores, profissionais de saúde e autoridades de saúde pública se concentrem mais especificamente na proficiência com que o morador veda o acesso do mosquito à água. Operacionalmente, uma recomendação dessa natureza se traduz como uma prescrição formal para a vedação segundo especificações predeterminadas. Entre vários métodos capazes de atender a especificações de controle vetorial do dengue se incluem barreiras físicas como as capas de tela à prova de mosquitos, cuja efetividade na prevenção de criadouros domiciliares do Ae. aegypti vem sendo testada em vários países 6,7,8,9. Também o Laboratório de Educação em Saúde do Centro de Pesquisas René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz (LABES/CPqRR/Fiocruz) vem desenvolvendo um protótipo de capa de tela de poliéster (Evidengue) para controle vetorial em pratos de vasos de planta 10, tendo em vista a alta prevalência de larvas de Ae. aegypti em tais recipientes no sudeste brasileiro 11.

A importância da proficiência da vedação integral do acesso do mosquito à água pode ser ilustrada com um estudo de campo que testou a efetividade preventiva de uma tela com inseticida em reservatórios de uma comunidade do Camboja 7. Ainda que um follow-up desse estudo tenha encontrado um grande percentual de reservatórios cobertos com a tela, 16,5% deles estavam ainda infestados, resultado que põe em dúvida a proficiência de vedação. Claramente, esta é uma área de pesquisa comportamental que necessita de maior atenção.

 

Colaboradores

Os autores redigiram conjuntamente o texto.

 

Referências

1. Heintze C, Garrido MV, Kroeger A. What do community-based dengue control programmes achieve? A systematic review of published evaluations. Trans R Soc Trop Med Hyg 2006; 101:317-25.         

2. Tauil PL. O desafio do controle do Aedes aegypti e da assistência adequada ao dengue. Epidemiol Serv Saúde 2007; 16:153-4.         

3. Tauil PL. Urbanização e ecologia do dengue. Cad Saúde Pública 2001; 17 Suppl:99-102.         

4. Lenzi MF, Coura LC. Prevenção da dengue: a informação em foco. Rev Soc Bras Med Trop 2004; 37:343-50.         

5. Machado JP, Oliveira RM, Souza-Santos R. Análise espacial da ocorrência de dengue e condições de vida na cidade de Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2009; 25:1025-34.         

6. Kittayapong P, Strickman D. Three simple devices for preventing development of Aedes aegypti larvae in water jars. Am J Trop Med Hyg 1993; 49:158-65.         

7. Kroeger A, Lenhart A, Ochoa M, Villegas E, Levy M, Alexander N, et al. Effective control of dengue vectors with curtains and water container covers treated with insecticide in Mexico and Venezuela: cluster randomised trials. BMJ 2006; 332:1247-52.         

8. Seng CM, Setha T, Nealon J, Chanta N, Socheat D, Nathan MB. The effect of long-lasting insecticidal water container covers on field populations of Ae. aegypti (L.) mosquitoes in Cambodia. J Vector Ecol 2008; 33:333-41.         

9. Socheat D, Chantha N, Setha T, Hoyer S, Chang MS, Nathan MB. The development and testing of water storage jar covers in Cambodia. Dengue Bull 2004; 28 Suppl:8-12.         

10. Barros HS. Investigação de conhecimentos sobre a dengue e do índice de adoção de um recurso preventivo (capa evidengue®) no domicílio de estudantes, associados a uma ação educativa em ambiente escolar [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz; 2007.         

11. Maciel-de-Freitas R, Marques WA, Peres RC, Cunha SP, Lourenço-de-Oliveira R. Variation in Aedes aegypti (Diptera: Culicidae) container productivity in a slum and a suburban district of Rio de Janeiro during dry and wet seasons. Mem Inst Oswaldo Cruz 2007; 102:489-96.         

 

 

Correspondência:
J. B. Jardim
Centro de Pesquisas René Rachou
Fundação Oswaldo Cruz.
Av. Augusto de Lima 1715
Belo Horizonte, MG
30190-002, Brasil.
jardim@cpqrr.fiocruz.br

Recebido em 08/Jun/2009
Versão final reapresentada em 07/Ago/2009
Aprovado em 03/Set/2009

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br