ARTIGO ARTICLE
Confiabilidade dos dados relativos ao cumprimento da Emenda Constitucional nº. 29 declarados ao Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde pelos municípios de Pernambuco, Brasil
Reliability of data on compliance with Constitutional Amendment 29 reported to the Public Healthcare Budget Information System by municipalities in Pernambuco State, Brazil
Rogério Fabiano GonçalvesI, II; Adriana Falangola Benjamin BezerraII, III; Antônio Carlos Gomes do Espírito SantoII,III; Islândia Maria Carvalho de SousaII, IV; Paulo J. Duarte-NetoII, V; Keila Silene de Brito e SilvaII, III
IUniversidade de Pernambuco, Petrolina, Brasil
IIGrupo de Pesquisa Economia Política da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil
IIICentro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil
IVCentro de Pesquisa Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, Brasil
VUnidade Acadêmica de Garanhuns, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Garanhuns, Brasil
RESUMO
O estudo analisa a confiabilidade dos dados relativos ao cumprimento da Emenda Constitucional nº. 29 (EC29) declarados ao Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) pelos municípios de Pernambuco, Brasil. Configura-se como um estudo quantitativo, do tipo transversal e de caráter analítico, tendo como referência o período de 2000 a 2005. Os demonstrativos contábeis auditados pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) foram tomados como parâmetro para verificar a confiabilidade dos percentuais de aplicação da EC29 declarados ao SIOPS, sendo utilizado o coeficiente de correlação intraclasses (CCI) como prova estatística na medição da concordância dos dados. Os resultados demonstram a dissonância existente entre as bases consultadas, sugerindo um nível de concordância discreto a moderado entre os dados do SIOPS e do TCE. A baixa concordância identificada pode ser decorrente da falta de consenso pelos municípios acerca da composição das receitas e despesas vinculadas à saúde ou da existência de critérios diferentes no cálculo da EC29 entre o SIOPS e a auditoria do TCE.
Financiamento em Saúde; Sistemas de Informação; Executoriedade da Lei
ABSTRACT
The present study analyzes the reliability of data on compliance with Constitutional Amendment 29 (CA29) reported to the Public Healthcare Budget Information System (known as SIOPS) by municipalities in the State of Pernambuco, Brazil. A quantitative, analytical cross-sectional study was conducted using the years 2000 to 2005 as the reference. Invoices audited by the State Accounts Court were used as the parameter for determining reliability of the percentage of compliance with CA29 as reported to SIOPS, using the intraclass correlation coefficient (ICC) to measure data agreement. The results show a mismatch between the databases, suggesting slight to moderate agreement between the SIOPS data and those from the State Accounts Court. The low degree of agreement may result from lack of consensus among municipalities regarding definition of health-related revenues and expenses or the existence of different criteria used by SIOPS and the State Accounts Court for calculating the CA29.
Health Financing; Information Systems; Law Enforcement
Introdução
No Brasil, após quase vinte anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, a discussão acerca do financiamento da saúde pública permanece na ordem do dia e expõe a fragilidade do Estado na garantia dos preceitos constitucionais da atenção à saúde. A insuficiência de recursos, principal característica da crise setorial, fomenta o debate em torno da construção e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), abrangendo temas como a racionalização do gasto em saúde, a alocação equitativa de recursos, o fortalecimento do controle social e a regulamentação da Emenda Constitucional nº. 29 (EC29).
Do ponto de vista do acompanhamento da EC29, a qual compromete as três esferas de governo com o custeio do sistema 1, as evidências do atendimento à lei têm sido objeto de reflexão e assumem a centralidade do debate em torno do desempenho das Unidades da Federação no cumprimento às metas. Para Carvalho 2 e Porto 3 a ausência, no texto da Emenda, de definição clara do que seja efetivamente permitido como gasto em saúde, dado a abrangência do seu conceito ampliado, favoreceu a pluralidade de interpretações na aplicação dos seus recursos.
No campo das políticas de informação em saúde, o aprimoramento do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) tem conferido maior acessibilidade e visibilidade aos dados financeiros de estados e municípios, sendo o instrumento de acompanhamento da EC29, conforme prevê a Portaria nº. 91/GM do Ministério da Saúde, de 10 de janeiro de 2007, integrante da política do Pacto pela Saúde 4.
Considerando o caráter declaratório dos dados que alimentam o sistema, aliado ao grande número de municípios do país, a verificação de consistência dos dados pela equipe técnica do SIOPS abrange, somente, a comparação dos dados dos governos estaduais e distrital com as informações publicadas em balanço 5. A ausência dessa aferição para os municípios remete a um questionamento quanto à confiabilidade dos dados municipais, uma vez que dá margem à publicidade de informações distorcidas. Nesse sentido, o presente estudo objetivou avaliar a confiabilidade dos dados municipais declarados ao SIOPS, relativos ao cumprimento à EC29 em Pernambuco, Brasil, no período de 2000 a 2005.
Procedimentos metodológicos
O Estado de Pernambuco, situado na Região Nordeste, foi escolhido como cenário de realização da pesquisa tendo em vista a viabilidade de execução do estudo, considerada a partir da avaliação de aspectos como: conhecimento prévio do território a ser investigado, acesso às informações, articulação e comunicação com órgãos institucionais da esfera pública.
Esta investigação é parte da pesquisa: Avaliação do SIOPS e Capacitação de Gestores Municipais para a Atualização e Qualificação dos Dados no Uso da Tecnologia da Informação, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), tendo aprovação do Comitê de Ética da Universidade Federal de Pernambuco. Configura-se como um estudo quantitativo, do tipo transversal e de caráter analítico, tendo como referência o período de 2000 a 2005, delimitado pelo início de vigência da EC29 e disponibilidade de informações do Tribunal de Contas do Estado (TCE) até 2005.
O procedimento de coleta se deu a partir do levantamento de dados secundários do SIOPS e do TCE. No SIOPS, foram verificados os percentuais de recursos mínimos aplicados em saúde pelos municípios de Pernambuco, caracterizados como contrapartida de recursos municipais e no TCE, buscou-se a referida informação a partir dos demonstrativos contábeis da saúde auditados. Somente os dados com informações simultâneas nas duas fontes, para cada ano avaliado, foram incluídos para análise.
O significado de confiabilidade adotado neste artigo compreende uma combinação de duas análises: a concordância entre os dados municipais declarados ao SIOPS e aqueles constantes dos demonstrativos contábeis auditados pelo TCE e a correspondência de informações quanto à situação de cumprimento da EC29 em Pernambuco, a partir das fontes de dados mencionadas. Em ambas as análises, os dados do TCE são considerados como os que melhor se aproximam do efetivo dispêndio na saúde, a partir da receita própria dos municípios, tendo em vista haver um processo de análise técnica dos auditores acerca das receitas e despesas declaradas nos demonstrativos contábeis, ou seja, foram utilizados dados auditados, mas ainda não julgados pelo Ministério Público. Nesse sentido, outra consideração importante é o fato de haver possibilidade de divergência quanto aos itens que compõem o cálculo da EC29 entre as duas fontes de coleta, questão não verificada na pesquisa, uma vez que se optou por trabalhar com os percentuais definidos, resultantes do cálculo final de aplicação da EC29.
O banco de dados obtido foi analisado considerando duas etapas, descritas abaixo, utilizando os programas Excel 2007 (Microsoft Corp., Estados Unidos) e Statistica 6.0 (Statsoft Inc.; http://www.statsoft.com).
Etapa 1: concordância entre os dados municipais declarados ao SIOPS e auditados pelo TCE
A análise teve como proposta verificar, para cada ano, se os percentuais de aplicação da EC29 no SIOPS correspondiam aos que constavam nos demonstrativos contábeis auditados pelo TCE. Não interferindo nessa avaliação o mérito de cumprimento da lei, importando apenas os valores registrados em cada fonte de coleta.
Tendo em vista haver 184 municípios no estado e considerando o intervalo de anos pesquisados, seria possível a obtenção de 1.104 registros de dados municipais no SIOPS e igual quantitativo no TCE, caso não houvesse pendências na alimentação do SIOPS e o processo de auditoria do TCE ocorresse de modo oportuno e sem contingências (eventualidades que podem surgir mediante atrasos na prestação de contas dos municípios, ausência de documentos para comprovação de despesas, solicitação de prazos para justificativas ou retificação de demonstrativos etc.). Obedecendo ao critério estabelecido, pareamento simultâneo de dados nas duas fontes de coleta, 937 registros de cada fonte constituíram a amostra analisada, ou seja, totalizando 1.874 registros, que representaram 84,9% dos dados possíveis de obtenção (Figura 1).
O método de mensuração escolhido foi o coeficiente de correlação intraclasses (CCI). Este método foi utilizado por Lima et al. 6, em estudo sobre o financiamento público em saúde, avaliando a confiabilidade dos bancos de dados nacionais.
O CCI é amplamente empregado como prova estatística na medição da concordância de dados expressos em escala contínua, constituindo-se numa estimativa da fração da variabilidade total de medidas, devido a variações entre as observações. O resultado da estimativa do teste é representado por uma faixa que vai de 0 a 1, com aumento progressivo da concordância à medida que se distancia de 0 e se aproxima de 1. O uso correto do CCI exige a identificação do modelo de cálculo mais adequado à influência dos efeitos dos observadores e das observações 7.
Neste estudo, o efeito dos observadores (bancos de dados) foi caracterizado como fixo, tendo em vista que a forma de registro de dados no SIOPS e no TCE segue padrões estabelecidos, ou seja, as fontes de coleta possuem instrumentos metodológicos bem definidos para obtenção de informações, enquanto que os dados registrados nessas observações variam e, por isso, são caracterizados como efeito aleatório. Portanto, nessa distribuição, as colunas comportam-se como efeito fixo e as linhas, aleatório, sendo apropriada a expressão do CCI a seguir 8:
na qual MSR = quadrado médio referente às observações, MSE = quadrado médio referente ao erro, MSC = quadrado médio referente aos observadores, k = número de observadores e n = número de observações.
Etapa 2: correspondência de informações quanto ao cumprimento da EC29
O objetivo desta etapa foi verificar se as informações sobre o cumprimento da EC29, levadas à publicidade pelos municípios no SIOPS, correspondiam àquelas resultantes da auditoria do TCE, não importando a magnitude dos percentuais aplicados, mas o alcance da meta de cumprimento da Emenda, identificada para cada município, na seqüência de anos investigados, por fonte de coleta. A referida avaliação foi executada calculando-se os percentuais mínimos de recursos vinculados à saúde que garantiriam o atendimento à lei, comparando-os com os percentuais efetivamente aplicados.
Segundo a Resolução nº. 322 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 9, a contrapartida de recursos municipais na saúde deveria corresponder em 2000 a 7%; em 2001, a 8,6%; em 2002, a 10,2%; em 2003, a 11,8% e, a partir de 2004, a 15%. Porém, diante da possibilidade de haver variações na aplicação dos percentuais foi estabelecido que a diferença entre o efetivamente aplicado em 2000 e o percentual final estipulado no texto da EC29 deveria ser abatida na razão mínima de um quinto ao ano, até 2003, sendo que, em 2004, o mínimo deveria ser 15%.
A partir das determinações da Resolução supracitada, considerou-se ainda que, na hipótese de descumprimento da EC29, a definição dos valores do exercício seguinte não seria afetada; ou seja, os valores mínimos seriam definidos tomando-se como referência os valores que teriam assegurado o pleno cumprimento da EC29 no exercício anterior; portanto, os critérios de ressarcimento dos valores não empregados seguem outra lógica e não interferem com a progressão da Emenda. Outro ponto é que, em virtude do caráter progressivo da vinculação de recursos, uma vez superado o valor mínimo de aplicação para determinado ano, não pode haver retrocesso nos anos posteriores, exceto nos casos em que o percentual de 15% já tenha sido contemplado.
Nesse contexto, foram desconsiderados da análise os municípios que apresentaram qualquer pendência de informações para o período investigado. Conforme orienta a referida Resolução, a ausência dessas informações inviabiliza o cálculo da progressão dos percentuais da contrapartida de recursos como preconiza a lei. Assim, 82 municípios foram selecionados, representando 44,6% dos municípios de Pernambuco e 52,5% do total de dados disponíveis coletados.
O teste de qui-quadrado de Pearson foi utilizado como prova estatística para comparação entre as freqüências de cumprimento da EC29 no SIOPS e no TCE.
Resultados
Etapa 1: concordância entre os dados municipais declarados ao SIOPS e auditados pelo TCE
Os dados analisados corresponderam a 937 observações pareadas entre o SIOPS e o TCE, distribuídas conforme ilustra a Tabela 1. O maior volume de dados pareados foi obtido nos anos de 2002 e 2003, sendo coletados, em cada ano, 172 registros do total de 184 possíveis (93,5%); em 2000, esse montante representou 70,1% dos dados, 129 registros pareados, o menor quantitativo dos anos declaratórios avaliados.
No conjunto, as médias observadas se mantiveram acima dos percentuais mínimos exigidos para o cumprimento da Emenda, de acordo com os critérios de evolução progressiva da Resolução nº. 322 do CNS 9. Em todos os anos a média do TCE foi inferior à do SIOPS.
A estimativa da concordância dos dados pelo CCI variou de 0,38 a 0,63 para os anos investigados (Tabela 1). Os anos com maior correlação foram 2001 e 2003, respectivamente 0,60 e 0,63; verificando-se os menores valores em 2000 e 2002, 0,38 e 0,48. Os resultados do CCI sugerem um nível de concordância discreto a moderado entre as distribuições dos percentuais no SIOPS e no TCE. Considerando que o menor valor do CCI foi evidenciado no início do intervalo de referência, ano 2000, o aumento verificado nos anos posteriores não assumiu uma tendência homogênea, ocorrendo inversões entre incremento e declínio.
Etapa 2: correspondência de informações quanto ao cumprimento da EC29
No tocante ao desempenho dos municípios quanto ao cumprimento da EC29 verificou-se que no SIOPS 40 municípios (48,8% da amostra) cumpriram o que determina a lei em todos os anos, no TCE esse quantitativo correspondeu a 29%-35,4% (Figura 2), sendo, portanto, evidenciada uma diferença de 11 municípios no total daqueles que cumpriram a lei entre os dois bancos de dados. Assim, 46 municípios (soma dos dados da Figura 2) cumpriram com a EC29, no período de 2000 a 2005, em pelo menos uma fonte de coleta, os demais municípios, 36 (43,9% da amostra), descumpriram com a Emenda em um ou mais anos do período investigado, não sendo representados na figura.
O cumprimento geral alcançado, a média do período de 2000 a 2005, por fonte investigada, considerando a inclusão dos municípios que descumpriram a EC29, foi de 85,6%, no SIOPS, e de 77,4%, no TCE. Observando a distribuição anual dos percentuais (Figura 3), identificam-se situações distintas entre as séries de dados do SIOPS e do TCE. Na primeira, o patamar de cumprimento obtido no ano 2000 é superado em 2003 e 2005; na segunda, em momento algum se atinge o resultado inicial. Em 2002, evidencia-se a maior aproximação entre as séries, sendo interessante constatar o distanciamento entre os pontos percentuais de ambas em 2001, 2003, 2004 e 2005. O ano de pior desempenho do intervalo foi o de 2001. O teste de qui-quadrado não demonstrou diferença estatística significante entre os anos (p > 0,05).
Dos 492 registros pareados, provenientes dos 82 municípios com dados completos para toda a série de anos analisada, apenas 7 (1,4%) não apresentaram divergências quanto ao valor absoluto, ou seja, possuíam registros idênticos nos dois bancos de dados. Considerando a correspondência de informações quanto à situação de cumprimento da EC29 declarada no SIOPS e as informações de auditoria do TCE (Figura 4), o consenso abrangeu 79,5% dos dados municipais, ou seja, 20,5% dos dados pareados significaram situações de cumprimento opostas, o que representa uma considerável dissonância de informações.
Discussão
Etapa 1: concordância entre os dados municipais declarados ao SIOPS e auditados pelo TCE
A variação do CCI entre 0,38 e 0,63 indica haver diferenças entre os registros das duas fontes de coleta, no entanto, a enumeração de causas que justifiquem essas diferenças requer a verificação minuciosa dos dados de cada município no tocante à composição da receita própria, considerando um determinado exercício financeiro, e o detalhamento da despesa realizada na saúde a partir desses recursos para o respectivo ano orçamentário. Em virtude do presente estudo não ter empregado essa metodologia, sendo utilizados apenas os percentuais de aplicação da EC29, a análise das diferenças encontradas apresenta restrições e baseia-se nos relatórios da equipe técnica do SIOPS acerca dos estados e em hipóteses consubstanciadas na análise dos resultados.
Segundo as Notas Técnicas nº. 49/2006 10, nº. 2/2007 11 e nº. 21/2007 12 do SIOPS, referentes à divulgação dos resultados da análise dos balanços gerais dos estados brasileiros, englobando, respectivamente, os exercícios de 2004, 2005 e 2006: no tocante à aplicação mínima de recursos próprios em gastos com ações e serviços públicos de saúde, de acordo com o estabelecido pela EC29 e diretrizes da Resolução nº. 322 do CNS 9, é consenso que a apresentação dos dados contidos nos balanços gerais não apresenta uniformidade.
Dentre as principais divergências de receitas e despesas avaliadas destaca-se: falta de detalhamento nos balanços gerais de receitas e despesas por sub-elemento; inclusão de despesas em ações e serviços de saúde que estão em dissonância com a Resolução nº. 322 do CNS 9; não consideração de multas, juros e atualizações monetárias de impostos e das dívidas ativas, por Unidade da Federação, nos valores declarados ao SIOPS; valores de despesas empenhadas informados ao sistema superiores aos divulgados nos balanços gerais, inscritos como "restos a pagar", sem disponibilidade financeira, bem como a compensação de "restos a pagar" de anos anteriores e, a adoção de conceitos diferentes na contabilização de receitas vinculadas e no significado de ações e serviços de saúde, em muitos casos amparados pelos respectivos tribunais de contas e legislações estaduais.
A percepção da equipe técnica do SIOPS acerca das divergências supracitadas é conclusiva: os critérios adotados pelo Ministério da Saúde, referentes ao cálculo da EC29 e ao cumprimento das diretrizes da Resolução nº. 322 do CNS 9 não estão sendo seguidos, demonstrando não haver ainda um consenso em relação ao tema. Diante dessa consideração, entende-se que, embora a composição de receitas vinculadas e despesas realizadas em ações e serviços de saúde, com recursos próprios, com vistas a atingir o percentual de aplicação preconizado pela EC29 obedeça a regras particulares e tenha natureza distinta entre estados e municípios, os aspectos contraditórios identificados na análise dos dados estaduais talvez possam esclarecer, em parte, a discreta confiabilidade obtida para os dados municipais. Nesse sentido, um longo caminho precisa ser percorrido para alcançar a consolidação da fidedignidade como parâmetro desejável aos registros declaratórios do SIOPS.
O entendimento de que alguns municípios do estado disponibilizam, em média, percentuais da receita própria superiores ao mínimo exigido pela EC29 indica que a suplementação orçamentária para a saúde deve ter como foco o incremento da participação financeira da União, sobretudo pelo seu poder de aporte fiscal e centralização financeira do Ministério da Saúde, sendo esse o objeto essencial de regulamentação da Emenda.
Etapa 2: correspondência de informações quanto ao cumprimento da EC29
À semelhança dos resultados apreciados nas Notas Técnicas, mencionadas anteriormente, as divergências observadas entre as fontes investigadas revelam que o percentual de cumprimento da EC29 no SIOPS é superior ao evidenciado no TCE. Em 2005, entre os 21 estados que enviaram os dados ao SIOPS, 16 declararam estar aplicando o mínimo de 12% em gastos com ações e serviços públicos de saúde; no entanto, após análise dos balanços estaduais, o total de estados que atingiram o percentual de 12% reduziu-se para 7 11. Em 2006, com maior número de estados informantes, totalizando 26, 20 declararam estar aplicando o mínimo exigido. Posteriormente, detectou-se que apenas 9 de fato cumpriram o que determina a legislação vigente 12.
O aumento das diferenças de cumprimento à lei entre as duas fontes de dados a partir de 2003 pode indicar que mudanças na normatização, como a homologação da Resolução nº. 322 do CNS 9, tenham contribuído para este achado. Outra hipótese é que a exigência da EC29, relativa a percentuais progressivamente maiores, nos últimos anos, e de prévio conhecimento, a partir de 2004 - 15%, incrementou os recursos empregados em despesas não classificadas como gastos em saúde, a partir da ampliação ou diversificação das ações e serviços praticados, gerando, em alguns casos, distorções crescentes na aplicação dessas receitas.
Avaliando-se o patamar de cumprimento da Emenda para o período de referência investigado, no SIOPS os municípios alcançaram 85,6% de êxito, embora, após análise do TCE, esse percentual tenha declinado para 77,4%. Ainda que não tenha havido diferença estatística significante entre as duas fontes de coleta, o descumprimento constatado merece atenção, uma vez que, frente à atual magnitude da escassez de recursos, a soma de valores que deixaram de ser aplicados certamente implicam a restrição do direito à saúde.
Para Campelli & Calvo 13, uma medida imprescindível ao efetivo cumprimento da EC29 é a aprovação de mecanismo legal que imponha sanções pelo não atendimento à lei. Cita-se: intervenção federal; impedimentos para receber transferências voluntárias, para contratação de operações de crédito, além da cassação de mandatos.
Entende-se que a falta de punição é um fator contributivo na geração de precedentes para o descomprometimento das gestões com as prestações de contas da saúde. Por outro lado, o acompanhamento da aplicação dos recursos vinculados em ações e serviços públicos de saúde, função precípua do SIOPS, não deve se limitar às ações das equipes do próprio SIOPS e dos TCEs, sendo necessária a participação da sociedade neste controle.
Colaboradores
R. F. Gonçalves e A. F. B. Bezerra participaram da concepção do projeto; análise e interpretação dos dados; redação do artigo; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada. A. C. G. Espírito Santo colaborou na redação do artigo; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada. I. M. C. Sousa contribuiu na concepção do projeto; redação do artigo; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; Aprovação final da versão a ser publicada. P. J. Duarte-Neto participou da análise e interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada. K. S. B. Silva contribuiu na redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada.
Agradecimentos
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro.
Referências
1. Brasil. Emenda Constitucional nº. 29, de 13 de setembro de 2000. Altera os artigos 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. Diário Oficial da União 2000; 14 set.
2. Carvalho GCM. Financiamento público federal do sistema de saúde, 1988-2001 [Tese de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2002.
3. Porto SM. Comentário: avanços e problemas no financiamento da saúde pública no Brasil (1967-2006). Rev Saúde Pública 2006; 40:576-8.
4. Brasil. Portaria nº. 91/GM, de 10 de janeiro de 2007. Regulamenta a unificação do processo de pactuação de indicadores e estabelece os indicadores do Pacto pela Saúde, a serem pactuados por municípios, estados e Distrito Federal. Diário Oficial da União 2007; 16 jan.
5. Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde. A implantação da EC 29: apresentação dos dados do SIOPS, 2000 a 2003. http://siops.datasus.gov.br/Documentacao/Implanta%C3%A7%C3%A3o_EC_29_dados_SIOPS.pdf (acessado em 02/Dez/2006).
6. Lima CRA, Carvalho MS, Schramm JMA. Financiamento público em saúde e confiabilidade dos bancos de dados nacionais. Um estudo dos anos de 2001 e 2002. Cad Saúde Pública 2006; 22:1855-64.
7. Carrasco JL, Jover L. Estimating the generalized concordance correlation coefficient through variance components. Biometrics 2003; 59:849-58.
8. McGraw KO, Wong SP. Forming inferences about some intraclass correlation coefficients. Psychol Methods 1996; 1:30-46.
9. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº. 322, de 8 de maio de 2003. http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2003/Reso322.doc (acessado em 10/Dez/2006).
10. Departamento de Economia da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Nota técnica nº. 49/2006 - SIOPS/DES/SCTIE/MS. http://siops.datasus.gov.br/Documentacao/NT_49_2006.pdf (acessado em 20/Jan/2008).
11. Departamento de Economia da Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde. Nota técnica nº. 02-A/2007 - SIOPS/DES/SCTIE/MS. http://www.conass.org.br/admin/arquivos/NT_2A_2007.pdf (acessado em 12/Fev/2007).
12. Secretaria Executiva, Ministério da Saúde. Nota técnica nº. 21/2007 - SIOPS/AESD/SE/MS. http://siops.datasus.gov.br/Documentacao%5CNT_21-2007-Analise_BGE_2006.pdf (acessado em 20/Jan/2008).
13. Campelli MGR, Calvo MCM. O cumprimento da Emenda Constitucional nº. 29 no Brasil. Cad Saúde Pública 2007; 23:1613-23.
Correspondência:
R. F. Gonçalves
Universidade de Pernambuco
Rua Rodrigues Leite 64
Petrolina, PE
56306470, Brasil
rogeriofabiano@gmail.com
Recebido em 15/Jan/2009
Versão final reapresentada em 16/Jun/2009
Aprovado em 09/Set/2009