RESENHAS BOOK REVIEWS
Anny Jackeline Torres Silveira
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
ENFERMIDADES ENDÊMICAS DA CAPITANIA DE MATO GROSSO: A MEMÓRIA DE ALEXANDRE RODRIGUES PEREIRA. Pôrto A, organizadora. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. 175 p. (Coleção História & Saúde: Clássicos e Fontes).
ISBN: 978-85-7541-152-0
A segunda metade do século XVIII marcou um período de renovação cultural e científica do Império Português, envolvendo homens letrados e altos funcionários da administração que, munidos de novos conhecimentos e métodos, contribuíram para lançar luzes sobre diversos domínios do saber e do império. Impulsionado pela ilustração européia, o governo português exerceu papel fundamental naquela renovação por meio da formação de uma elite intelectual, da criação e reforma de instituições, assim como da definição de um conjunto de diretrizes visando à produção e gestão de informações das mais variadas partes do império.
Aspecto destacado para o desenvolvimento e aperfeiçoamento dos conhecimentos então existentes foram as chamadas viagens filosóficas - verdadeiras expedições financiadas pelo estado com o objetivo de conhecer, demarcar, inventariar e descrever terras, culturas e a natureza que compunham o território do vasto império português. Foram três as viagens filosóficas organizadas pelo governo metropolitano no século XVIII: a Angola, Moçambique e Brasil. A expedição brasileira, chefiada pelo naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, percorreu a bacia amazônica e o planalto mato-grossense entre os anos de 1783 e 1792. Tinha como principal objetivo o reconhecimento e a descrição circunstanciada da natureza de territórios quase desconhecidos da colônia brasileira, resultando em uma infinidade de amostras e coleções enviadas ao reino, desenhos, aquarelas, além de relatos e memórias descrevendo os reinos animal, vegetal e mineral e as populações.
Ao mesmo tempo em que a viagem se guiou no interesse pelo conhecimento, também serviu aos interesses de poder. Por um lado, a expedição levantou potenciais riquezas da região e estabeleceu as condições para sua exploração em um momento de declínio da produção mineradora. Por outro, descortinou ao olhar metropolitano uma vasta região de fronteira, fragilmente incorporada ao império luso na América pelos tratados de Madrid e Santo Idelfonso, da qual era necessário tomar posse e preservar sob o domínio português.
É nesse contexto que se produziu a memória, agora publicada pela Editora Fiocruz, sobre as doenças endêmicas da capitania do Mato Grosso. Como informa Ângela Pôrto, a memória não é inédita, tendo sido publicada no início da década de 1960 por Glória Marly Fontes, que se limitou à transcrição do manuscrito. A edição organizada por Ângela Pôrto, ao contrário, apresenta, além de um estudo introdutório, outros textos que contextualizam a obra, e um glossário, elaborado por Edméa Souto de Lima, que facilita a compreensão de termos e expressões empregados no original. À transcrição foram acrescidas notas filológicas e históricas, organizadas por José Pereira da Silva e Leny Caselli Anzay (autora de uma breve apresentação comentada da leitura paleográfica) e que, apoiadas em autores e manuais contemporâneos à obra, explicam o modo como as enfermidades descritas eram compreendidas à época de Alexandre Ferreira.
Na introdução, Ângela Pôrto e Kaori Kodama justificam a publicação do texto em função do enfoque dado à coletânea: "iluminar as perspectivas médicas do naturalista e do viajante-filósofo empenhado em conhecer, pelos mais variados domínios das ciências de seu tempo, a realidade colonial portuguesa na América" (p.14). Apesar de não ser físico ou cirurgião, Alexandre Rodrigues Ferreira produziu um rico inventário sobre as condições de saúde prevalentes nas localidades visitadas e, fiel ao caráter utilitário da ciência ilustrada, pretendeu com seu texto vulgarizar conhecimentos médicos considerados indispensáveis em lugar onde faltavam livros e professores. Encravada nos confins de terras até então pouco exploradas, a cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, sede do governo da capitania de Mato Grosso e Cuiabá, era considerada insalubre, porém estratégica. Discorrer sobre as doenças e suas curas significava, a um só tempo, inventariar seus recursos e contribuir para sua manutenção sob o poder de Portugal.
Como apontam as autoras, a influência da medicina iluminista é perceptível no pensamento médico do naturalista por meio do papel por ele atribuído aos fenômenos atmosféricos, à articulação entre geografia e enfermidades, determinando constituições nosológicas particulares. "Apliquem-se a capitania do Mato Grosso as observações que acima descrevi [os ardores do sol, as inundações, os depósitos de matérias orgânicas, as imundícies, o ar quente] e ver-se-á como de sua constituição física, naturalmente procedem as enfermidades de seus habitantes" (p.31). Uma vez que as enfermidades tomavam características particulares segundo lugares particulares, a terapêutica também era variável. Assim, ao descrever as febres e outras enfermidades em sua memória, Alexandre Rodrigues Ferreira distingue os métodos curativos europeu e americano. Nesse aspecto, é interessante perceber como o autor funde e difunde as teorias médicas produzidas no mundo ilustrado e os ensinamentos apreendidos com base na experiência colonial. O conhecimento que (re)produz e amalgama as noções e saberes sobre a doença e a cura do velho e do novo mundo.
Após a transcrição do original, há um breve comentário de Clarete Paranhos da Silva sobre o salitre, muito usado nos preparados terapêuticos, ao qual Alexandre Rodrigues Ferreira dedica amplo espaço em sua memória. Além de estabelecer a localização das terras salitrosas, Alexandre também apresenta uma descrição do processo de purificação desse mineral, compilada das "Memórias da Câmara da Vila do Cuiabá". Como afirma a autora, o destaque dado ao salitre se justifica não apenas pelo seu emprego como curativo, mas especialmente por sua aplicação na produção de explosivos, essenciais no contexto de crise do antigo sistema colonial.
Completando o volume, Kaori Kodama apresenta um estudo no qual revela como é possível acercar-se das concepções médicas sobre as enfermidades, assim como das práticas e das artes da cura por meio do exame dos itens requisitados por Alexandre para compor a botica que levava em sua viagem. Inserem-se nesse aspecto: o recurso freqüente a componentes químicos, hoje banidos da farmacopéia pela sua toxidade; o emprego de modelos classificatórios da história natural na identificação e distinção de "moléstias" como as febres; a percepção de uma nova sensibilidade diante da doença e da vida, amparada cada vez mais pela natureza e a racionalidade e menos pela religião; a crescente importância das ciências ambientais na avaliação e na promoção da higiene das localidades; além da assimilação e conseqüente fusão dos tratamentos e produtos medicinais da colônia ao universo de práticas curativas do velho mundo.
Como apêndices encontram-se três pequenos textos dedicados às doenças dos índios, ao Mal de Luanda, e um pequeno extrato de uma lista de remédios caseiros do Dr. Alexandre Rodrigues. Encerram o volume imagens produzidas pela expedição pertencentes aos acervos da Biblioteca Nacional e do Museu Bocage.
O trabalho em exame é uma rica contribuição aos estudiosos dedicados à história da saúde, cumprindo o importante papel de divulgação e publicação de fontes. Porém, vai além desse propósito, ao apresentar criteriosa atenção no estabelecimento do texto e análises refinadas que sinalizam ao leitor caminhos seguros para navegar nas águas passadas da medicina, da ciência e da vida cotidiana da colônia e do império português.