NOTA RESEARCH NOTE
Ocorrência da Mansonella ozzardi (Nematoda, Onchocercidae) em comunidades ribeirinhas do rio Purus, Município de Boca do Acre, Amazonas, Brasil
Occurrence of Mansonella ozzardi (Nematoda, Onchocercidae) in riverine communities of the Purus river, Boca do Acre municipality, Amazonas State, Brazil
Jansen Fernandes MedeirosI; Victor Py-DanielII; Ulysses Carvalho BarbosaII; Guilherme Maerschner OgawaII
ICoordenação de Pesquisas em Ciências da Saúde, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus, Brasil
IINúcleo de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus, Brasil
RESUMO
Este estudo teve o objetivo de estimar as prevalências de Mansonella ozzardi e calcular taxa de infecção parasitária nos simulídeos. O trabalho foi realizado em comunidades ribeirinhas do rio Purus, Boca do Acre, Amazonas, Brasil. As prevalências foram obtidas por meio do método de gota espessa de sangue obtido por porção digital. Os simulídeos coletados foram dissecados para estimar a taxa de infecção parasitária. A prevalência de M. ozzardi foi de 27,3% (282/77). Foram observadas maiores prevalências nos homens (31,97%) que nas mulheres (22,22%), nos agricultores (48%) e nos indivíduos entre: 38-47 (60%), 48-57 (66,66%) e 58-67 (75%). A microfilaremia foi maior nos indivíduos entre 58-67 anos (média = 58,41mf/40µL), sexo masculino (41,44mf/40µL) e nos agricultores (49,94mf/40µL). Somente o simulídeo Cerqueirellum amazonicum foi encontrado infectado com taxa de infecção parasitária de 0,98%.
Mansonella; Simuliidae; Doenças Parasitárias
ABSTRACT
The study aimed to estimate the prevalence of Mansonella ozzardi and calculate the parasitic infection rate in simuliid blackflies. The research was conducted in communities on the Purus River, Boca do Acre municipality, Amazonas State, Brazil. Prevalence was measured using the thick smear method. Captured blackflies were dissected to verify the parasitic infection rate. M. ozzardi prevalence was 27.30% (77/282). The study showed higher prevalence in men (31.97%) than women (22.22%), farmers (48.99%), and individuals in the 38-47 (60.00%), 48-57 (66.66%), and 58-67-year age brackets (75.00%). Microfilaremia was higher in individuals 58 to 67 years of age (average= 58.41mf/40µl), men (41.44mf/40µl), and farmers (49.94mf/40µl). Only the simuliid Cerqueirellum amazonicum was found infected with a parasitic infection rate of 0.98%.
Mansonella; Simuliidae; Parasitic Diseases
Introdução
A Mansonella ozzardi é um dos agentes etiológicos da mansonelose. Sua distribuição está limitada à América do Sul, Central e algumas ilhas do Caribe. No Brasil, foi encontrada nos estados do Amazonas, Roraima e Mato Grosso. Os vetores são os Ceratopogonidae e Simuliidae (Diptera) 1. A mansonelose apresenta sintomatologia clássica de outras doenças infecciosas, como febre, frieza nas pernas, dores nas articulações, dor de cabeça e adenite inguinocrural 2.
São mais de 50 anos desde os primeiros relatos de M. ozzardi no Brasil 3, sendo já apresentada como um amplo problema no Amazonas 4. Recentemente foi demonstrada que ainda é encontrada em elevadas prevalências 5,6.
No Brasil, somente os simulídeos são assinalados como transmissores, no Amazonas as espécies Cerqueirellum amazonicum e C. argentiscutum 7,8.
O primeiro relato de M. ozzardi no Município de Boca do Acre foi feito por Rachou 9, que encontrou prevalência de 0,3%. Portanto, o objetivo desse trabalho foi estimar as prevalências de M. ozzardi e os vetores envolvidos na sua transmissão em comunidades ribeirinhas do rio Purus, Boca do Acre, Amazonas.
Metodologia
O estudo foi desenvolvido em comunidades ribeirinhas do longo do rio Purus, no Município Boca do Acre (8º45'19"N e 67º23'50"W), Estado do Amazonas, Brasil, em abril de 2006. Boca do Acre está localizada no sudoeste do Amazonas, distante 950km de Manaus em linha reta. O trabalho foi realizado em comunidades localizadas entre a cidade de Boca do Acre e o Município de Pauini.
O número de habitantes no trecho estudado é de aproximadamente 1.300 indivíduos segundo os dados da Secretaria de Vigilância em Saúde do Amazonas. Para o cálculo do tamanho da amostra utilizou como estimativa a prevalência de 24,6% 10, com erro máximo tolerável de 20% e intervalo de 95% de confiança.
As prevalências foram medidas pelo método de gota espessa. Duas gotas de sangue (40µL) foram obtidas por punção digital, que posteriormente foram desemoglobinizadas, coradas Giemsa e examinadas no microscópio. Quando positivas, as microfilárias (mf) foram quantificadas. Os dados foram analisados considerando sexo, faixa etária (2-9, 10-18, 19-27, 28-37, 38-47, 48-57, 58-67 e > 68 anos) e ocupação (agricultor, dona de casa, estudante, professor e aposentado) 10,11. Para determinarmos se existiu diferença entre homens e mulheres bem como por faixa etária foi utilizado o Maximum likelihood chi-squareG-test. Foi realizada uma análise de correlação de Spearman entre a microfilaremia e a idade.
Os simulídeos foram coletados com capturadores de sucção, fixados em álcool 70%, identificados, corados com hematoxilina e dissecados 5. Posteriormente foram examinados em microscópio óptico para identificação dos estágios larvais (L1, L2 e/ou L3) 12 de M. ozzardi e estimativa da taxa de infecção parasitária (TIP) 10.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
Resultados
Foram examinados 282 indivíduos, destes 77 (27,3%) apresentaram microfilária de M. ozzardi. A ocorrência de M. ozzardi nas comunidades variou de 11,42% a 37,5% (Tabela 1). Os homens apresentaram prevalências marginalmente maiores (145 examinados/45 parasitados; 31,03%) do que as mulheres (137 examinadas/32 parasitadas; 23,36%) (G = 3,39, g.l. = 1, p = 0,065).
As prevalências foram menores nos indivíduos entre 2-9 (15%) e 10-18 anos (9,21%), e maiores entre: 38-47 (60%), 48-57 (66,66%) e 58-67 (75%). Nas faixas etárias 38-47 e 48-57, as prevalências para os homens foram significativamente maiores que para as mulheres (G = 6,99, g.l. = 1, p = 0,008 e G = 4,23, g.l. = 1, p = 0,04) (Figura 1). Quanto à ocupação, as maiores percentagens de microfilarêmicos foram encontrados nos agricultores (48%) e aposentados (40%) (Tabela 2).
A microfilaremia foi maior nos homens (41,44 ± 66,93mf/40µL de sangue) do que nas mulheres (25,72 ± 46,51mf/40µL), com variação de 1 a 384mf/40µL de sangue. Os agricultores apresentaram maior microfilaremia (23,97 ± 55,79mf/40µL), seguidos pelos aposentados (17,62 ± 38,08mf/40µL) (Tabela 2). O número de microfilária foi positivamente associada à idade (r = 0,50, p < 0,001), sendo menor nos indivíduos entre 2-9 e maior entre 58-67 anos, apresentando a maioria entre 1 e 9mf/40µL de sangue (Tabela 3).
Foram coletados 1.932 simulídeos da espécie C. amazonicum, dentre eles, 19 estavam infectados com M. ozzardi, com uma TIP de 0,98%; sendo nove (0,46%) com L1, seis (0,31%) com L2 e quatro (0,21%) com L3. Foram coletados simulídeos infectados nas comunidades: Monte Verde (simulídeos coletados 484, infectados 4 e TIP de 0,83%); Disterro I (simulídeos coletados 73, infectados 2 e TIP de 2,78%); Seringal Disterro (simulídeos coletados 220, infectados 5 e TIP de 2,27%); Retiro (simulídeos coletados 327, infectados 1 e TIP de 0,31%); Nova Vida (simulídeos coletados 327, infectados 4 e TIP de 1,22%); Val Paraíso (simulídeos coletados 290, infectados 3 e TIP de 1,03%).
Discussão
A infecção por M. ozzardi é endêmica no Amazonas, porém ainda não se conhece a sua real distribuição nem tampouco as prevalências em algumas regiões. Na região do rio Purus, recentemente, foram encontradas elevadas prevalências nos municípios de Pauini (28,4% e 24,6%) 5,10 e Lábrea, no rio Ituxi (30,3%) 6. E, este trabalho mostra elevada prevalência em Boca do Acre (27,3%), confirmando a alta endemicidade de M. ozzardi no Alto Purus.
Os homens apresentaram maiores prevalências do que as mulheres. Tal padrão confirma as observações encontradas em outros trabalhos 5,10,11. A maior prevalência para os homens está relacionada às suas atividades na roça, no rio Purus e afluentes, estando mais expostos às picadas dos simulídeos, adquirindo a infecção mais facilmente, podendo ao longo dos anos contraírem a infecção várias vezes e, assim, apresentar uma maior densidade de microfilárias. As mulheres ficam a maior parte do tempo envolvidas nas atividades do lar, e, portanto, são menos expostas às picadas dos vetores.
As prevalências aumentaram com a idade, sendo maior a partir dos 28 anos até os 67. Outros estudos também têm demonstrado uma relação direta do aumento das prevalências com idade 5,10,11. A elevada percentagem de microfilarêmicos nas faixas etárias de 28-37, 38-47, 48-57, especialmente do sexo masculino, indicam que esses indivíduos adquirem a infecção quando desenvolvem ocupações no campo devido à maior exposição aos vetores. Os indivíduos acima de 58 anos, mesmo com uma diminuição de suas atividades no campo e conseqüentemente menor exposição aos vetores, também apresentaram altas prevalências, possivelmente por conta do acúmulo da infecção ao longo dos anos. Estas observações são fortalecidas quando verificamos maior microfilaremia nos indivíduos mais idosos, sobretudo nas faixas etárias 48-57 e 58-67. Os indivíduos entre 2-9 anos que normalmente apresentam baixas prevalências por ficarem parte do dia na escola, com menor exposição aos vetores, surpreendeu neste trabalho, quando foi encontrado um índice de 15%, considerado alto, bem maior que as prevalências assinaladas no rio Ituxi (0,28%) 8 e Pauini (8,3%) 5.
Os agricultores e os aposentados apresentaram as maiores prevalências, confirmando o que já foi mencionado anteriormente para outros perfis (sexo e faixa etária), que as elevadas prevalências estão relacionadas com as atividades diárias 10,11. A maior microfilaremia entre os agricultores e aposentados pode estar ligada a uma sobreposição da infecção, por causa da exposição aos vetores, em que o indivíduo pode adquirir a filária mais de uma vez, e desenvolve vermes adultos de diferentes idades produzindo microfilárias.
Este trabalho confirma que C. amazonicum é o vetor de M. ozzardi no rio Purus 5,8,10 confirmada a sua identificação pela coleta de imaturos (larvas e pupas). A TIP (0,98%) e o número de exemplares com larvas infectantes (L3) são baixos, entretanto, é preciso desenvolver coletas em longo prazo para se conhecer o padrão de sazonalidade e os períodos de maior e menor transmissão de M. ozzardi.
As elevadas prevalências de M. ozzardiem Boca do Acre, assim como em Lábrea 6 e Pauini 5,10, configuram-se pela falta de políticas de tratamento para essa filária, que é a maneira viável para a sua eliminação.
Colaboradores
J. F. Medeiros participou das atividades de campo e elaboração do manuscrito. V. Py-Daniel identificou os simulídeos e participou da elaboração do manuscrito. G. M. Ogawa e U. C. Barbosa participaram das atividades de laboratório e de elaboração do manuscrito.
Agradecimentos
À Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) pelo suporte financeiro.
Referências
1. Shelley AJ, Coscarón S. Simuliid blackflies and Ceratpogonid midges as vectors of Mansonella ozzardi in northern Argentina. Mem Inst Oswaldo Cruz 2001; 96:451-8.
2. Batista D, Oliveira WR, Rabello VD. Estudo da patogenicidade da Mansonella ozzardi e da sintomatologia da mansonelose. Rev Inst Med Trop São Paulo 1960; 2:281-9.
3. Deane MP. Sobre a incidência de filárias humanas em Manaus, Estado do Amazonas. Rev Fund SESP 1949; 2:849-58.
4. Moraes MAP. Contribuição ao estudo da mansonelose do Amazonas. O Hospital 1958; 54:887-92.
5. Medeiros JF, Py-Daniel V, Barbosa UC, Farias ES. Epidemiological studies of Mansonella ozzardi in indigenous communities of Pauini municipality, Amazonas, Brazil. Acta Amaz 2007; 37:241-6.
6. Medeiros JF, Py-Daniel V, Barbosa UC, Ogawa GM. Current profile of Mansonella ozzardi in communities along the Ituxi river, Lábrea municipality, Amazonas, Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 2008; 103:409-11.
7. Cerqueira NL. Sobre a transmissão da Mansonella ozzardi. J Bras Med 1959; 1:885-914.
8. Shelley AJ, Luna-Dias APA, Moraes MAP. Simulium species of amazonicum group as vectors of Mansonella ozzardi in the Brazilian Amazon. Trans R Soc Trop Med Hyg 1980; 74:784-8.
9. Rachou RG. Distribuição geográfica das filarioses humanas no Brasil. Rev Bras Malariol Doenças Trop 1957; 9:79-100.
10. Medeiros JF, Py-Daniel V, Barbosa UC, Izzo, TJ. Mansonella ozzardi in Brazil: prevalence of infection in riverine communities in the Purus region, in the state of Amazonas. Mem Inst Oswaldo Cruz 2009; 104:74-80.
11. Tavares AM. Estudo da infecção por Mansonella ozzardi [Dissertação de Mestrado]. Brasília: Universidade de Brasília; 1981.
12. Yazarbal L, Basáñez MG, Ramírez-Pérez J, Ramírez A, Botto C, Yazarbal A. Experimental and natural infection of Simulium sanchezi by Mansonella ozzardi in the middle Orinoco region of Venezuela. Trans R Soc Trop Med Hyg 1985; 79:29-33.
Correspondência:
J. F. Medeiros
Coordenação de Pesquisas em Ciências da Saúde
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
C. P. 478, Manaus, AM 69011-970, Brasil
jmedeiro@inpa.gov.br
Recebido em 08/Out/2008
Versão final reapresentada em 11/Mar/2009
Aprovado em 08/Abr/2009