EDITORIAL

 

Transição alimentar e diversidade cultural: desafios à política de saúde indígena no Brasil

 

 

A segurança alimentar é um importante tema da vida contemporânea, ganhando contornos ainda mais relevantes no cenário atual da globalização em economias emergentes. No Brasil, a política oficial de segurança alimentar se anuncia como iniciativa intersetorial que busca garantir o acesso sustentável a uma alimentação saudável, pautada pelo respeito às diversidades culturais. Apesar dessa recomendação, a implementação das atividades neste campo é aqui - como em outras realidades - marcada pela padronização na oferta de alimentos, com implicações negativas na variabilidade cultural das práticas alimentares humanas.

A transição alimentar é inerente aos processos de industrialização e de urbanização que hoje regulam o acesso aos alimentos. Tais eventos assumiram escala planetária, alcançando aqueles cujas vidas situam-se em pólos mais distantes da linha principal da globalização, como os povos indígenas.

No Brasil, os discursos científicos e institucionais sobre a saúde indígena têm alertado sobre o rápido incremento de doenças crônicas associadas ao crescente consumo de alimentos industrializados e às mudanças nos padrões de atividade física. Como ocorre em outros grupos populacionais, essa transição alimentar redunda em sobrepeso e obesidade em adolescentes e adultos, associando-se a doenças cardiocirculatórias, hipertensão e diabetes e coexistindo, não raro, com desnutrição infantil. Soluções para o problema demandariam transformações individuais e coletivas de comportamentos, de extrema complexidade, que transcendem os atuais modos de indígenas de vida. Nessa ótica, a mudança da alimentação deve ser entendida como um fenômeno simultaneamente local e global.

Numa perspectiva antropológica, a alimentação deve ser vista como uma dimensão da cultura em interação dinâmica com o meio ambiente, a economia e os valores e crenças de cada grupo social. Assim, o empobrecimento das dietas indígenas conseqüente a afluência de um grupo restrito de alimentos industrializados adquiridos de moto próprio ou priorizados nas ações de segurança alimentar, implica risco à diversidade sociocultural do Brasil indígena. A perspectiva mais estreitamente biológica na área de nutrição não leva em consideração as dimensões simbólicas e afetivas intrínsecas ao consumo alimentar das etnias atendidas. Parte do problema está ligada ao desconhecimento das ricas e variadas culturas alimentares indígenas e de suas implicações na manutenção de níveis nutricionais adequados.

Os comportamentos alimentares de indígenas, como os de quaisquer outras pessoas, são determinados por suas visões de mundo. Visões de mundo diversas implicam multiplicidade de tradições alimentares, que deveriam ser conhecidas para subsidiar a proposição de estratégias de saúde participativas, com vistas à integralidade e humanização da política de segurança alimentar.

Abordar a transição alimentar ora em curso entre os povos indígenas requer o reconhecimento da diversidade cultural dos grupos envolvidos. Trata-se de importante desafio para a ampliação da reflexão da academia e dos serviços de saúde com vistas a prover ferramentas de apoio à geração de políticas públicas culturalmente sensíveis. Nesse labor, o conhecimento antropológico representa uma via privilegiada para estimular a colaboração interdisciplinar e intercultural necessária à efetiva promoção à saúde que o tema requer.

 

Luiza Garnelo
Instituto de Pesquisas Leônidas & Maria Deane, Fundação Oswaldo Cruz, Manaus, Brasil.
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Brasil.
luiza.garnelo@amazonia.fiocruz.br

James R. Welch
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
welch@ensp.fiocruz.br

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br