REVISÃO REVIEW
Reconhecer Flexner: inquérito sobre produção de mitos na educação médica no Brasil contemporâneo
Recognizing Flexner: an inquiry into the production of myths in medical education in contemporary Brazil
Naomar de Almeida Filho
Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil
ABSTRACT
In Brazil, there appears to be no doubt concerning the evils caused by Abraham Flexner, his Report, and the Flexnerian Biomedical Model (FBM), conceived and promoted by private foundations and linked to the U.S. health-industrial complex. In this article, I submit the above proposition to a rigorous critical inquiry. I begin with an overview of Flexner's life and work. I then review various representations of the Flexnerian model in the Brazilian literature on health education, after which I identify inconsistencies, contradictions, and omissions by comparing the original Report to elements referring to the FBM. Finally, contrasting historical sources and imaginary representations, I analyze possibilities for interpreting the FBM as an intriguing and peculiar political mythology.
Medical Education; Educational Models; Biography
RESUMO
No Brasil, não parece haver dúvidas sobre os males causados por Abraham Flexner, seu Relatório e o Modelo Biomédico Flexneriano (MBF), concebido e promovido por fundações privadas, vinculadas ao complexo médico-industrial norte-americano. Neste artigo, proponho submeter essa formulação a um rigoroso inquérito crítico. Primeiro, apresento uma súmula de vida e obra de Flexner. Segundo, reviso as formas de representação de seu pensamento na literatura brasileira sobre educação em saúde. Com base no próprio Relatório, verifico inconsistências, contradições e omissões nos fragmentos referenciadores do MBF. Finalmente, contrastando fonte historiográfica e representação imaginária, analiso possibilidades de interpretação do MBF como intrigante e peculiar mitologia política.
Educação Médica; Modelos Educacionais; Biografia
"Yet for nearly a century, Flexner has been misunderstood. Regularly, he is both credited and blamed for things he did not do, and some of his greatest contributions remain unappreciated" 1 (p. 195).
Introdução
Neste ano de 2010, em muitos países do mundo ocidental, comemora-se um século de publicação do livro Medical Education in the United States and Canada 2. Tal documento é mais conhecido como Flexner Report, ou Relatório Flexner, por ter sido elaborado por Abraham Flexner, pesquisador social e educador norte-americano de origem judia, comissionado pela Carnegie Foundation. No contexto anglo-saxão, iniciativas de celebração desse evento justificam-se como reconhecimento de que, adotado pelo General Education Board da Rockefeller Foundation, o relatório em questão desencadeou profunda reforma no ensino médico na América do Norte que, estendendo-se a outros campos de conhecimento, consolidou a arquitetura curricular que hoje predomina na rede universitária dos países industrializados. Comemora-se igualmente o fato de que o Relatório Flexner, na prática, introduziu critérios de cientificidade e institucionalidade para regulação da formação acadêmica e profissional no campo da saúde 1.
No Brasil, nem de longe se constata entusiasmo ou mesmo respeito perante esse marco histórico centenário. Há, entre nós, quase consenso de que, por meio do celebrado Relatório, mas também em outras obras, Flexner teria produzido uma matriz disciplinar e pedagógica que veio a se chamar de Modelo Flexneriano (alguns autores chegam a falar de um paradigma biomédico flexneriano). Do ponto de vista conceitual, reiteradamente identificam-se, no modelo flexneriano, diversos elementos (ou defeitos): perspectiva exclusivamente biologicista de doença, com negação da determinação social da saúde; formação laboratorial no Ciclo Básico; formação clínica em hospitais; estímulo à disciplinaridade, numa abordagem reducionista do conhecimento. Do ponto de vista pedagógico, o modelo de ensino preconizado por Flexner é considerado massificador, passivo, hospitalocêntrico, individualista e tendente à superespecialização, com efeitos nocivos (e até perversos) sobre a formação profissional em saúde. Do ponto de vista da prática de saúde, dele resultam os seguintes efeitos: educação superior elitizada, subordinação do Ensino à Pesquisa, fomento à mercantilização da medicina, privatização da atenção em saúde, controle social da prática pelas corporações profissionais. Do ponto de vista da organização dos serviços de saúde, o Modelo Flexneriano tem sido responsabilizado pela crise de recursos humanos que, em parte, produz crônicos problemas de cobertura, qualidade e gestão do modelo assistencial, inviabilizando a vigência plena de um sistema nacional de saúde integrado, eficiente, justo e equânime em nosso país. Do ponto de vista político, por ter sido implantado no Brasil a partir da Reforma Universitária de 1968, promovida pelo regime militar, tal modelo de ensino e de prática mostra-se incompatível com o contexto democrático brasileiro e com as necessidades de atenção à saúde de nossa população, e dele resultam sérias falhas estruturais do sistema de formação em saúde. Em suma, ao contrário da aura de herói intelectual da medicina contemporânea, como querem alguns autores, Abraham Flexner deve ser denunciado como intelectual orgânico da dominação econômica, política e ideológica do capitalismo imperialista, sobretudo nos campos da educação e da saúde.
Quem discordaria de análise tão clara e eloqüente, precisa e articulada? A síntese apresentada no parágrafo anterior a credencia como posição quase pacífica de importante segmento da inteligência crítica brasileira sobre educação em saúde e, por conseqüência, deve representar a opinião predominante no campo da saúde coletiva, no momento atual. Efetivamente, a estrutura argumentativa dessa formulação demonstra excepcional consistência interna. Não parece, portanto, haver dúvidas sobre os males causados por Abraham Flexner e seu Modelo Biomédico, concebido e promovido a mando de fundações privadas, estreitamente vinculadas ao complexo médico-industrial norte-americano. Não obstante sua aparência convincente, legitimada por consenso aparentemente óbvio, politicamente correto, proponho submeter essa formulação a um rigoroso inquérito crítico.
Neste artigo, destoando do coro dos contentes, pretendo explorar a seguinte hipótese: o que se apresenta como Modelo Biomédico Flexneriano e que, no Brasil, provoca tão intensas reações, não corresponde, e até contradiz, o que Abraham Flexner pensa e escreve, no próprio Relatório Flexner e em outras obras.
Em primeiro lugar, apresentarei uma súmula biográfica de Abraham Flexner, compreendendo vida, obra, pensamento e impacto no cenário intelectual de início e meados do século XX. Em segundo, revisarei as formas de representação de Flexner e seu pensamento na literatura brasileira contemporânea sobre educação em saúde, a fim de identificar, em detalhe e com maior consistência, pontos axiais que definiriam o suposto Modelo Biomédico Flexneriano. Terceiro, pretendo testar a hipótese proposta, verificando, no próprio Relatório Flexner, fragmentos de textos referenciadores de cada um dos elementos de identificação do modelo de ensino dito flexneriano, indicando inconsistências, contradições e omissões no contraste entre fonte historiográfica e representação imaginária.
Quem é Flexner?
Esta seção se baseia na biografia de Flexner escrita por Thomas Bonner, em 2002, baseada em fontes documentais primárias, incluindo um rico epistolário com familiares, colaboradores e personalidades da época 3.
Abraham Flexner (Figura 1) nasce em 1866, em Louisville, Kentucky, logo após a Guerra da Secessão. Quarto de uma prole de nove irmãos numa família de imigrantes judeus alemães, tem infância muito pobre e difícil mas, desde cedo, destaca-se nos estudos secundários por sua inteligência e talento. Em 1886, conclui em dois anos um Bacharelado em Artes na Johns Hopkins University, com major em humanidades e estudos clássicos. Durante o curso, recebe grande influência de Daniel Gilman, Reitor daquela que se tornou a primeira universidade de pesquisa nos Estados Unidos, atualizando-a com base no modelo humboldtiano.
Em 1887, Flexner retorna à sua cidade natal para trabalhar como professor primário, inicialmente na Louisville High School, onde havia feito seus estudos secundários. Depois funda uma escola particular de cunho experimental, organizada como uma empresa familiar. Durante 15 anos como mestre-escola, desenvolve métodos pedagógicos que hoje são considerados vanguarda em termos de modelo educacional. A Flexner School é uma instituição inovadora, centrada na motivação e no cultivo das vocações, sem provas, sem verificação de presença, sem normas punitivas. O sucesso de Flexner é tão extraordinário que vários de seus alunos conseguem aprovação nas universidades mais prestigiosas e concorridas dos Estados Unidos.
Em 1905, Flexner vende sua escola que, depois dele, não alcança qualquer registro na história da educação. Com o lucro, inicia um doutorado na Harvard University. Permanece em Cambridge por dois anos e conclui o equivalente ao mestrado. Nesse intervalo, sua esposa e ex-aluna, Anne Crawford, torna-se uma dramaturga de enorme sucesso na Broadway, o que lhe permite custear uma viagem de estudos à Europa, visitando universidades na Inglaterra, França e, principalmente, na Alemanha, onde assiste aulas na Heidelberg University. Retorna da Europa em 1907 e escreve o que teria sido sua tese de Doutorado, nunca defendida na Harvard: um polêmico estudo crítico da universidade americana, em comparação com as instituições seculares do Velho Continente, intitulado The American College: A Criticism.
Em 1908, Flexner é convidado por Henry S. Pritchett, Presidente da Carnegie Foundation, para dirigir um ambicioso programa de avaliação da educação superior nos Estados Unidos, começando pelo ensino médico, cujo primeiro e mais conhecido resultado é o famoso Relatório. Por que um professor primário do interior, judeu, com doutorado inconcluso, sem qualquer expressão política ou fama intelectual, é alçado à posição de principal avaliador da educação médica num país naquele momento já pujante e em franco desenvolvimento? Uma hipótese é que seu irmão Simon Flexner, um dos fundadores e Diretor do Rockefeller Institute for Medical Research, já reconhecido na época como grande patologista, o teria recomendado à Carnegie Foundation num movimento de retribuição familiar. O sucesso de Simon devia-se ao irmão caçula Abraham que, com duas décadas de trabalho duro como mestre-escola, sacrificara uma carreira intelectual de grande potencial, responsabilizando-se pelos altos custos da formação médica de Simon Flexner na Hopkins 4.
As biografias mais detalhadas dão crédito a uma outra versão 3. De fato, Pritchett fica impressionado pela leitura do livro que Abraham publicara em 1908, citado acima, que não teve sucesso algum, mal vendeu uma pequena primeira edição. Após conhecê-lo mais de perto numa série de entrevistas pessoais, Pritchett confirma sua avaliação positiva ao aprovar o texto preliminar do projeto apresentado por Flexner.
O sucesso do Relatório é extraordinário, compensando os quase dois anos de trabalho árduo. Apenas uma indicação do impacto transformador do Relatório e seus desdobramentos: nos 100 anos prévios ao documento, 457 escolas médicas tinham sido abertas nos Estados Unidos. No início do século XX, havia pouco mais de 160 em funcionamento. Flexner inclui 155 em seu relatório. Com a aplicação de suas recomendações, num processo que ele chama de restauração da educação médica, muitas são fechadas; em dez anos, restam 31 escolas.
O reconhecimento é imediato, de modo que, em 1912, Flexner é convidado a dirigir o General Education Board, organismo filantrópico da família Rockefeller para a educação que, durante muitos anos, faz doações multimilionárias às universidades para implantar as recomendações do Relatório. Esse programa condiciona os financiamentos à adoção das seguintes medidas pelas faculdades de medicina: regime de ciclos, critérios de entrada, redução do número de alunos nas salas de aula, hospitais com enfermarias de ensino, dedicação exclusiva e conseqüente proibição da prática privada dos médicos docentes. O programa de reforma do ensino médico, coordenado pelo próprio Flexner, sofre duras reações das faculdades de medicina, notadamente da tradicional Harvard Medical School, antes de ser considerado padrão mínimo de qualidade na educação médica moderna.
Nesse momento de sua carreira, Flexner tem várias de suas idéias heterodoxas sobre pedagogia (reunidas num volume intitulado A Modern School, 1916) incorporadas ao projeto da Lincoln School, colégio de aplicação pioneiro, vinculado ao Teacher's College da Columbia University, sob a direção de John Dewey.
Em 1926, Flexner conclui seu trabalho no Board e novamente vai à Europa, concentrando-se na Oxford University, para estudos livres, no que hoje seria um programa de pós-doutorado (apesar de não ter concluído seu doutorado). No ano seguinte, em plena maturidade do ponto de vista acadêmico, Flexner retorna à mais antiga universidade de língua inglesa do mundo, agora convidado a ministrar conferências que serviram de base para um dos seus livros mais importantes (e menos conhecidos), intitulado Universities: American, English, German (1930). Trata-se de uma análise das principais universidades daquela época, completada com a proposição de modelos da "Universidade do futuro".
O marco seguinte na vida de Abraham Flexner é o Institute for Advanced Study. Louis Bamberger e sua irmã Caroline, herdeiros milionários, vendem uma das empresas da família, arrecadando uma fortuna sobre a qual deveriam pagar altos impostos; para evitar isso, querem doar parte do recurso para alguma obra acadêmica. Em 1930, os irmãos filantropos fazem contato com Flexner, pedindo assessoria sobre como seria uma Escola Médica ideal, destinada a jovens de cultura hebraica. A essa altura, já crítico do nascente movimento sionista e interessado em projetos intelectuais para além da escola médica, Flexner propõe experimentar modelos futuristas de educação superior, tema dos seus últimos escritos. Ele então convence os doadores a criar o Institute for Advanced Study, vinculado à prestigiosa Princeton University, com a finalidade de congregar as mentes mais brilhantes do seu tempo num ambiente acadêmico livre e produtivo.
O instituto inicia seus trabalhos em 1932, tendo como destaque do seu quadro científico ninguém menos que Albert Einstein. Na recente biografia de Einstein escrita por Isaacson 5, há um relato fascinante sobre o processo de atração de Einstein. Os dois se encontram pela primeira vez no California Institute of Technology (Caltech), onde Einstein participa de um seminário científico. Conversam sobre as idéias ousadas de Flexner e continuam a dialogar quando Einstein visita Flexner em Oxford, onde ele estava como Professor Visitante. Com a anuência do patrono Bamberger, Flexner viaja a Berlim, semi-clandestino, para contratar Einstein antes do Caltech, seu primeiro convite nos Estados Unidos.
Entre 1930 e 1939, o instituto é dirigido por Flexner, com reconhecida liderança, eficiência e publicidade. No período, são implantadas as primeiras unidades de pesquisa em matemática, economia e humanidades. Inicialmente, o Instituto acolhe cientistas europeus que fugiam do Nazismo, como Kurt Gödel, Hermann Weyl e o próprio Einstein, além de representantes da vanguarda científica da época, como Von Neumann, Panofsky e Openheimer. Recebe, na condição de pesquisador-visitante, importantes personalidades científicas da época, como Pauli, Courant, Fermi, Bohr e Russel. Posteriormente, respeitando os princípios da cultura acadêmica sempre defendidos por Flexner, reconhecidos líderes intelectuais, como Clifford Geertz e Albert Hirschman, passam a integrar seus quadros.
Abraham Flexner aposenta-se em 1940. Nas duas décadas seguintes, influencia a criação do National Humanities Center, escreve quatro livros, colabora com Henry Sigerist na introdução de estudos culturais e históricos no ensino médico na Hopkins, retorna aos bancos escolares como aluno especial na Columbia University e, junto com Einstein, engaja-se em movimentos sociais a favor da paz internacional. Falece em 1959, em Falls Church, Virgínia, aos 93 anos de idade.
Modelo Biomédico, dito flexneriano
A reforma da educação médica preconizada no Relatório Flexner repercutiu tardiamente no Brasil. Naquele momento, primeiras décadas do século XX, nossas faculdades de medicina ofereciam modelos retóricos de formação e, onde havia algum dinamismo científico, cultivavam laços com duas tradições européias antagônicas: a escola francesa, com forte foco na clínica, e a escola alemã, marcada pela pesquisa laboratorial.
Em 1919, o International Health Board da Rockefeller Foundation concedeu bolsas de estudos para Horácio de Paula e Souza e Francisco Borges Vieira, docentes da Cátedra de Higiene da Faculdade de Medicina de São Paulo, para um estágio de dois anos na Escola de Saúde Pública da Jonhs Hopkins University. Entre 1922 e 1925, esses professores, com a ajuda de consultores e assistentes contratados pela Rockefeller, tentaram implantar na Faculdade de Medicina uma reforma curricular (com base em disciplinas e não matérias) e institucional, removendo as cátedras 6. A adoção do tempo integral para os docentes das formações pré-clínicas (em departamentos e institutos) e a redução do número de alunos nas salas e enfermarias desencadearam reações das cátedras clínicas e cirúrgicas que rejeitavam o princípio flexneriano da dedicação exclusiva. Como resultado, a partir de 1926 os docentes do Departamento de Higiene desligaram-se da Faculdade de Medicina e constituíram o Instituto de Higiene de São Paulo, vinculado ao Governo Estadual. Somente em 1939, o Instituto passou a constituir uma das unidades de ensino da Universidade de São Paulo (USP), denominada posteriormente de Faculdade de Higiene e Saúde Pública, historicamente separada da Faculdade de Medicina.
No Rio de Janeiro, outro importante pólo de educação médica à época, Antonio da Silva Mello apresentou uma proposta de reforma da educação médica brasileira em bases muito semelhantes às propostas do Relatório Flexner 7,8. Catedrático de clínica médica da então Faculdade Nacional de Medicina, Silva Mello havia feito sua formação na Alemanha no início do século. Em 1937, num livro extraordinário pela força da denúncia corajosa (num momento de dura repressão política, lembrar que Anísio Teixeira fugira de uma ordem de prisão da polícia política do Estado Novo), faz um diagnóstico sombrio e cáustico, embora elegante, sobre a situação do ensino médico então vigente no país.
"A nossa Faculdade de Medicina, pela sua erudição rebarbativa, chegou ao absurdo de criar dentro da carreira médica, de todas a mais prática e objetiva, um tipo teórico, doutoral, de puro bacharel, que é fabricado em séries imensas para viver aos trancos, não raro quase como um miserável, e que, mesmo tendo estudado muito, ignora o que tem necessidade de saber. O estudante que trabalha com o fito único de passar no exame, e que não deveria ter direito de existência, é uma criação dessa péssima organização" 8 (p. 33).
A reforma proposta por Silva Mello é convergente com vários pontos do modelo ideal preconizado pelo Relatório Flexner: marco conceitual de base científica, dedicação exclusiva de docentes, revisão de currículos, redução de vagas, metodologia pedagógica baseada na prática, turmas menores em laboratórios e clínicas. Apesar de dispor de "contatos políticos com governantes, os quais acionou quando procurou reformar a mais prestigiosa faculdade de medicina do país, vinculada à Universidade do Brasil" 7 (p. 581), Silva Mello teve reduzido sucesso em sua proposta modernizante do modelo de formação médica de herança franco-lusitana.
O Relatório Flexner realmente implicava uma tentativa de integração capaz de superar uma profunda cisão entre modelos distintos de prática médica: a clínica e o laboratório. Não obstante a reação inicial, "a liderança da tradição clínica seria gradativamente ofuscada pela ascensão das disciplinas básicas e pelas especialidades clínicas, agora associadas ao figurino norte-americano" 9 (p. 18), particularmente após a implantação dos primeiros hospitais-escola nas décadas de 1930 e 1940, com farto financiamento da Rockefeller Foundation 6.
Após a II Grande Guerra, a agenda da reforma do ensino médico foi retomada ressaltando uma vertente da Reforma Flexner pouco conhecida entre nós - a Medicina Preventiva. Como estratégia de mobilização, realizaram-se vários eventos nos Estados Unidos e na América Latina, sob o patrocínio de fundações internacionais e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). No processo de difusão internacional desse movimento, destacaram-se o I Congresso Pan-Americano de Educação Médica (1951, Lima/Peru), os Seminários sobre o Ensino da Medicina Preventiva (1955, Viña del Mar/Chile; 1956, Tehuacán/México) e a 1ª Conferência de Faculdades de Medicina da União de Universidades da América Latina - UDUAL (1957, México DF) 10.
Esse momento de transição da hegemonia no campo da prática médica foi por mim analisado, em parceria com Jairnilson Paim, conforme segue:
"Nesta proposta, o conceito de saúde é representado por metáforas gradualistas do processo saúde-enfermidade, que justificam conceitualmente intervenções prévias à ocorrência concreta de sinais e sintomas em uma fase pré-clínica. A própria noção de prevenção é radicalmente redefinida, através de uma ousada manobra semântica (ampliação de sentido pela adjetivação da prevenção como primária, secundária e terciária) que termina incorporando a totalidade da prática médica ao novo campo discursivo" 10 (p. 303).
Na América Latina, apesar das expectativas e investimentos de organismos e fundações internacionais, o único efeito desse movimento parece ter sido a implantação de departamentos acadêmicos de medicina preventiva em países que, já na década de 1960, passavam por processos de reforma universitária.
Em suma, do primeiro ciclo de aproximação das faculdades de medicina brasileiras com os organismos de apoio técnico e de financiamento que pretendiam difundir a fórmula do Relatório da Carnegie Foundation no plano internacional, restou a criação de hospitais-escola como campo de treinamento e produção de conhecimento. Do segundo ciclo, já no pós-guerra, resultou a abertura de departamentos de medicina preventiva substituindo as tradicionais cátedras de higiene, e introduzindo nas escolas médicas conteúdos de epidemiologia, administração de saúde e ciências da conduta até então ministrados nas escolas de saúde pública, alienadas da educação médica e destinadas à formação de sanitaristas 10.
Com esse espírito, visando a fomentar pactos de convergência entre os grupos reformistas com algum potencial na cena médica brasileira, realizou-se na Bahia, em 1961, a 1ª Conferência sobre o Ensino da Clínica Médica, patrocinada pela Kellogg Foundation 11. Em certa medida, recuperou-se o impulso para superar alguns dos impasses conceituais e políticos das práticas de cuidado à saúde por meio de reformas curriculares e institucionais nos organismos de reprodução social, formação intelectual e educação profissional.
Nesse contexto, redescobre-se Flexner como agente reformador do ensino médico, sua dimensão mais reduzida e datada, e não como intelectual criativo, preocupado e atuante na modernização da escola em geral e, em particular, da universidade. Claro que há exceções. Num ensaio excepcional intitulado A Universidade de Ontem e de Hoje 12, publicado logo após ter sido exonerado pelos militares do cargo de Reitor da mítica Universidade de Brasília (UnB) original, Anísio Teixeira celebra Humboldt, Newman e Flexner como concebedores dos principais modelos de universidade do mundo moderno, denunciando ironicamente o modelo vigente de universidade: "Nem Humboldt, nem Newman, nem Flexner reconheceriam mais suas respectivas universidades".
Para o que nos interessa, dois eventos marcaram a segunda metade da década de 1960. No subcontinente latino-americano, o seminal estudo coordenado por Juan Cesar Garcia em 1967-1968, intitulado La Educación Médica en América Latina 13. No Brasil, a reforma universitária promovida pelo regime militar, resultante do Acordo MEC/USAID de 1967 e da Lei nº. 5.540 de 1968. Destaco o primeiro por ser marco referencial de todo um movimento intelectual e político que, na América Latina em geral e particularmente no Brasil, termina por se configurar como um campo de saberes e práticas chamado Saúde Coletiva. Menciono o segundo porque, posteriormente, o governo ditatorial implantado pelo Golpe de 1964 vem a ser considerado culpado de, com atraso de meio século, ter induzido a flexnerização da Medicina brasileira 14.
No contexto de abertura política e redemocratização do país vigente nos anos 1980, forjou-se uma imagem de Abraham Flexner, ainda vigente no Brasil, sobretudo no campo da educação em saúde, como um intelectual conservador e oportunista, representante da dominação econômica, política e ideológica do capitalismo imperialista. Pagliosa & Da Ros 15 (p. 493) comentam que, hoje em dia, "O adjetivo 'flexneriano' é aplicado, geralmente com caráter pejorativo, aos currículos (médicos) que apresentam uma divisão clara entre um período ou ciclo inicial de disciplinas básicas, seguido de outro dedicado aos estudos clínicos". Com facilidade, denuncia-se Flexner e seu Relatório por sexismo, racismo e elitismo: "uma hierarquização da educação médica, uma vez que as escolas passaram a contar com um maior número de homens, brancos e de classe média alta, únicos estudantes que poderiam custear os estudos em medicina (encarecidos após o Relatório Flexner)" 16 (p. 18). Além disso, mercantilismo: "o surgimento de toda uma atividade econômica voltada para a assistência médica e para o lucro em potencial do mercado por ela constituído - uma indústria da saúde" 16 (p. 24). Do ponto de vista pedagógico, denuncia-se "a formação reducionista e linear ofertada para os alunos baseada num modelo flexneriano, ou seja, fundamentado num paradigma que mantinha como foco: a repetição, a memorização e a reprodução do conhecimento" 17 (p. 13).
Aparentemente, o construto doutrinário que viria a ser conhecido como modelo biomédico de educação médica foi em princípio delineado por Eugênio Vilaça Mendes, odontólogo, consultor da OPAS, membro atuante do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foco nacional do movimento da Integração Docente-Assistencial e das propostas de reforma curricular promovidas pela Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) 18. Como hipótese, podemos atribuir a Mendes, pelo menos entre nós, a adjetivação do modelo biomédico como flexneriano, num opúsculo intitulado A Evolução Histórica da Prática Médica: Suas Implicações no Ensino, na Pesquisa e na Tecnologia Médicas 19.
Num par de textos 19,20, complementados posteriormente por um livro de síntese doutrinária intitulado Uma Agenda para a Saúde (1996) 21,
Mendes explicita os elementos estruturais do modelo biomédico suposto como flexneriano:
Mecanicismo. No modelo flexneriano "O mecanicismo se introduz [...], pela analogia do corpo humano com a máquina, elemento importante do modo de produção dominante" 20 (p. 540).
Biologismo. O modelo flexneriano "pressupõe o reconhecimento, exclusivo e crescente, da natureza biológica das doenças e de suas causas e consequências" 19 (p. 31). "Dessa maneira, o novo paradigma procura absolver os fatores deter-
minantes de natureza e social, na causa das doenças" 20 (p. 540).
Individualismo. O modelo flexneriano "é, duplamente, individualista. Primeiro, ao eleger como seu objeto, o indivíduo; segundo, ao aliená-lo, excluindo, da sua vida, os aspectos sociais. Daí, poder-se imputar ao indivíduo, a responsabilidade pela sua própria doença" 19 (p. 31).
Especialização. No modelo flexneriano, o especialismo é visto como: "Primeiro, e numa perspectiva ideológica, em função do mecanicismo que impôs à parcialização abstrata do objeto global, segundo um esquema contraditório que aprofunda o conhecimento específico e que atenua o conhecimento holístico. Segundo, e numa dimensão econômica, a especialização decorreu das necessidades da acumulação de capital, que exigiu a fragmentação do processo de produção e do produtor, via divisão técnica do trabalho" 20 (p. 540).
Exclusão de práticas alternativas. "A viabilização do paradigma da odontologia científica se fez com base na sua supremacia sobre as outras práticas alternativas, consideradas, a priori, ineficazes" 20 (p. 540).
Tecnificação do cuidado à saúde. O modelo flexneriano faz da medicina uma "engenharia biomédica [que] cria uma nova forma de mediação entre o homem e as doenças, os milagres da medicina tecnológica" 19 (p. 32).
Ênfase na prática curativa. O modelo flexneriano "prestigia o fisiopatologismo em detrimento da causa" 19 (p. 33).
Mendes arremata a construção ideológica do modelo flexneriano ao apontar determinantes e descrever seu contexto de surgimento e difusão, da seguinte forma:
"O Relatório Flexner poderia ter tido o mesmo destino de centenas de documentos preparados na Era Progressista, e que não foram levados à prática. [...] Além desse interesse das grandes indústrias, há que se ressaltar a participação, na origem e na consecução do Relatório Flexner, da profissão organizada, via Associação Médica Americana. [...] Pode-se concluir, pois, que a medicina científica se institucionalizou, através da ligação orgânica entre o grande capital, a corporação médica e as universidades. O novo paradigma determinou mudanças substantivas no objeto, nos propósitos, nos recursos e nos agentes da medicina, levando à configuração de um marco conceitual, que passa a referenciar a prática e a educação médicas" 20 (p. 540).
Tratar esse conjunto de textos 19,20,21 como "caso-índice" do que viria a ser conhecido como modelo biomédico de formação e de prática (dito flexneriano), pode constituir interessante hipótese de pesquisa histórica no campo da saúde no Brasil. Uma rápida revisão da literatura recente sobre educação médica e formação profissional para o sistema de saúde brasileiro permite identificar uma rede de referências bibliográficas caudatárias, convergentes e concordantes na construção discursiva anti-Flexner inaugurada pelos textos anteriormente destacados. Esses autores 14,15,16,17,21,22,23,24,25,26,27,28,29,30,31,32,33 identificam no Relatório elementos conceituais de uma matriz ou paradigma de ensino médico e de prática assistencial, configurando uma construção imaginária que se chamou de Modelo Biomédico (e que muitos escrevem au complet: modelo biomédico flexneriano).
Na seção seguinte, pretendo avaliar a hipótese em estudo destacando trechos selecionados do Relatório, para demonstrar que muitos desses pontos simplesmente não correspondem à letra do texto escrito por Abraham Flexner. Parecem mais corresponder a uma montagem mitológica restrita, composta por cinco mitos e duas omissões:
Mitos:
1) Conteudismo pedagógico;
2) Biologismo anti-humanista;
3) Tecnologização da prática;
4) Medicina curativa individualista;
5) Submissão às corporações médicas.
Omissões:
1) As faculdades de medicina devem ser integradas às Universidades, a fim de propiciar...
2) Formação universitária prévia para acesso à formação profissional (tomando o College como pré-requisito de entrada na escola médica).
O Relatório Flexner
O Relatório Flexner na verdade intitula-se Medical Education in the United States and Canadá (Figura 2). Henry Pritchett, Presidente da Carnegie Foundation, abre sua apresentação com as seguintes palavras: "Este relatório sobre educação médica é o primeiro de uma série de trabalhos sobre escolas profissionais que será lançado pela Carnegie Foundation". Flexner havia sido contratado para fazer, depois desse Relatório, avaliações da formação em Direito e nas Engenharias e, em seguida, para outras profissões. A avaliação sobre o ensino de Direito não foi à frente, as demais sequer começaram, pois a transformação provocada pelo Relatório Flexner sobre a educação médica estadunidense foi de tal impacto que, em dez anos, a Carnegie Foundation considerou a missão cumprida.
A citação latina - imperium in imperio - na introdução de Pritchett ao Relatório (Figura 3), dá conta de outro elemento que muito motivou Flexner e que terminou sendo uma das principais conclusões: as escolas médicas se constituíam como feudos soberanos dentro do império das universidades. Em muitos casos, as faculdades se vinculavam às instituições como uma pequena universidade dentro da universidade (daí imperium in imperio) separada e autônoma, com peculiaridades e regras próprias. Então, uma das recomendações do Relatório foi reintegrar a faculdade de medicina à instituição universitária. Esse aspecto é pouco conhecido, para não dizer praticamente ignorado, entre nós; constitui a Omissão nº. 1. Tenho uma hipótese sobre o recalque desta que foi uma das principais conclusões do Relatório. Seria porque nas universidades do Brasil - não diria todas, pois exceções existem - as faculdades de medicina continuam impérios dentro do império?
Assinalo, ainda na Introdução de Pritchett (Figura 4), a eficiente síntese dos dados significantes desse estudo. Vejamos aqui as constatações que servem de justificativa para o estudo: "Há 25 anos, tem existido uma enorme superprodução de médicos mal treinados e deseducados"; "essa superprodução de pessoas mal treinadas é devida principalmente à existência de um enorme número de escolas comerciais, sustentadas em muitos casos por métodos de publicidade, através dos quais uma massa de jovens não preparados é retirada das ocupações industriais para o estudo da medicina"; "até recentemente a condução de uma escola médica era um negócio rentável porque os métodos de instrução eram principalmente didáticos".
Examinemos diretamente o Mito nº. 1. Aqui estão trechos do Relatório, na página 53 (Figura 5):
"No lado pedagógico, a medicina moderna, como todo ensino científico, é caracterizada pela atividade. O estudante não mais apenas observa, escuta e memoriza, ele faz. Suas próprias atividades no laboratório e na clínica são os principais fatores na sua instrução e sua disciplina (e na sua formação, podemos atualizar). Uma educação em medicina envolve, tanto o aprender, quanto o aprender como; o estudante não pode efetivamente saber a não ser que ele saiba como". Notem que o emprego do verbo envolver é prescritivo e não descritivo; com isto, Flexner quer dizer: a educação médica deve envolver o aprendizado de como fazer, fazendo.
No tocante à metodologia pedagógica, com a experiência de quem havia passado quase duas décadas criando métodos originais de ensino-aprendizagem, Flexner propôs um pragmatismo operativo, muito parecido com a ABP - aprendizagem baseada em problemas. Thomas Bonner 3,
seu biógrafo mais detalhista e rigoroso, afirma que de fato a pedagogia flexneriana antecipa as principais teorizações e propostas do pragmatismo em relação à utilização da vivência e da práxis como modelo educacional, em diálogo contemporâneo com William James e John Dewey. No livro intitulado A Modern School (1916), referido anteriormente, Flexner apresenta de modo sistemático suas idéias sobre a educação em geral, particularmente a noção de uma pedagogia contextual.
Ainda nesse aspecto, vejamos a seguinte citação, ainda mais pertinente porque se refere especificamente à educação médica. "O progresso da Ciência e a prática científica ou inteligente da medicina emprega, portanto, exatamente a mesma técnica. Para usá-la, seja na investigação ou na prática, o estudante deve ser treinado no exercício positivo de suas faculdades. Treinado dessa maneira, a escola médica começa, ao invés de completar, a educação médica. Não pode, em nenhuma hipótese, transmitir ao estudante mais que uma fração dos tesouros reais da ciência, porém pode pelo menos colocá-lo no caminho de ampliar consistentemente seu patrimônio intelectual. Um hábito profissional, definitivamente formado sobre o método científico, converterá cada detalhe de sua experiência prática num fator adicional na sua educação efetiva" (Figura 6). Aqui Flexner claramente antecipa o conceito de lifelong learning, também posto como grande novidade na proposição de metodologias ativas de aprendizagem, tão populares no Brasil pós-mobral.
O Mito nº. 2 diz que Flexner tinha uma visão exclusivamente biológica e mecanicista do conhecimento sobre a saúde-doença e a medicina. Vejam esta citação, na página 26 (Figura 7), onde ele se refere às ciências básicas (Física, Química e Biologia) como mínimo necessário, muito longe de ser suficiente, para uma boa prática médica. "Elas [as ciências fundamentais] fornecem de fato os instrumentos essenciais básicos da formação médica, mas esse instrumental mínimo pouco pode além de servir como mínimo profissional permanente e, ainda assim, instrumentalmente inadequado. O médico lida de fato com duas categorias. Química, física e biologia o capacitam a apreender um desses conjuntos. Ele precisa de uma perspectiva diferente e um aparato apreciativo para lidar com o outro, elementos mais sutis. Preparação específica nesta direção é muito mais difícil; deve-se confiar no requisito insight e simpatia numa experiência cultural variada e ampla".
O Mito nº. 3 refere-se a uma concepção tecnologizada e empiricista da prática médica, supostamente constitutiva do modelo flexneriano. Mas é o próprio Flexner que desmente sucinta e singelamente essa atribuição enviesada, à página 26: "Nós podemos então descrever de modo justo que a medicina moderna é caracterizada por uma manipulação severamente crítica da experiência".
E mais ainda, à página 53 (Figura 8): "A moderna medicina [que é a que Flexner preconiza] lida, portanto, não apenas com certezas, como faz o empirismo, mas também com probabilidades, pressupostos, teorias". Acrescenta que a medicina distancia-se do empirismo ao reconhecer a "qualidade lógica" do seu objeto de conhecimento e de prática. Na citação da página 55, antes referida, Flexner mencionava "a prática da medicina científica ou inteligente".
Vejamos agora o Mito nº. 4: a questão da medicina curativa e individual como se este fora um paradigma flexneriano. Não sei como se pôde inventar que Flexner preconizava um modelo curativo individualizado em oposição a algo diferente, supostamente uma medicina integral e socializada. Olhem a clareza da afirmação contrária. "Mas a função do médico está se tornando rapidamente social e preventiva, mais que individual e curativa". Ele já dizia exatamente o oposto do que hoje muitos dizem ser o flexnerismo; "nele [o médico] a sociedade confia para avaliar, e através de medidas essencialmente educacionais executar, as condições que previnem a doença e constroem positivamente o bem-estar físico e moral. Escusado dizer que esse tipo de doutor é antes de tudo um homem educado" (Figura 9). A despeito de vários atos e escritos que mostram um Flexner quase feminista - Bonner 3 narra como Flexner cuidava das filhas enquanto Anne produzia peças de sucesso na Broadway ou quando, com a mulher, participava de passeatas e manifestações das sufragistas -, na época prevalecia o sexismo: então se dizia "um homem educado" [an educated man]; hoje usaríamos "uma pessoa educada".
Vejamos como esses três últimos temas do texto flexneriano, tomados em conjunto, conduzem a um argumento fundamental: a necessidade de formação nas humanidades, na cultura, enfim uma educação geral para os médicos, antes mesmo da formação nas ciências básicas da saúde.
A conseqüência lógica do uso distorcido desses elementos, no caso, é que a principal proposta do modelo flexneriano, que Vinten-Johansen & Riska 34 denominam de modelo flexneriano "verdadeiro", nunca foi mencionada na literatura brasileira, constituindo a Omissão nº. 2. Trata-se do college como requisito para entrada no curso médico - que depois se estenderia a todas as outras formações profissionais nos Estados Unidos. Nunca li qualquer texto brasileiro sobre Flexner que mencionasse sua defesa veemente de que os médicos deveriam ter formação nas culturas, nas humanidades, nas linguagens, na educação; na verdade; nossos autores dizem exatamente o contrário. Mas, para sermos justos e precisos, devemos fazer uma verificação no próprio texto de Flexner.
Eis o fragmento do Relatório onde essa proposta aparece com clareza e justificação (Figura 10). Acompanhemos o texto: "O requisito é, portanto, necessariamente um requisito de college, cobrindo [pelo menos] dois anos, porque três cursos laboratoriais não podem ser conduzidos e ministrados em período muito curto. Isso é uma circunstância afortunada dado que favorece o desenvolvimento simultâneo do estudante em relação a outras e mais gerais linhas. Parece então que uma política que, desde o começo, foi considerada, do ponto de vista estreito da escola médica, isolada, implica logo o abandono desse ponto de vista a favor de algo mais compreensivo". Compreensivo, no idioma inglês, tem sentido mais amplo que no nosso léxico. Não quer dizer apenas compreensivo no sentido de compreensão ou entendimento, mas também no sentido de ampla abertura. Continuando: "O requisito preliminar para entrada na educação médica deve, portanto, ser formulado em termos que estabelecem uma distinta relação, pedagógica e cronológica, entre a escola médica e outros órgãos educacionais".
Aqui as duas omissões se articulam, pois surge como questão a quebra do "império dentro do império" com a integração da escola médica na universidade. Então, a parte propositiva do Relatório, o verdadeiro modelo flexneriano, claramente se apresenta num argumento para justificar o college como requisito essencial para entrada na escola médica a partir de três justificativas, necessárias para humanizar a prática médica: primeiro, a necessidade de competência nas três ciências básicas da saúde (como ele diz em outro momento) "de um modo que não seja superficial, informativo tal como se faz na high school"; segundo, a experiência da diversidade cultural; e terceiro, a educação nas artes liberais. Ainda nesse aspecto, há outra seção do Relatório Flexner inteiramente destinada a promover o requisito do college para atender à necessidade de mais maturidade nos candidatos à carreira da Medicina. Ao concluir, menciona novamente a integração da escola médica na universidade.
O diagnóstico de Flexner havia encontrado que a maioria das escolas médicas dos Estados Unidos não tinha qualquer pré-requisito universitário prévio. Propôs então que as escolas médicas do Sul dos Estados Unidos, região menos desenvolvida e mais necessitada de assistência social e de saúde, poderiam ter, durante certo prazo, apenas a conclusão do ensino médio (high school) como requerimento de entrada. O college de dois anos se tornaria o requisito padrão, de acordo com uma base legal mínima, para o resto do país. Um número pequeno de instituições, na época Harvard, Yale, Hopkins e algumas outras, que já exigiam o college de quatro anos, manteriam seus critérios rigorosos de entrada como antecipação do futuro patamar nacional de ingresso na escola médica.
Pois bem, ao ter sucesso em postular e tornar o college, inicialmente com pelo menos dois anos, e depois o curso pleno de quatro anos, como padrão de requerimento para entrada na escola médica, Flexner na prática definiu o modelo norte-americano de arquitetura curricular universitária. Portanto, seu projeto de estrutura de educação superior em ciclos foi de tal maneira absorvido por toda a rede de formação universitária nos Estados Unidos que o que hoje se chama de modelo anglo-saxão é originário do Relatório Flexner. O Relatório e a atuação de Flexner no General Education Board fizeram com que nos Estados Unidos, já em 1925, todas as formações profissionais passassem a incorporar um elemento estrutural necessário de pré-formação que se encontrava no college. É claro que, antes disso, muitas universidades americanas já ofereciam cursos de estudos gerais no nível undergraduate [equivalente à graduação brasileira], com os títulos BA [Bachelor of Arts] e BSc [Bachelor of Sciences], mas eram cursos indiferenciados que não tinham a finalidade de educação propedêutica fundamental para a formação nas profissões.
Resta comentar o Mito nº. 5: Flexner seria cúmplice ou refém da corporação profissional da Medicina. De fato, no Relatório, há um capítulo sobre os conselhos estaduais de regulação da prática médica, com uma série de prescrições, principalmente avaliação externa e exames de acreditação, porém tais órgãos não seriam autonomamente geridos pelos profissionais médicos e sim por representantes de governo e da sociedade. Em contradição com a versão anti-Flexner, e desmontando esse mito, três dos seus princípios - o regime de ciclos, a dedicação exclusiva dos docentes e a proibição da clínica privada - foram objeto de ferrenha resistência da Associação Médica Americana, a ponto de seu Presidente, Arthur Bevan, arrogantemente denunciar a Reforma Flexner como "the clumsy work of a layman" [o trabalho desastrado de um leigo], conforme Bonner 3 (p. 150).
Comentários finais
Como vimos, equivocam-se os que consideram Flexner como defensor de uma formação com base em conteúdos e não em métodos, que sua visão da saúde era exclusivamente biológica e reducionista, e não social e humanista, que a vertente principal do seu modelo de prática é a da medicina curativa e individual, e que Flexner apoiava a prática privada da medicina e o controle social da formação médica pelas corporações profissionais. Porém estão corretos os que acham que ele propunha uma reorganização do conhecimento com base numa abordagem disciplinar. Entretanto, se fizermos uma análise justa e rigorosa, a disciplinaridade era vanguarda mesmo em 1910, implicando consolidação ou formalização dos avanços da ciência. A especialização e a profissionalização regulada eram então posturas avançadas, porque naquele momento um rico conjunto de novas atividades institucionais e práticas sociais estava sendo introduzido na vida social.
Se essa constatação parece tão evidente, por que no Brasil desenvolveu-se, com tal vigor, uma retórica falseadora dos elementos axiais do pensamento de Abraham Flexner, forjando um pretenso modelo flexneriano e fomentando um movimento anti-Flexner? Por que o anti-Flexner aparece como posição progressista supostamente diferenciadora da educação médica brasileira perante a educação superior em geral, a educação em saúde em particular e, especificamente, a formação profissional?
Creio que podemos compreender a rationale desse movimento, analisando duas vertentes do processo de descaracterização de Flexner e sua obra: o contexto ideológico-político de emergência dessa montagem e o regime imaginário que lhe deu sustentação.
Na década de 1970, no campo da saúde, houve intenso esforço de produção teórica para alimentar a luta ideológica de resistência contra a ditadura militar. Uma importante estratégia utilizada com sucesso foi a recriação crítica ou reelaboração de conceitos, como prevenção 35, mercado de trabalho 36, prática médica 37, raízes sociais do trabalho médico 38, entre outros.
Com a queda da ditadura e a abertura política gradual e controlada, já na década de 1980, o país iniciava a redemocratização política e a reorganização de suas instituições. Na interface entre educação e saúde, naquele momento buscavam-se propostas capazes de superar pautas e agendas de reforma da educação médica e de formação de recursos humanos em saúde, supostamente herdadas do regime de exceção e do imperialismo americano. Tal movimento se deu tanto positiva como negativamente. Por um lado, positivamente, ao resgatar temas da ação extensionista da Saúde Comunitária, combinados com as então incipientes pedagogias ativas (de inspiração freiriana), além de elementos de planejamento estratégico regionalizado, propunha-se um modelo de formação baseada na prática denominado Integração Docente-Assistencial que, num marco teórico referencial revolucionário, propiciaria respostas tecnicamente efetivas e corretas politicamente. Por outro lado, negativamente, o recurso a certa desonestidade intelectual foi útil para se reconstruir um suposto discurso antagônico, atribuindo-lhe maldade e erro, necessário para criar a imagem do inimigo.
A análise do modelo de ensino médico que efetivamente compõe o Relatório Flexner revela eixos fundamentais que, distorcidos, omitidos, esquecidos, encontram-se recalcados ou pervertidos na imagem ou montagem ideológica pretendida. Num contexto como a Saúde Coletiva brasileira das duas últimas décadas, esse conjunto de recalques e distorções permitiu indiciar um arcabouço conceitual ou matriz de teorias sociais comprometidas com a dominação (estrutural-funcionalismo), subsidiadas por epistemologias vencidas ou superadas (reducionismo positivista), produtoras de formas autoritárias de gestão (gerencialismo organizacional), convergindo para um modelo de formação e de prática em saúde (modelo biomédico) que se devia antagonizar. Para tornar mais eficiente a montagem imaginária, foi preciso atribuir face humana ao antagonista: o funcionalismo seria parsoniano; o reducionismo, cartesiano; o positivismo, comtiano; o organizacionismo, taylorista; o modelo biomédico seria, naturalmente, flexneriano.
Enfim, demonstramos neste artigo que o suposto modelo biomédico flexneriano deixa de considerar, ou o faz de modo distorcido, alguns dos elementos que de fato têm importância para o entendimento do papel histórico de Abraham Flexner. Buscamos fazê-lo na perspectiva de desconstrução dessa montagem como dispositivo retórico com o qual, por um lado, se tentou demonizar uma personagem histórica (o próprio Flexner) e, por outro, a ele se atribuiu responsabilidade por uma concepção (o modelo dito flexneriano) produtora de efeitos imaginários de exclusão, negatividade e repulsa, particularmente nos subcampos denominados Ensino Médico e Educação em Saúde, que compõem importante segmento da matriz ideológica da Saúde Coletiva brasileira
Agradecimentos
À Denise Coutinho, pela revisão crítica de conteúdo e linguagem. A Everardo Duarte Nunes, por ter provocado este reencontro com a obra de Abraham Flexner.
Referências
1. Ludmerer K. Understanding the Flexner Report. Acad Med 2010; 85:193-6.
2. Flexner A. Medical education in the United States and Canada. New York: Carnegie Foundation for the Advancement of Science; 1910. http://www.carnegiefoundation.org/files/elibrary (acessado em 02/Jun/2010).
3. Bonner TN. Iconoclast: Abraham Flexner and a life of learning. Baltimore: Johns Hopkins University Press; 2003.
4. Flexner JT. An American saga: the story of Helen Thomas and Simon Flexner. New York: Fordham University Press; 1993.
5. Isaacson W. Einstein: sua vida, seu universo. São Paulo: Companhia das Letras; 2007.
6. Marinho MGC. Norte-americanos no Brasil: uma história da Fundação Rockefeller na Universidade de São Paulo (1934-1952). São Paulo: Autores Associados; 2001.
7. Kemp A, Edler F. A reforma médica no Brasil e nos Estados Unidos: uma comparação entre duas retóricas. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2004; 11:569-85.
8. Silva Mello A. Problemas do ensino médico e de educação. Rio de Janeiro: Limitada; 1937.
9. Edler FC, Fonseca MRF. O ensino médico no cenário republicano. Cadernos ABEM 2005; 2:19-20.
10. Paim JS, Almeida-Filho N. Saúde coletiva: uma "nova saúde pública" ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saúde Pública 1998; 32:299-316.
11. Fraga Filho C, Rosa AR. Temas de educação médica. Brasília: Secretaria de Ensino Superior, Ministério da Educação; 1980. (Série de Monografias de Ensino Superior, 1).
12. Teixeira A. A universidade de ontem e de hoje. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos 1964; 42:27-47.
13. Garcia JC. La educación médica en la América Latina. Washington DC: Organización Sanitária Panamericana; 1972. (Publicación Científica, 255).
14. Nedy MBC, Neves FBS, Neves AG, Bitencourt V. O ensino médico no Brasil: origens e transformações. Gazeta Médica da Bahia 2005; 75:162-8.
15. Pagliosa FL, Da Ros MA. O Relatório Flexner: para o bem e para o mal. Rev Bras Educ Méd 2008; 32:492-9.
16. Aguiar RAT. A construção internacional do conceito de atenção primária à saúde (APS) e sua influência na emergência e consolidação do sistema único de saúde no Brasil [Dissertação de Mestrado]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2003.
17. Seegmuller EF, Gielow R, Behrens M, Lima Junior E. Formação médica: uma proposta diante das demandas da sociedade. Experiência da Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUCPR. Ciênc Cult 2008; 39:9-22.
18. Veras RP. A ABEM e as transformações da prática médica no Brasil [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1981.
19. Mendes EV. A evolução histórica da prática médica: suas implicações no ensino, na pesquisa e na tecnologia médicas. Belo Horizonte: Fundação Mariana Resende Costa/Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Financiadora de Estudos e Projetos; 1985.
20. Mendes EV. A reforma sanitária e a educação odontológica. Cad Saúde Pública 1986; 2:533-52
21. Mendes EV. Uma agenda para a saúde. São Paulo: Editora Hucitec; 1996.
22. Camargo MCA. O ensino da ética médica e o horizonte da bioética. Bioética 1996; 4:47-51.
23. Koifman L. O modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2001; 8:48-70.
24. Lampert JB. Currículo de graduação e o contexto da formação do médico. Rev Bras Educ Méd 2001; 25:7-19.
25. Almeida MJ. A educação médica e as atuais propostas de mudança: alguns antecedentes históricos. Rev Bras Educ Méd 2001; 25:42-52.
26. Aleixo JLM. A atenção primária à saúde e o programa de saúde da família: perspectivas de desenvolvimento no início do terceiro milênio. Revista Mineira de Saúde Pública 2002; 1:1-15.
27. Rocha GWF. A Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro: da Praia Vermelha à Ilha do Fundão - o(s) sentido da(s) mudança/s [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; 2003.
28. Arcoverde TL. Formação médica: (des)construção do sentido da profissão - a trajetória da representação social [Dissertação de Mestrado]. Blumenau: Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Regional de Blumenau; 2004.
29. Faleiros VP, Silva JFS, Vasconcellos LCF, Silveira RMG. A construção do SUS: histórias da Reforma Sanitária e do processo participativo. Brasília: Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Ministério da Saúde; 2006.
30. Ristow AM. A formação humanística do médico na sociedade do século XXI: uma análise curricular [Dissertação de Mestrado]. Curitiba: Faculdade de Educação, Universidade Federal do Paraná; 2007.
31. Amaral JL. Duzentos anos de ensino médico no Brasil [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007.
32. Perillo E. Importação e implantação do modelo médico-hospitalar no Brasil. Um esboço de história econômica do sistema de saúde 1942-1966 [Tese de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; 2008.
33. Fonseca WLM. O ensino transversal das bases humanísticas no Curso de Medicina da Unifoa [Dissertação de Mestrado]. Volta Redonda: Centro Universitário de Volta Redonda; 2009.
34. Vinten-Johansen P, Riska E. New oslerians and real flexnerians; the response to threatened professional autonomy. Int J Health Serv 1991; 21:75-108.
35. Arouca S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo: Editora da Unesp/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003.
36. Donnangelo MCF. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Livraria Pioneira; 1975.
37. Nogueira RP. Medicina interna e cirurgia: a formação social da prática médica [Dissertação de Mestrado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 1977.
38. Mendes-Gonçalves RB. Medicina e história: raízes sociais do trabalho do médico [Dissertação de Mestrado]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 1979.
Correspondência:
N. Almeida Filho
Universidade Federal da Bahia.
Condomínio Jardim Piatã, Qd. 6, Lt. 3
Salvador, BA 41650-200, Brasil
naomarf@ufba.br
Recebido em 24/Out/2010
Aprovado em 08/Nov/2010