RESENHAS BOOK REVIEWS
Stela Nazareth Meneghel
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. smeneghel@hotmail.com
LINGUAGEM, GÊNERO, SEXUALIDADE: CLÁSSICOS TRADUZIDOS. Ostermann AC, Fontana B, organizadoras. São Paulo: Parábola Editorial; 2010. 166 p.
ISBN: 978-85-7934-012-3
A saúde coletiva tem utilizado cada vez mais, tanto em pesquisas quanto em investigações aplicadas ou avaliações, os denominados métodos qualitativos de pesquisa. Dentre os métodos de pesquisa oriundos das ciências sociais, têm especial relevância os estudos de interação social pertencentes à tradição sociolingüística que incluem as abordagens naturalísticas, incluindo a análise da conversa.
A análise da conversa é uma expressão que designa uma corrente da etnometodologia desenvolvida nos Estados Unidos nos anos 1970, baseada nas investigações de Sacks e colaboradores. A análise da conversa considera a fala-em-interação fundamental para o funcionamento das instituições sociais 1.
A conversa espontânea, captada em pesquisas por meios naturalísticos (gravações de atendimentos telefônicos tipo call centers, consultas de profissionais da saúde, entrevistas de emprego, conversas entre grupos de familiares, estudantes, trabalhadores, amigos) é considerada o gênero básico de linguagem em uso e, por isso, é vista como uma atividade central da vida social e utilizada para análise lingüístico-interacional.
O livro que estamos apresentando, organizado por Ana Ostermann, uma pesquisadora do campo da lingüística cujos estudos têm se aproximado das ciências da saúde 2, e Beatriz Fontana traz uma importante contribuição teórico-metodológica ao colocar à disposição dos investigadores brasileiros, em especial os que trabalham com gênero e sexualidade, esta coletânea de autores de referência.
O livro compreende oito capítulos organizados em seqüência temporal que apresentam textos clássicos que abordam a relação entre linguagem, gênero e sexualidade e as discussões em torno das novas perspectivas que emergiram na área dos estudos lingüístico-interacionais focados em gênero. Tal organização parece fundamental, sobretudo para pesquisadores e alunos de outros campos como a saúde coletiva. Quando nos aproximamos de uma disciplina nova, estudando de modo autodidata ou garimpando referências em estudos e citações, muitas vezes gastamos um tempo excessivo para fazer o mapa conceitual e teórico do tema, e nos perdemos em textos que não são os fundamentais, percorremos caminhos em ordem cronológica inversa, priorizamos a digressão ou o trabalho menor em detrimento de obras fundamentais que, às vezes, passam ao largo. No caso do livro que ora apresentamos, temos a vantagem de receber o mapa pronto, sabendo de antemão que muitos desses textos estão em obras esgotadas ou em revistas de difícil acesso, além da barreira da língua para os não iniciados. Esta é uma primeira vantagem da leitura desta obra.
Precisamos salientar também a tradução cuidadosa e a leitura agradável dos textos selecionados, que nem por isso deixam de apresentar os conteúdos específicos a que se propõem. Já na introdução, as organizadoras nos orientam que os primeiros trabalhos estão alinhados à perspectiva teórica que analisa as características de déficit, dominância e diferença na fala de homens e mulheres em interação. A primeira obra da coletânea, Linguagem e Lugar da Mulher trabalha a noção de déficit na fala das mulheres em relação aos homens. Robin Lakoff, utilizando dados conversacionais do dia-a-dia da sociedade estadunidense e explicitando que qualquer procedimento metodológico é em certo ponto introspectivo ("o pesquisador deve analisar seus dados, afinal de contas"(!)), mostra quanto o processo de socialização de meninos e meninas é 'generificado' e objetiva produzir uma linguagem de homens e outra de mulheres. O paradoxal é que as mulheres precisam falar "como damas" para serem aceitas na sociedade, ao mesmo tempo em que são discriminadas e desvalorizadas por usar essa "linguagem de mulheres".
O texto O Trabalho que as Mulheres Realizam nas Interações examina a relação hierárquica entre homens e mulheres, iniciando com uma discussão sobre a conversa como atividade negociada, em que as mulheres executam a maior parte do (duro) trabalho conversacional. Trabalho conversacional é entendido como o somatório de recursos que os falantes precisam usar para sustentar uma interação e diminuir ou mesmo suprimir períodos de silêncio, que podem ser constrangedores ou mesmo hostis. A autora traz exemplos de "estratégias comunicacionais" que os falantes usam no cotidiano para sustentar as interações. Esse tipo de abordagem é importante para avaliar interações que ocorrem nos serviços de saúde em que a comunicação entre falantes é crucial, como consultas médicas 3, relatos de atendimento, práticas de acolhimento (e de não acolhimento) de usuários.
Do mesmo modo, no capítulo 4, Pequenos Insultos: Estudo sobre Interrupções em Conversas entre Pessoas Desconhecidas e de Diferentes Sexos, ao enfatizar a perspectiva da dominância na conversa entre falantes do sexo masculino e feminino, West e Zimmerman identificam que o percentual de interrupções nas interações de pessoas de sexos diferentes é majoritariamente masculino. Semelhante tipo de análise tem sido realizado ao focar conversas naturais entre trabalhadores de instituições e usuários de serviços, gerando resultados surpreendentes, mostrando, por exemplo, o quanto profissionais e operadores de instituições sociais no uso de suas prerrogativas, utilizam a interrupção de turnos de fala de usuários para silenciá-los e intimidá-los. Em suma, os homens interrompem as mulheres em freqüências elevadas e essa assimetria constitui um meio de "fazer" poder em interações face a face entre homens e mulheres.
Um novo olhar às interações de gênero será agregado no capítulo Comunidades de Práticas: Lugar onde Co-habitam Linguagem, Gênero e Poder. As autoras criticam o essencialismo veiculado pelo binarismo "linguagem masculina/linguagem feminina" e introduzem o conceito de comunidades de prática, situações em que o gênero é aprendido em falas situadas em comunidades específicas.
O texto É uma Menina! A Volta da Performatividade à Lingüística traz à discussão a performatividade de gênero proposta pelas teóricas "queer" e ressalta o poder dos atos performativos. O ponto de partida foi a teoria dos atos da fala elaborada por Austin, na qual o falar não significa apenas descrever determinadas situações, mas fazer coisas. Dessa maneira, afirmam as autoras, como mais tarde uma das principais teóricas feministas Judith Butler iria reafirmar, gênero é performativo.
Acreditamos que a leitura dessa coletânea pode motivar aproximações entre os estudos de gênero, a etnometodologia e a saúde coletiva também no Brasil, já que essa aproximação já existe em outros países. A saúde pública tem uma longa tradição de investigação e intervenção social, no entanto ainda continuamos produzindo muitas pesquisas cuja análise não tem ultrapassado a mera descrição das categorias mais citadas pelos entrevistados ou falantes, sem ampliar as perspectivas de análise e apostar em outros instrumentos e referenciais.
Os textos da coletânea trazem aportes teóricos e práticos, tanto do ponto de vista conceitual no tema gênero/sexualidade quanto do ponto de vista metodológico da etnometodologia/análise da conversa. A saúde coletiva rompeu com a dicotomia do qualitativo versus quantitativo há algum tempo, porém ainda precisa colocar em sua caixa de ferramentas muitos dos dispositivos e invenções tecnológicas validados em outros campos disciplinares. Certamente, podemos incluir estes textos, de certo modo exemplares, entre estas ferramentas.
1. Charaudeau P, Maingueneau D. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto; 2004.
2. Ostermann AC, Souza J. Contribuições da Análise da Conversa para os estudos sobre o cuidado em saúde: reflexões a partir das atribuições feitas por pacientes. Cad Saúde Pública 2009; 25:1521-33.
3. Ostermann AC. Análise da conversa aplicada como uma abordagem para o estudo da linguagem e gênero: o caso dos atendimentos a mulheres em situação de violência no Brasil. In: Meneghel SN, organizadora. Rotas críticas II - ferramentas para trabalhar com a violência de gênero. Santa Cruz do Sul: EDUNISC; 2009. p. 142-71.