ARTIGO ARTICLE

 

Redes de conversação e coordenação de ações de saúde: estudo em um serviço móvel regional de atenção às urgências

 

Networks for dialogue and coordination of health activities: a study on a regional mobile emergency care service

 

 

Juliano de Carvalho LimaI; Francisco Javier Uribe RiveraII

IDiretoria de Planejamento Estratégico, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A coordenação de redes de serviços é um dos principais desafios dos sistemas de saúde e exige uma intrincada trama de interações entre os atores envolvidos na prestação de serviços. Neste trabalho assume-se um modelo que coloca as redes de conversações como componente central da coordenação e analisam-se as redes de conversações no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Em particular, busca-se analisar como as interações verbais influenciam neste processo. Utiliza-se a observação direta e a gravação de reuniões como técnicas de coleta de dados e a análise de conversação como estratégia metodológica de análise. Entre os resultados destaca-se a identificação de duas redes principais de conversações como mecanismo de coordenação de ações. Advoga-se a importância do conceito de coordenação dialógica como ferramenta para a análise e para a melhoria da coordenação em sistemas de serviços de saúde.

Serviços de Saúde; Unidades Móveis de Saúde; Sistemas de Saúde


ABSTRACT

Coordination of health services networks is one of the main challenges for health systems and requires an intricate web of interactions between service providers. This study assumes a model that uses communications networks as a central component of coordination and analyzes such networks in the Mobile Emergency Care Service (SAMU) in Greater Metropolitan Rio de Janeiro State Area II, Brazil. The study specifically seeks to analyze how verbal interactions influence this process. The research used direct observation and taping of meetings with data collection and analysis of conversation as the methodological strategy. The findings feature the identification of two main conversation networks as the mechanism for coordinating actions. The article highlights the importance of the concept of dialogical coordination as a tool for the analysis and improvement of coordination in health services systems.

Health Services; Mobile Health Units; Health Systems


 

 

Introdução

A diversidade dos processos de atenção à saúde, o seu caráter transversal e o amplo número de atores e serviços envolvidos exigem uma estrutura em rede para dar conta da coordenação das interdependências e, assim, garantir a integralidade.

A palavra rede refere-se a uma configuração policêntrica com nós e vínculos que se estabelecem entre eles. No plano técnico-operacional denota a idéia de fluxo, de circulação. Uma estrutura em rede implica um conjunto de relações estáveis, de natureza não hierárquica e interdependente, vinculando uma série de atores com interesses comuns e que intercambiam recursos para concretizar estes interesses, com base na cooperação 1.

No caso dos serviços de saúde, a constituição de redes exige uma intrincada trama de interações entre aqueles responsáveis pela organização do sistema (gestores), os responsáveis pela organização e produção dos serviços (gerentes e profissionais) e os cidadãos. Apesar de neste processo estarem envolvidas instituições e projetos, são sempre pessoas que se articulam, conectam e constroem vínculos 2,3.

Assim, a construção da integralidade no campo da saúde passa pela implantação de estruturas e mecanismos reguladores dos fluxos de usuários, mas passa também pela mudança nos modos de interação entre os atores envolvidos. Como esta interação se dá, fundamentalmente, através da linguagem, isso exige processos intensos em comunicação.

É com base nesta compreensão e num modelo teórico que coloca a comunicação como componente central da coordenação, que busca-se analisar as redes de conversações estabelecidas no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro (SAMU Metro II/RJ). Em particular, busca-se analisar como as interações verbais intergestores e interserviços influenciam neste processo, estabelecendo-se co-relações com outros estudos que ressaltam o caráter interativo e dialógico da coordenação em saúde.

 

Aspectos teóricos: teoria do agir comunicativo e teoria das conversações

O modelo teórico que dá sustentação à análise foi desenvolvido por Lima 4, baseado na Teoria do Agir Comunicativo 5, na Teoria dos Atos de Fala 6 e na Teoria da Conversação 7. Segundo o modelo desenvolvido: (1) a interdependência é o determinante da coordenação e da integração em sistemas e serviços de saúde, sem interdependência não há o que coordenar e o que integrar; (2) a integração em sistemas de serviços de saúde depende da eficácia dos mecanismos de coordenação existentes no interior do sistema e; (3) a coordenação pode ser compreendida enquanto um fenômeno essencialmente lingüístico.

A fundamentação da coordenação enquanto fenômeno lingüístico corresponde ao reconhecimento de duas formas de ação social: a ação comunicativa e a estratégica 5. A ação comunicativa permitiria a coordenação através do entendimento lingüisticamente mediado. Entendendo a linguagem como um conjunto de atos de fala que operam como pretensões de validade criticáveis, a ação comunicativa seria uma forma de produção de consensos naturais ou argumentativos sobre pretensões. Já a ação estratégica é uma forma de coordenação da ação baseada nos interesses particulares dos mesmos, condicionada pelas esferas de poder e do mercado. Esta coordenação não está baseada no entendimento, mas em argumentos empíricos e coercitivos.

Assim, seria possível analisar processos de integração a partir de um modelo baseado na inter-relação entre interdependência, coordenação e integração, cujo eixo estruturante é uma dinâmica rede de conversações que se estabelece entre os distintos atores que atuam no sistema.

Conversação é a unidade mínima de interação social voltada para execução bem sucedida de ações. Envolve mais de um ato de fala e articula escuta e proposição 7. A linguagem não apenas é uma forma de expressão ou representação do mundo, mas envolve atos que contribuem para sua geração ou recriação dinâmica 6.

A idéia de rede de conversações operando como "sedimentador" das atividades de coordenar interdependências e promover integração advém da compreensão das organizações como uma rede predominante de petições e compromissos, apoiada nas afirmações e declarações. Estas são, em última análise, fundantes ou criadoras das organizações. Os nós desta rede corresponderiam a especializações em determinados compromissos (ou formas de produção), com conversações nitidamente recorrentes 8.

As análises partem dos distintos tipos de conversação e de atos de fala sistematizados por Echeverría 7.

• Conversação de juízos pessoais, quando se estabelece uma cadeia de juízos através dos quais busca-se interpretar o que ocorreu e as conseqüências derivadas do fato. Trata-se de uma ação que visa dar sentido aos acontecimentos, trata-se de uma ação reflexiva.

• Conversações para coordenação de ações, que são aquelas que levam as pessoas a atuarem sobre os problemas visando superá-los. Não se trata de uma ação puramente reflexiva, portanto, mas sim de uma ação gerativa.

• Conversações para possíveis ações, que não estão orientadas para enfrentar os problemas em questão, mas sim para a ação de especular e explorar novas ações possíveis, novas possibilidades que podem ou não levar à coordenação da ação.

• Conversações para possíveis conversações são aquelas que ocorrem quando se julga não ser possível conversar diretamente com alguém acerca de algo.

No que diz respeito aos atos de fala, distinguem-se três categorias: as afirmações, as declarações e as promessas.

• As afirmações correspondem a descrições da realidade. Trata-se de proposições acerca das observações feitas por alguém sobre algo no mundo objetivo. Neste caso, a palavra segue o mundo.

• As declarações geram um novo mundo. Quando um juiz diz "inocente" não está se referindo a algo que passa no mundo, mas criando uma nova realidade. Neste caso o mundo segue a palavra.

• As promessas implicam um compromisso manifesto mútuo. Esse compromisso constitutivo de uma promessa não é apenas um compromisso individual, mas também social.

Para a análise das redes de conversação em sistemas de serviços de saúde, têm interesse especial as conversações para coordenação de ações e os atos de fala do tipo declarações e promessas.

 

Metodologia

O estudo foi realizado na Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, que é composta por sete municípios e conta com 22 unidades móveis, sendo 15 de suporte básico e 7 de suporte avançado.

Cada município tem um Coordenador Municipal de Atenção às Urgências e há uma Coordenação Regional. Este conjunto de atores constitui um colegiado, responsável pela coordenação do serviço. A regulação da assistência é feita pela Central de Regulação de Urgências.

A coleta de dados incluiu gravação de reuniões do colegiado, observação direta da Central de Regulação de Urgências e entrevista com os sete coordenadores municipais. Tais observações e registros foram realizados entre março e novembro de 2007.

As reuniões do Colegiado de Coordenadores Municipais foram acompanhadas, gravadas, transcritas e submetidas à Análise de Conversação. Ao todo foram 12 reuniões acompanhadas. O material coletado nestas reuniões compõe um conjunto com mais de 36 horas de gravação. O período de observação da Central de Regulação de Urgências foi de aproximadamente 12 horas, realizada em dias alternados de acordo com as datas das reuniões dos coordenadores municipais.

Os dados relevantes foram registrados em um diário de campo e buscavam apreender principalmente: (a) a rede de conversações, identificando os atores envolvidos nos fluxos de conversação no momento da regulação de uma urgência; (b) os tipos de conversação predominantes nas relações com distintos atores; (c) os principais problemas que ocorrem durante as conversações para regulação das urgências; (d) os principais atos de fala; (e) outros aspectos relevantes observados no contexto da Central de Regulação de Urgências.

Para analisar as interações utilizou-se como principal ferramenta a Análise de Conversação, um método de análise que estuda a ordem e a organização da ação social cotidiana através da análise das conversações; analisa como os participantes organizam a interação de momento a momento. A Análise de Conversação está centrada na análise da linguagem "na prática", ou seja, lida com o discurso oral no contexto em que ocorre, no lugar onde está a ação.

Para o desenho da rede de conversações, entendida enquanto o conjunto de relações ou interações cujas ligações são mediadas pela conversa entre atores envolvidos em um contexto compartilhado, o primeiro passo foi a identificação dos indivíduos ou grupos envolvidos na gestão e funcionamento do serviço.

A partir da observação direta e do diálogo com a Coordenação Regional do SAMU, foram identificados os seguintes atores que compõem a rede de conversação:

• Gestores: secretários municipais de saúde;

• Coordenação Regional do SAMU: coordenador regional, coordenador médico, coordenador de enfermagem, coordenador administrativo;

• Coordenação Municipal: coordenadores municipais do SAMU;

• Direção de hospitais;

• Direção de outros serviços da rede: Grupamento de Socorro de Emergência (GSE), serviços ambulatoriais e diagnósticos;

• Usuários;

• Técnico auxiliar de regulação médica;

• Médico regulador;

• Equipes de intervenção: médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, motorista;

• Operador de frota;

• Outros serviços da rede: emergências hospitalares, unidades ambulatoriais, GSE;

• Outros atores: vereadores, prefeitos, imprensa, conselhos municipais de saúde.

O segundo passo para o desenho das ligações da rede foi a solicitação, a cada entrevistado, da indicação de pessoas ou grupos com os quais realizavam conversas regulares e freqüentes em função do seu trabalho.

Para o desenho da rede de conversações foi considerada a linguagem clássica de rede, identificando-se os nós e as ligações. A unidade nó-ligação constitui, na abordagem de redes de conversações, um momento de conversa que envolve várias atividades específicas, incluindo técnicas e modalidades de conversação.

Para a análise da estrutura da rede foram considerados os conceitos de clique e centralidade 9. As cliques são grupos de atores que mantêm relações mais estreitas ou intensas entre si. São grupos de atores onde cada um está direta e fortemente ligado a todos os outros. As cliques podem representar uma instituição, um subgrupo específico ou identificar a movimentação em torno de um determinado problema. Já a idéia de centralidade diz respeito à posição de um ator em relação aos outros, considerando como medida a quantidade de ligações que se colocam entre eles. A centralidade tem relação com a questão do poder. Quanto mais central é um ator, mais bem posicionado está em relação às trocas e às comunicações, o que aumenta o seu poder na rede. Ambas as medidas, cliques e centralidade, são importantes para localizar o papel dos atores no processo de coordenação de ações no interior do sistema.

 

Resultados

Foram identificadas duas cliques principais na rede de conversações do SAMU Metro II/RJ, denominadas Clique Sistema de Governança e Clique Sistema Clínico.

A Clique Sistema de Governança é formada por seis nós e tem o Coordenador Regional e os coordenadores municipais como figuras centrais. Já a Clique Sistema Clínico possui oito nós, e o médico regulador e as equipes de intervenção são as figuras centrais.

Quanto à questão da centralidade, foram identificados cinco atores centrais: o Coordenador Regional e os coordenadores municipais, com 12 ligações cada; o médico regulador e os intervencionistas, com 11 ligações cada; e o coordenador médico, com nove.

A centralidade tem a ver com capacidade para influenciar as ações e os resultados no âmbito da rede como um todo. Por isso, embora o coordenador médico tenha um número menor de ligações, situa-se numa posição onde se relaciona intensamente no âmbito das duas cliques, o que o coloca em uma posição central.

A Figura 1 apresenta o cruzamento do conjunto de interações conversacionais com a identificação das cliques e dos atores centrais na rede de conversações do SAMU Metro II/RJ.

Uma vez descrita a estrutura da rede de conversações, em seguida é analisada a dinâmica desta rede. Tal análise focaliza as conversações com vistas à coordenação de ações.

Seguindo a abordagem de Echeverría 7, para quem os vários tipos de conversação derivam de um "quiebre", ou seja, de uma interrupção no transcorrer normal das atividades, buscou-se analisar os tipos de conversação predominantes em cada um destes fluxos.

A identificação dos "quiebres" nas falas dos atores permitiu traçar os tópicos predominantes nas atividades realizadas pelos atores e que influenciam a dinâmica das conversações que se estabelecem no processo de coordenação de ações. Em função destes tópicos foram identificados cinco fluxos principais de conversações que constituem a rede: (1) conversações para atendimento ao usuário; (2) expansão das conversações para atendimento ao usuário; (3) conversações para atendimento ao usuário, com divergência entre Central de Regulação de Urgências e intervenção; (4) conversações para governança; (5) expansão das conversações para governança.

A seguir serão apresentadas as análises cuja origem dos fluxos de conversação se dá na Clique Sistema Clínico (números 1 ao 3).

Na Clique Sistema Clínico o "quiebre" disparador principal de todas as conversações é a demanda telefônica de um usuário, cuja primeira solicitação é acolhida pelo técnico auxiliar de regulação médica, que em seguida mobiliza uma série de conversações que compõem a rede apresentada na Figura 2. A este fluxo denominou-se "conversações para atendimento ao usuário". Os nós principais desta rede são o médico regulador e as equipes de intervenção, que realizam uma série de ações baseadas no diálogo em prol da garantia da vida do usuário. O tipo de conversação predominante neste fluxo é a conversação para coordenação de ações. Entram em cena vários tipos de atos de fala, cumprindo distintos papéis no processo de coordenação de ações. Quando a fala vai do usuário em direção ao médico regulador ganham preponderância os atos de fala do tipo afirmação, já que normalmente o médico regulador realiza uma série de questionamentos que fazem com que o usuário descreva detalhadamente a situação em que se encontra. Tais afirmações feitas pelo usuário são o ponto de partida da regulação.

Há preponderância das declarações principalmente quando o fluxo do diálogo vai do médico regulador em direção à equipe de intervenção ou ao usuário. Neste sentido, as orientações do médico regulador constituem-se em ação concreta, modificam a realidade. As promessas também cumprem um papel fundamental. Freqüentemente a primeira atividade se inicia com um uma petição por parte do usuário, quando este, ao acionar a Central de Regulação de Urgências solicita atendimento. Também se observa a "dança das promessas", por exemplo, quando a equipe de intervenção diz "preciso remover este paciente" e o médico regulador se compromete a viabilizar uma vaga hospitalar para que a equipe possa encaminhar o paciente.

A análise da rede de conversações mostra que a principal interdependência a ser gerenciada no âmbito deste fluxo de conversações é o compartilhamento de recursos médico-assistenciais e o principal problema de coordenação é a indisponibilidade destes recursos no momento oportuno. Quando da indisponibilidade de recursos médico-assistenciais, surge outro "quiebre" que dispara outras conversações envolvendo outros atores e também um conteúdo diverso. Tal fenômeno representa o principal problema de coordenação para o serviço como um todo, uma vez que compromete o atendimento ao paciente.

A Figura 3 ilustra o surgimento deste "quiebre" e a seqüência de conversações que segue.

 

 

A partir da negativa de atendimento por parte do hospital, inicia-se um fluxo de conversações que vai do médico regulador ao secretário de saúde e que com freqüência mobiliza atores externos ao campo da saúde, como no caso os assessores do prefeito. A este novo fluxo denominou-se "expansão das conversações para atendimento ao usuário", que está representado na Figura 4, em linhas tracejadas.

A partir do momento em que o sistema clínico se vê incapaz de solucionar o problema, tal questão é solucionada pela articulação, mediada pelo diálogo, do sistema de governança, onde os atores, por meio de suas redes de relações, coordenam as ações com vistas à resolução do problema.

Esta expansão do fluxo de conversações envolve outra rede de relações, baseada no conhecimento e na informalidade entre profissionais e também gerentes de serviços (Figura 5).

 

 

O aspecto relacional dos processos de coordenação da atenção à saúde fica evidente quando a Coordenação Municipal 1 atribui o acesso do paciente ao fato de haver uma relação de amizade entre o coordenador e o médico presente no plantão da emergência. A conversação transcrita na Figura 6 permite compreender um pouco mais desta dinâmica.

 

 

Além do caráter relacional dos processos de coordenação, evidenciado na fala da Coordenação Regional quando se refere à importância e à diferença de se ter na direção de um dos hospitais uma "pessoa próxima" e que tem "ajudado muito", observa-se também o importante papel da negociação na coordenação das ações inter-regionais. A fala da Coordenação Municipal 1 sobre o modo pelo qual trabalhou junto ao hospital de seu município para facilitar a "abertura da porta de entrada" é bastante esclarecedora neste sentido.

Observou-se que há uma diferença importante na capacidade de cada Coordenador Municipal intervir junto aos hospitais. Nos hospitais municipais geralmente a interação é maior e os relacionamentos são mais estreitos, o que facilita o acolhimento dos pacientes provenientes do SAMU. No caso das cidades menores e com hospital municipal a situação é mais favorável ainda, uma vez que os profissionais, especialmente os médicos do SAMU e do hospital, se conhecem e até trabalham ou já trabalharam juntos.

Em geral predomina a dificuldade de interação com os hospitais de grande porte vinculados às esferas federal e estadual e aos hospitais privados, onde tanto a Central de Regulação de Urgências quanto os coordenadores municipais têm dificuldades para intervir (Figura 7).

 

 

O trecho acima mostra o quanto as interações entre hospitais e SAMU fazem diferença na resolução dos problemas de coordenação que se colocam cotidianamente. Há o reconhecimento de que se faz necessária uma discussão mais estreita entre a coordenação do SAMU e as equipes de emergência dos hospitais. Por outro lado, o relato da Coordenação Municipal 3 sobre as discussões ocorridas na sua cidade serve como exemplo da importância desta abordagem. Segundo suas considerações, na medida em que as equipes hospitalares tomam conhecimento, mediante um diálogo franco e aberto, daquilo que o SAMU evita de chegar até o hospital, passam a ter outra perspectiva e também outra atitude frente às equipes do SAMU.

Freqüentemente os problemas são solucionados em função de uma relação interpessoal prévia, que facilita o acesso do paciente atendido pelo SAMU a outros serviços. As interações são fortemente marcadas por experiências de relações pessoais anteriores. Atitudes e atos de disposição para ajudar, para trabalhar cooperativamente na resolução de problemas, costumam ser reconhecidos e geram melhores possibilidades de coordenação de ação. A reciprocidade desempenha um papel importante na coordenação de ações, como pode ser verificado na Figura 8.

 

 

Além dos abordados até aqui, os dados coletados revelaram outro problema, que dispara um fluxo de conversações que também envolve ligações entre a Clique Sistema Clínico e a Clique Sistema de Governança. Trata-se de problemas que surgem na interação entre Central de Regulação de Urgências e equipes de intervenção, como pode ser observado na Figura 9.

A partir de uma divergência entre a equipe de intervenção e a regulação quanto à necessidade de envio de ambulância para a resolução de uma demanda feita pelo usuário, surge outro fluxo de conversações que, assim como na "expansão das conversações para atendimento ao usuário", ultrapassa os limites da Clique Sistema Clínico e alcança sua resolução a partir da intervenção de outros atores. Tal fluxo foi denominado "conversações para atendimento ao usuário, com divergência entre regulação e intervenção" (Figura 10).

Este fluxo é mais restrito, geralmente limitando-se aos membros da Coordenação Regional e coordenadores municipais. A partir do momento em que o médico regulador enfrenta resistência por parte da equipe de intervenção, a saída acaba sendo acionar o coordenador médico. Quando este também encontra resistência, a rede de conversações segue em direção aos coordenadores municipais e ao coordenador regional, como indicam as linhas tracejadas (Figura 10).

Para entender este fluxo é importante considerar a estrutura organizacional do SAMU, que conta com as equipes de intervenção sediadas (e pagas) por cada município individualmente, fazendo com que, muitas vezes, a autoridade dos membros da Coordenação Regional não seja suficiente para garantir que os intervencionistas sigam a norma de sempre obedecer às determinações da regulação. Daí a freqüente articulação dos coordenadores municipais no âmbito desta rede de conversações.

Uma das resistências apresentadas pelos médicos da intervenção relaciona-se com a sua mobilização para atenderem pacientes de outros municípios, como é possível observar na Figura 11.

 

 

Foi possível observar ao longo do estudo que, tendo em vista a fragilidade jurídico-institucional do SAMU Metro II/RJ, o principal meio adotado para lidar com os problemas decorrentes da resistência dos interventores no atendimento aos usuários localizados em outros municípios foi a tentativa de construir, pelo discurso, uma identidade regional entre os coordenadores municipais, para que estes pudessem intervir nos seus municípios a partir de uma lógica regional e não municipalista.

 

Discussão

A coordenação representa o principal instrumento pelo qual os gerentes articulam e integram as várias pessoas e unidades dentro das organizações e integram suas organizações com outras. "Se as ligações não são efetivas, as organizações podem se tornar fragmentadas, fracionadas e isoladas, com concomitante declínio da performance" 10 (p. 235).

Segundo Hartz & Contandriopoulos 11 (p. 332), "num sentido mais amplo, a integração em saúde é um processo que consiste em criar e manter uma governança comum de atores e organizações autônomas, com o propósito de coordenar sua interdependência, permitindo-lhes cooperar para a realização de um projeto (clínico) coletivo".

Mas apesar desta constatação, são poucos os estudos que buscam apreender o modo como se dão estas interações. Predominam análises voltadas para medir a integração em termos de troca de recursos, de encaminhamentos de pacientes, de protocolos, mas poucos são os estudos voltados para a análise do papel da comunicação interpessoal e do modo como ela atua no interior do sistema.

Neste sentido, a análise do papel das redes de conversação na coordenação das ações no âmbito do SAMU Metro II/RJ aproxima-se de tendências recentes do campo da saúde, que enfatizam a emergência de uma perspectiva diferente na análise de processos de coordenação.

Safran et al. 12, por exemplo, chamam a atenção para o que denominam dimensões organizacionais de cuidados centrados no relacionamento. Tal perspectiva enfatiza a importância das relações interpessoais e da cultura de solidariedade para o sucesso organizacional e especialmente o papel de redes de conversações colaborativas.

Guittel 13,14 e Guittel & Weiss 15 enfatizam em seus estudos sobre a micro-dinâmica da coordenação entre serviços de saúde que certos mecanismos podem facilitar a coordenação, mas esta é fundamentalmente um processo de interação entre os participantes. Embora a coordenação possa se dar através de uma grande variedade de mecanismos, tais como programação de tarefas, padronização e estabelecimento de rotinas, estes não são suficientes em organizações onde prevalecem atividades que são reciprocamente interdependentes, onde há elevado grau de incerteza e onde o tempo é escasso, como é o caso da provisão de serviços de saúde e, especialmente, o caso da atenção às urgências.

Para dar conta deste padrão de interdependências, Guittel 13 tem advogado por uma determinada perspectiva da coordenação, à qual denomina Coordenação Relacional (Relational Coordination). Esta forma de coordenação diferencia-se de outras identificadas na teoria organizacional por referir-se mais às interações entre os participantes do que aos mecanismos que dão suporte a estas interações.

Segundo essa abordagem, a comunicação possui um papel preponderante. A Coordenação Relacional reflete o papel que a comunicação freqüente, oportuna, precisa e centrada na solução de problema tem nos processos de coordenação 13.

O estudo do caso SAMU Metro II/RJ corrobora tais afirmações. Neste caso, é a colocação em prática de um certo tipo de conversação, a conversação para coordenação de ações, animada a partir da utilização de atos de fala específicos, principalmente promessas e declarações, que movimenta a "roda" que interliga a interdependência, a coordenação e a integração. Observa-se assim a preponderância de uma Coordenação Dialógica na sustentação de processos de integração do SAMU Metro II/RJ. A Coordenação Dialógica é a interação em si, mediada pela palavra, e voltada para o gerenciamento de ações interdependentes por atores que somente podem realizar seus planos de forma interativa, com a colaboração do outro. Trata-se de uma perspectiva mais "relacional" da coordenação, em oposição às perspectivas puramente estruturalistas. As redes de conversações são processos mobilizadores que geram conexões solidárias.

A idéia de rede de conversações está presente também na abordagem de Teixeira 16 sobre o acolhimento em serviços de saúde. Para ele, o acolhimento tem uma perspectiva essencialmente comunicacional, onde a conversa é a substância principal das atividades de um serviço de saúde. Pode-se tomar a rede tecnoassistencial de um serviço como uma rede de conversações, onde cada nó da rede corresponde a um encontro, um momento de conversa envolvendo uma série de atividades técnicas específicas, inclusive técnicas de conversa. O autor conclui que o acolhimento-diálogo desempenha papel fundamental na dinâmica organizacional, redundando em encaminhamentos, deslocamentos, trânsitos pela rede assistencial, que são, em última instância, o resultado das decisões tomadas durante as conversações.

Também para Franco 17, a organização da atenção à saúde se dá fundamentalmente pelas relações, pelas conexões que se estabelecem entre pessoas que estão em situação e se formam em linhas de fluxos horizontais por dentro das organizações. Para o autor, as redes de serviços de saúde seriam sistemas abertos de conexão, cuja produção se dá sem que haja um eixo estruturado sobre o qual se organiza. São as relações que vão construindo o meio social em que se inserem os atores. A produção da atenção à saúde se dá, nesta perspectiva, a partir de múltiplas conexões e fluxos, que criam linhas de contato entre atores sociais que são a fonte de produção da atenção.

Fica evidente na análise das redes de conversação do SAMU Metro II/RJ que nos momentos em que os mecanismos estruturais de coordenação não dão conta da interdependência, é o componente relacional, dialógico, da coordenação que entra em cena, tornando possível solucionar situações críticas como a dificuldade de viabilizar o acesso de um paciente a um leito hospitalar.

Tal perspectiva também é evidenciada nos estudos de Faraj & Xiao 18, realizados em um centro de atendimento ao trauma nos Estados Unidos.

Nestas organizações, denominadas organizações de resposta rápida, os autores desenvolvem uma abordagem que enfatiza o que denominam coordenação da expertise e coordenação dialógica, uma vez que essas organizações são menos dependentes de arranjos estruturais de coordenação e são mais contingentes na integração do conhecimento.

O aspecto mais relevante desse trabalho é a conclusão de que em determinadas organizações, onde o conhecimento, a incerteza e a interdependência variável são características, as abordagens que enfatizam o desenvolvimento de mecanismos de coordenação pré-especificados não são adequadas 18. Nestas organizações os mecanismos de coordenação não são facilmente especificados e são altamente contingentes. Os estudos de Faraj & Xiao 18 dão suporte para uma conceituação relacional da coordenação como um fenômeno emergente, assim como a análise das redes de conversação no SAMU Metro II/RJ.

 

Considerações finais

A coordenação está no centro das discussões recentes sobre sistemas integrados de serviços de saúde, pois é o meio pelo qual são alcançados alguns dos objetivos do sistema, tais como a integralidade da atenção. Garantir o acesso e a continuidade, evitar a sujeição do paciente a procedimentos desnecessários, evitar a duplicação de procedimentos ou exames e agilizar o atendimento são alguns dos resultados esperados em sistemas com elevado grau de coordenação.

A coordenação é um processo essencialmente lingüístico. A análise das redes de conversação do SAMU Metro II/RJ permitiu verificar como determinadas conversações para coordenação de ação e os distintos atos de fala atuam para promover a coordenação e, principalmente, evidenciar o papel das relações interpessoais neste processo.

Acredita-se que a observação dos processos interativos pelos quais se dá a coordenação de ações em sistemas de serviços de saúde pode representar uma opção para o desenho de estudos nesta área. A análise, por meio da Análise de Conversação, dos atos de fala predominantes nas redes de conversação e dos modos pelos quais as pessoas envolvidas em processos de coordenação organizam as interações, é um caminho que pode ser explorado.

 

Colaboradores

J. C. Lima foi responsável pela concepção do trabalho, coleta e análise dos dados e pela redação do artigo.

F. J. U. Rivera participou da concepção do projeto e análise e interpretação dos dados.

 

Agradecimentos

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento.

 

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Correspondência:
J. C. Lima
Diretoria de Planejamento Estratégico
Fundação Oswaldo Cruz
Rua Senador Vergueiro 238, apto. 238
Rio de Janeiro, RJ 22230-001, Brasil
juliano@fiocruz.br

Recebido em 14/Jan/2009
Versão final reapresentada em 04/Jul/2009
Aprovado em 10/Nov/2009

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br