DEBATE DEBATE
Maria do Carmo Matias Freire
Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil. mcmfreire@yahoo.com.br
O convite para participar do presente debate imediatamente me remeteu a uma leitura que fiz no ano passado e que ainda ressoa quase que cotidianamente em minha vida: a do livro O Que É Científico?, de Rubem Alves 1. A idéia do livro surgiu da indignação de um colega do autor, cujo trabalho havia sido recusado para publicação com o argumento de que não era científico.
Abordando a questão da validade científica na pesquisa, o artigo Validade Científica de Conhecimento Epidemiológico Gerado com Base no Estudo Saúde Bucal Brasil 2003 e aquele que o motivou merecem aplausos por terem levantado um importante debate no campo da saúde coletiva no país, por vezes acomodado em suas idéias e práticas. De que outro modo teríamos estas interessantes reflexões sistematizadas e publicadas? Bem, o propalado levantamento nacional de saúde bucal - Projeto SB Brasil 2003 - foi desafiado: não apresenta dados válidos e, portanto, não é científico? "As inquisições de hoje, não é mais a Igreja que as faz" 1 (p. 13). Os autores do supracitado artigo, todos docentes e pesquisadores de universidades públicas do país e envolvidos diretamente no SB Brasil 2003 ou que utilizaram seu banco de dados para a elaboração de artigos científicos, registram com ética e elegância seu potencial conflito de interesses. De fato, esta manifestação era de se esperar, seguindo a lógica da nossa cultura que preza a auto-afirmação e considera as concessões como fraquezas ou derrotas. Por outro lado, a inquietação provavelmente causada pelo artigo de Queiroz et al. 2 entre aqueles envolvidos nas questões da saúde bucal coletiva no país, em especial os gestores, merece resposta. Narvai et al. o fazem na forma de artigo científico, cujos argumentos, utilizando evidências na área da saúde e das artes plásticas, consideramos bastante inteligentes. A nós coube comentar o presente artigo-resposta, tarefa mais fácil, contudo não menos perigosa.
As argumentações apresentadas no artigo são difíceis de serem refutadas e em seu conjunto produzem um rico ensaio sobre a complexidade da epidemiologia e suas várias dimensões, raramente abordadas nas publicações. Parabenizamos os autores pela escrita refinada e agradável, que em suma parece apontar para o seguinte: os dados produzidos pelo SB Brasil 2003, apesar de apresentarem falhas no plano amostral, que podem comprometer sua validade, são (ou devem ser) úteis para subsidiar as ações do Sistema Único de Saúde. Ao mesmo tempo, ressaltamos a afirmação de Altman: "o mau uso da estatística é antiético" 3 (p. 477). Sem dúvida, todo estudo deve ser precedido de um cuidadoso planejamento, incluindo abordagens estatísticas apropriadas quando necessárias, sob pena de produzirmos um "saber quantitativo duvidoso" 1 (p. 74). Sabemos disso enquanto pesquisadores, mas freqüentemente nos deparamos com impasses nesta área, sugerindo que há necessidade de uma aproximação mais adequada e qualificada entre a epidemiologia e a bioestatística, sem supervalorizar a última 3.
Com relação à estrutura e conteúdo do texto, saliento alguns aspectos. Na seção Procedimentos Metodológicos, consta que a técnica utilizada para a análise (documental) do artigo foi análise temática e são evidenciadas nove categorias de temas. Entretanto, nos Resultados e Discussão, os tópicos abordados não seguem tais categorias temáticas. Não seria o presente trabalho um artigo de opinião ao invés de pesquisa documental?
Na tentativa de demonstrar o avanço da metodologia utilizada no Projeto SB Brasil 2003, os autores afirmam que "as experiências anteriores de estudos nacionais foram centralizadas e os pontos de coleta de dados limitados, não criando oportunidades para envolver os diferentes setores (universidades, serviços, entidades, associações) e instâncias de nível municipal e estadual" (p. 649). Acredito que este tipo de análise deve considerar o contexto do momento histórico da produção dos projetos, tanto em termos das políticas vigentes quanto em termos dos conhecimentos científicos disponíveis e suas formas de divulgação, sob pena de se ignorar os esforços das gestões anteriores. Impossível não destacar aqui o primeiro estudo de abrangência nacional realizado no Brasil em 1986 pelo Ministério da Saúde 4. Numa leitura (que recomendo) dos Agradecimentos e Apresentação do relatório é possível identificar em diversas nuances o reconhecimento dos entraves de ordem operacional e financeira para realização deste estudo. Consta ainda neste documento a participação de professores e pesquisadores das universidades brasileiras no processo de planejamento e de profissionais dos serviços públicos odontológicos, responsáveis, a exemplo do SB Brasil 2003, pela estruturação dos trabalhos e coleta dos dados. A participação destes sujeitos ocorreu também no levantamento realizado em 1996.
Ainda na argumentação sobre o SB Brasil 2003, as "dificuldades que marcaram o planejamento e a realização do levantamento" (p. 649), incluindo as questões políticas e de gerenciamento, deveriam ter sido mais bem explicitadas. Ao contrário, os autores descrevem os problemas relacionados às equipes de coleta dos dados, caracterizados ao mesmo tempo como fundamentais para a realização do estudo e como fatores dificultadores para a conclusão do mesmo.
Acrescento aos argumentos apresentados pelos autores a importância dos dados do SB Brasil 2003 para a confirmação das desigualdades sociais em saúde bucal existentes entre as regiões brasileiras. Seriam essas desigualdades apenas aparentes, frutos de levantamentos em que o processo de amostragem não atendeu a todos os rigorosos critérios estatísticos de amostragem e, portanto, não são "científicos"? A situação seria diferente se o processo tivesse sido conduzido como preconizam Queiroz et al.? Por fim, este debate revela a face austera da ciência, que por vezes em nome do "mais elevado rigor científico", distancia-se daquele que é (deve ser) o objeto de nossas reflexões e ações: o ser humano, que traz consigo o sofrimento da saúde negligenciada e para o qual pouco retorna de concreto para torná-lo mais feliz. Afinal, qual é a utilidade dos dados dos estudos epidemiológicos além da produção de artigos científicos válidos?
1. Alves R. O que é científico? São Paulo: Edições Loyola; 2007.
2. Queiroz RCS, Portela MC, Vasconcellos MTL. Pesquisa sobre as Condições de Saúde Bucal da População Brasileira (SB Brasil 2003): seus dados não produzem estimativas populacionais, mas há possibilidade de correção. Cad Saúde Pública 2009; 25:47-58.
3. Altman DG. Practical statistics for medical research. London: Chapman & Hall; 1996.
4. Fundação Serviços de Saúde Pública, Divisão Nacional de Saúde Bucal, Secretaria Nacional de Programas Especiais de Saúde, Ministério da Saúde. Levantamento epidemiológico em saúde bucal: Brasil, zona urbana, 1986. Brasília: Centro de Documentação do Ministério da Saúde; 1988.