ARTIGO ARTICLE
Coleito no primeiro semestre de vida: prevalência e fatores associados
Bed-sharing in the first semester of life: prevalence and associated factors
Roberto Mario Silveira IsslerI; Elsa Regina Justo GiuglianiI; Paulo José Cauduro MarosticaI; Fabiane NietoII; Adriana Rosa MilaniII; Anelise Schifino WolmeisterII; Mateus Breitenbach SchererIII; Daniela Oliveira PiresII; Marcia Nunes OliveiraIV; Danusa Graeff Chagas PintoV; Bianca Fernandes SarturiI; Luis Felipe Silva SmidtI; Manoela Chitolina VillettiI
IFaculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil
IIHospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil
IIIHospital São Vicente de Paulo, Porto Alegre, Brasil
IVPrefeitura Municipal da Cachoeirinha, Cachoeirinha, Brasil
VHospital Universitário de Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
RESUMO
Esse estudo tem o objetivo de verificar a prevalência de coleito de mães e lactentes e fatores associados em população urbana no Sul do Brasil. Trata-se de estudo transversal aninhado em uma coorte de 233 duplas de mãe-filho selecionadas na maternidade do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Quando a criança completava 3 e 6 meses de vida, coletavam-se, em visitas domiciliares, dados sobre prática do coleito e variáveis associadas. O desfecho principal foi o compartilhamento do espaço de dormir entre a criança e sua mãe. Variáveis com p < 0,2 na análise bivariada entraram em modelo de regressão de Poisson. Aos 3 e 6 meses, 31,2% e 28,5% das crianças dormiam junto com suas mães à noite. Aos 3 meses, a prevalência foi maior entre mães sem companheiro (RP: 1,56; IC95%: 1,01-2,39) e em coabitação quando com a avó materna da criança (RP: 1,70; IC95%: 1,09-2,65). A prevalência de coleito aos três meses na população estudada é alta, associando-se à mãe sem companheiro e coabitação com a avó materna.
Coleito; Criança; Cuidado do Lactente
ABSTRACT
The aim of this study was to verify the prevalence of bed-sharing and factors associated with this sleeping environment in an urban population in Southern Brazil. This was a cross-sectional nested cohort study with 233 mother-infant pairs selected at the maternity ward of the University Hospital in Porto Alegre. When the infant was 3 and 6 months old, home visits were performed to collect data on bed-sharing and associated variables. The main outcome was the place shared by the mother and infant for sleeping. Variables with p < 0.2 were included in a Poisson regression model. At 3 and 6 months, 31.2% and 28.5% of infants slept with their mothers at night. At 3 months, prevalence was higher for single mothers (PR: 1.56; CI: 1.01-2.39) and mothers sharing the home with the infant's maternal grandmother (PR: 1.70; CI: 1.09-2.65). Prevalence of bed-sharing at 3 months was high and associated with single mothers and sharing the home with the infant's maternal grandmother.
Bedsharing; Infant; Infant Care
Introdução
Uma variedade de arranjos em relação ao ambiente de dormir das crianças é observada no mundo 1,2. Diversos fatores, como ambiente físico, tamanho da família, nível socioeconômico, aspectos culturais, hábitos alimentares do bebê e comportamentos quanto aos cuidados com as crianças pequenas, entre outros, determinam onde os pais irão colocar seus filhos para dormir nos primeiros anos de vida 3,4,5,6,7. Possivelmente, sob o ponto de vista biológico e evolutivo, dormir próximo de alguém oferece vantagens psicológicas e psicossociais ao frágil bebê humano 8.
A prevalência de coleito de mães e crianças varia consideravelmente, de 2% a 88%, segundo estudo realizado em países das Américas, Europa, Ásia e Oceania 1. Nos Estados Unidos, observou-se um aumento de 5,5% para 12,8% na prevalência desse arranjo para dormir entre os anos de 1993 e 2000 9. No Brasil, onde estudos nessa área são escassos, observaram-se prevalência de 46% no final do primeiro ano em Passo Fundo 10 e de 44% em Pelotas 11, ambas as cidades no Rio Grande do Sul.
Tem sido descrita maior prevalência de coleito em mães de renda mais baixa 9,10,11, negras 11, mais jovens 3,9,10, com menor escolaridade 9,10, solteiras 3,12, com maior paridade 3,10 e que amamentam o filho 13,14, entre outras.
A prática de coleito entre pais e seus filhos é controversa. Entre os aspectos favoráveis dessa prática constatados, incluem-se freqüência maior de amamentação 15; maior interação física entre mãe e filho, fortalecendo o vínculo entre eles 16; e despertar mais freqüente de mães e crianças, com possível proteção de lactentes em risco de morte súbita 17. Por outro lado, há relatos de que dividir a cama com os pais aumenta o risco de morte súbita do lactente 18, especialmente se ocorrer em um sofá 19.
Uma vez que a orientação sobre o coleito tem gerado controvérsias na literatura, é importante conhecer sua prevalência em nosso meio e os fatores a ele associados, objetivos deste estudo.
Métodos
Trata-se de estudo transversal aninhado em uma coorte.
A amostra foi selecionada no alojamento conjunto do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) no período de setembro de 2005 a setembro de 2006. O HCPA é um hospital-escola de grande porte, com aproximadamente 90% dos atendimentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), sendo também referência para atendimento de recém-nascidos de alto risco. A amostra constituiu-se de todas as mães do período estudado, residentes em uma área previamente delimitada do Município de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul, e seus recém-nascidos hígidos e que tiveram alta conjuntamente de dois a três dias após o nascimento.
A cidade de Porto Alegre possui cerca de 1,4 milhão de habitantes. A área delimitada, onde residem cerca de 40% da população do município, compreende bairros mais centrais, de fácil acesso, com baixos índices de violência urbana, incluindo famílias pertencentes a diferentes estratos sociais 20. Não foram incluídas na amostra as mães com problemas de saúde física ou mental (deficiência física, depressão ou esquizofrenia de difícil tratamento, por exemplo) que comprometessem os cuidados de rotina de seus filhos ou que, por algum outro motivo, tivessem de ser afastadas deles.
Na manhã da alta da maternidade, após assinar termo de consentimento informado, as mães respondiam a questões sobre variáveis socioeconômicas e demográficas, história gestacional e sono da criança. Quando a criança completava três e seis meses de vida, acadêmicos de medicina previamente capacitados realizavam visitas domiciliares em que as mães respondiam a um questionário sobre rotinas associadas ao sono do filho e a questões relativas aos cuidados da criança. Não foi fornecida nenhuma informação quanto a evitar ou promover o coleito.
O desfecho principal do estudo foi a ocorrência de coleito, definido como o compartilhamento do espaço de dormir da mãe com o filho, por ocasião da visita aos três e seis meses de idade, por ser este período de elevada prevalência da síndrome da morte súbita do lactente 21,22,23. As variáveis de exposição foram: em relação à criança - sexo; em relação à mãe - idade, situação conjugal, escolaridade, paridade, fumo na gestação, coabitação com a avó materna e aleitamento materno aos três e seis meses. Aleitamento materno foi definido como a situação na qual a criança recebe leite materno diariamente, independentemente de receber ou não outros alimentos 24.
Neste estudo, coleito foi definido como o compartilhamento do espaço de dormir da mãe com seu filho 6.
Para estimar o tamanho da amostra, os seguintes parâmetros foram considerados: poder de 80%, intervalo de 95% de confiança (IC95%), razão de chance de 2,7 e prevalência de coleito nos primeiros três meses de vida de 44% 10. O número mínimo de sujeitos variou de 135 a 188, dependendo da prevalência da exposição aos diferentes fatores de risco que foram estudados (15% a 61%).
Para testar associações entre algumas variáveis materno-infantis com o desfecho, foi aplicado o teste de qui-quadrado, considerando-se estatisticamente significativos os resultados com p < 0,05. As variáveis com um p < 0,2 na análise bivariada foram incluídas em um modelo de análise multivariada (regressão de Poisson). O programa estatístico SPSS versão 12.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos) foi utilizado para análise dos resultados.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do HCPA.
Resultados
No período de coleta de dados nasceram 4.372 crianças, incluindo prematuros e bebês a termo. Considerando-se os critérios de inclusão, a amostra constituiu-se de 233 mães e seus recém-nascidos. Cinco delas se recusaram a participar, restando 228 mães. Dessas, 36 (15,8%) foram perdidas no seguimento aos três meses (recusa em participar: 3; mudança para outra cidade: 18; não residentes no endereço: 15), sendo que mais 6 (2,6%) não foram encontradas aos seis meses. Assim, no total, 18,4% de duplas mãe-criança foram perdidas ao final do seguimento, o que resultou em 192 duplas visitadas aos três meses e 186 aos seis meses. Não houve perdas por morte súbita entre crianças acompanhadas. Não temos informações sobre aquelas famílias que não foram encontradas no endereço ou mudaram para outra cidade.
Em relação ao local de dormir na visita aos três meses, 60 crianças (31,2%; IC95%: 24,64-37,75) dormiam na cama com os pais, ou somente com a mãe, durante a noite. Dessas, 50 (83%) dormiam do lado da mãe. Aos seis meses, a prevalência de coleito foi de 28,5% (53/186). A proporção de crianças que dormiam ao lado da mãe foi semelhante à dos três meses (43/53; 81%).
A Tabela 1 mostra que, na análise bivariada, aos três meses houve associação estatisticamente significativa entre o desfecho e ausência de companheiro e coabitação com a avó materna. Aos seis meses a situação conjugal da mãe manteve significância estatística com o desfecho. Não houve associação entre tabagismo da mãe e prevalência de coleito aos três e aos seis meses.
Outras duas variáveis com p < 0,2 (idade e escolaridade da mãe) foram incluídas no modelo de regressão múltipla, mediante cálculo de razão de prevalências, cujos resultados são mostrados na Tabela 2. Quando analisadas por esse modelo, a falta de companheiro da mãe e a coabitação com a avó materna da criança mantiveram-se associadas significativamente com a prática do coleito aos três meses. Nesses casos, observou-se probabilidade 1,6 e 1,7 vezes maior, respectivamente, de a mãe dormir com seu filho à noite na mesma cama. Utilizando o mesmo modelo, aos seis meses apenas a idade da mãe manteve associação significativa com o desfecho (dados não apresentados).
Discussão
Este estudo mostrou uma prevalência de coleito de 31,2% aos três meses de vida da criança. No estudo de Passo Fundo 10, ela foi de 44% aos três meses e, no de Pelotas 11, de 45% aos 12 meses. É possível que a maior prevalência de coleito nessas cidades se deva ao fato de estarem localizadas no interior do estado, onde o hábito de dormir junto com os pais talvez seja mais freqüente do que em um centro urbano maior, como Porto Alegre. Além disso, aqueles estudos foram realizados com coortes de crianças nascidas naqueles municípios no período de um ano, enquanto que o presente estudo investigou um grupo de mães que viviam em uma região delimitada do Município de Porto Alegre e que tiveram seus filhos em um único hospital da cidade. É possível que a inclusão de uma amostra da população de mães provenientes de outros hospitais de Porto Alegre pudesse originar resultados diferentes.
Entre os fatores estudados, as variáveis de interesse que mantiveram associação com o coleito na análise multivariada foram a situação conjugal da mãe - sem companheiro - e o fato de coabitar com a avó materna da criança. Outros estudos também mostraram associação entre mãe sem companheiro e coleito 3,14,25, achado, no entanto, não observado por outros autores 13. Na população aqui estudada, a falta de um companheiro com quem compartilhar o local de dormir e a responsabilidade de cuidar da criança parecem favorecer o arranjo da mãe e seu filho dormirem na mesma cama.
Há relatos de que a avó materna pode influenciar na posição de dormir da criança 26, mas desconhecem-se referências sobre a associação entre coabitar com a avó materna e coleito da mãe e sua criança. Possivelmente, a relação entre coabitação da mãe com a avó materna e coleito esteja associada à limitação de espaço físico (superfícies ou cômodos separados na casa) para mãe e filho dormirem separados. A influência da avó materna na decisão da mãe quanto ao local da criança dormir não foi investigada neste estudo.
Pesquisas na Inglaterra e nos Estados Unidos mostraram uma forte associação do coleito com maior prevalência do aleitamento materno 13,15,27, sendo, sob esta análise, o coleito considerado uma prática recomendável. A associação causal entre aleitamento materno e coleito é questionada por alguns autores, já que mães que desejam amamentar possivelmente também prefiram praticar o coleito 27. O delineamento dos estudos não permite esclarecer se o coleito promove o aleitamento materno ou vice-versa 6,27. Na população estudada, não se observou associação entre a adoção do coleito e a prevalência de aleitamento. As altas taxas de aleitamento materno aos três meses (86%) e aos seis meses (74%) aqui observadas, diferentemente do que ocorre na Inglaterra e nos Estados Unidos, podem ter concorrido para estes achados discordantes. As mães referem que escolhem esse arranjo para dormir porque é mais natural, facilita o aleitamento e estimula o vínculo com o filho 16. Um estudo recente com uma coorte de crianças de Pelotas, mostrou que a prática do coleito aos três meses era um fator de proteção contra o desmame aos 12 meses de vida da criança 28. Esse achado ocorria de maneira independente do tipo de aleitamento aos três meses de vida e o efeito protetor era maior para aquelas crianças em amamentação exclusiva.
Certamente outros fatores sociais e culturais não avaliados neste estudo influenciam e determinam a prática do coleito. Uma pesquisa realizada no Japão, na década de 60, mostrou que aos 15 anos de idade uma criança daquele país tinha 50% de possibilidade de dormir com um ou ambos os pais 29.
Existem divergências quanto aos benefícios e riscos do coleito. Tem sido descrita associação entre síndrome da morte súbita do lactente e coleito, especialmente entre crianças que dormem com seus pais em um sofá 19, filhos de mães mais jovens 12 ou filhos de mães fumantes ou que ingeriram bebida alcoólica 30. Se tal associação existe, fica difícil explicar por que em locais onde a prevalência do coleito é elevada, como em Hong Kong, por exemplo, a taxa de mortalidade por morte súbita é baixa (0,3/1.000) 31. Além do hábito de colocar a criança para dormir em posição supina, é possível que outros fatores, como baixa prevalência de tabagismo entre as mães, maior estabilidade social, apoio familiar e reduzido número de casamentos de mulheres jovens expliquem esse achado. Sendo assim, outros fatores associados ao coleito podem interferir, positiva ou negativamente, na exposição ao risco para síndrome da morte súbita do lactente. Uma limitação do presente estudo foi que o uso de álcool ou drogas ilícitas pela mãe não foi avaliado.
Para os que defendem o coleito, a prática é fundamental para o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança 2, promove o aleitamento materno 32 e o despertar mais freqüente da criança (o que seria um fator de proteção para a síndrome da morte súbita do lactente) 17 e tem efeitos positivos duradouros até a adolescência e a idade adulta 2. Segundo McKenna et al. 33 (p. 40A), "nenhum arranjo para dormir está associado com um resultado único para todos os bebês em todas as circunstâncias, o que aponta para a necessidade de os médicos fazerem recomendações abrangentes que contemplem a diversidade de interações e condições a que as crianças possam estar expostas durante a noite". Afinado com essa linha de pensamento, Blair 34 (p. 31A) afirma que "seria impreciso e muito simplista apresentar uma afirmação em preto ou branco em relação ao coleito".
Antes de contra-indicar formalmente o coleito e "demonizar a cama dos pais" 35, é recomendável orientar os pais sobre situações que, associadas ao coleito, colocam a criança em maior risco para morte súbita, como adormecer junto com a criança em um sofá ou consumir álcool ou drogas antes de deitar 35.
Os profissionais de saúde devem ser cautelosos quanto a promover ou desaconselhar o coleito, considerando também a preferência dos pais, o contexto cultural e ambiental, e a estrutura familiar, já que essa prática pode trazer tanto benefícios como riscos, de acordo com certas particularidades desse arranjo para dormir.
Colaboradores
R. M. S. Issler contribuiu com a concepção e projeto, gerenciamento, execução da coleta de dados e seguimento dos pacientes, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada. E. R. J. Giugliani e P. J. C. Marostica participaram da concepção e projeto, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada. F. Nieto, A. R. Milani, A. S. Wolmeister, M. B. Scherer, D. O. Pires, M. N. Oliveira, D. G. C. Pinto, B. F. Sarturi, L. F. S. Smidt e M. C. Villetti participaram da concepção e projeto, gerenciamento, execução da coleta de dados e seguimento dos pacientes, análise e interpretação dos dados e redação do artigo.
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Correspondência:
R. M. S. Issler
Faculdade de Medicina
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Rua Liberdade 433, apto. 402
Porto Alegre, RS - 90420-090, Brasil
robertoissler@terra.com.br
Recebido em 10/Nov/2009
Versão final reapresentada em 13/Jan/2010
Aprovado em 11/Mar/2010