DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Maio et al.

 

Debate on the paper by Maio et al.

 

 

Leticia Pinheiro

Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. leticiap@puc-rio.br

 

 

As faces de Jano e a introdução da questão racial na agenda da OPAS

É bastante conhecida a metáfora das faces de Jano, Deus romano representado por duas cabeças viradas para lados opostos. No entanto, enquanto para alguns essa imagem sugere paralelismo, duplicidade ou mesmo ambigüidade; para outros, ela indica término e começo. E é justo nessa diferença que parece residir o tema do artigo em tela - afinal, o que revela a introdução da questão racial na agenda da OPAS? No seio dessa discussão, os autores apontam para o papel central desempenhado pelo modo como essa questão entrou na agenda dessa Organização. Nesse particular, o artigo revela o que me parece ser uma tensão presente na avaliação sobre a interação entre a OPAS e a pluralidade de agências intergovernamentais e privadas atuantes no tema da etnicidade e da saúde. A tensão se encontraria na dificuldade do diagnóstico dos resultados dessa interação, ou seja, se ao fim e ao cabo ela trouxe retrocessos ou avanços. Sem a pretensão de resolver essa equação, cuja complexidade se explica tanto pelas características da realidade contemporânea em que os vetores que conformam os processos e as decisões políticas são multicausais como pela conotação política que a ênfase sobre um ou outro vetor traz consigo, gostaria apenas de sublinhar alguns pontos do artigo que mostram a relevância do debate sobre o tema e a propriedade com que foi abordado pelos autores.

Inicialmente, considero ter sido muito feliz a escolha da contribuição de Finnemore 1 para sustentar a interpretação das organizações intergovernamentais como atores e arenas - nos termos utilizados pelos autores -, detentoras de interesses e formuladoras de normas, mas igualmente alvos de interesses e normas a elas exógenas, oriundas de um universo mais amplo. Com essa opção, os autores demarcam, desde o início, o diálogo e a interação entre agente e estrutura (seja a OPAS o agente perante uma estrutura institucional e normativa mais ampla, seja ela própria a estrutura a interagir com agentes a ela endógenos ou exógenos).

No universo da construção de uma política de ação afirmativa em saúde no seio da OPAS, como o artigo demonstra, dois foram os atores principais - instituições intergovernamentais de tipos distintos e organizações privadas. Embora de modo imperfeito, instituições intergovernamentais formulam coletivamente políticas de natureza pública e, neste sentido, o suposto é que sejam mais universais no seu alcance - este é o caso da OPAS. Embora também possam ser classificados como OIs, o Banco Mundial e o BID - novos atores no campo da saúde internacional -, refletem na definição de suas políticas, como bem notado no artigo, o maior poder de agenda que seus principais mantenedores possuem em função de seus privilégios no sistema de votação (nos dois casos, os Estados Unidos são o principal mantenedor). Como resultado, há uma tendência à concentração de interesses de alguns países sobre os demais, desta forma revelando um déficit democrático na escolha da orientação a ser implantada. Por fim, ainda que possamos admitir eventual construção de interesses por um viés mais plural, instituições privadas, pela sua própria condição, representam interesses privados - este é o caso das fundações como Bill & Melinda Gates, Rockfeller e Ford. A título de nota, lembro que por essa razão há nos círculos governamentais um debate sobre os critérios de escolha dos atores não estatais que deveriam participar da formulação das políticas públicas: se por sua alegada representatividade, de resto difícil de comprovar, ou se por sua competência técnica ou conhecimento especializado no tema em debate, aspecto este mais mensurável.

O artigo então esclarece que, antes da questão racial entrar na agenda da OPAS, a instituição incluía em sua pauta uma política voltada para a saúde das populações indígenas. Assim, os autores demonstram que, ao encontrar-se com a reflexão da OPAS sobre a questão indígena já presente no rol de políticas desta instituição, a agenda racial ganhou novo encaminhamento e, mais, terminou contribuindo para a formulação de uma concepção mais abrangente, menos seletiva, de problemas envolvendo saúde e etnia. Afinal, num limite, a questão indígena também poderia ser categorizada como um tipo de focalização/seletividade. O que quero destacar é que, embora a relação entre raça e saúde tenha entrado na agenda da OPAS por meio da ação de organizações privadas e de agências intergovernamentais com déficit democrático, a isto não corresponde dizer que, ao fim e ao cabo, ela tenha sido encaminhada pela OPAS tal como ali chegou. No quadro cognitivo mais universalista da instituição buscou-se relativizar a focalização, pensando a relação entre raça e saúde num contexto mais amplo, como é demonstrado com a citação do documento Etnicidade e Saúde que se refere aos "grupos excluídos historicamente". Ou seja, buscou-se discutir a questão racial num contexto mais universalista que a concebe como parte da discussão sobre a eqüidade em saúde.

É nesse sentido que gostaria de retornar à metáfora inicial deste comentário, sugerindo que o que melhor se aplica ao caso discutido pelos autores é a interpretação das faces de Jano que sublinha fim e começo. E mais, é igualmente nessa chave que a concepção das organizações intergovernamentais simultaneamente como atores e arenas, com base em Finnemore, se aplica de modo muito apropriado: ao mesmo tempo em que são permeáveis a interesses diversos, são elas próprias produtoras de realidades, resultando em algo distinto, que fecha um ciclo e inicia um novo.

Um último comentário ao artigo refere-se à menção ao tema da etnicidade e saúde na agenda da política externa brasileira, assim como da interação entre a OPAS e o governo brasileiro apontada pelos autores. Embora correta e compreensível como ilustração, a referência não me parece necessária. Se não se trata de um artigo sobre a expressão dessa questão no Brasil ou sobre a contribuição específica deste país neste debate, não me parece que a referência seja apropriada. E se a relação entre os estados nacionais e a OPAS é, de fato, um tema fundamental para o melhor entendimento do tema, exemplos de outros países deveriam ter sido incluídos. Por fim, cabe notar que embora igualmente correta, a referência ao fato dessa inserção na agenda brasileira estar vinculada a uma redefinição da estratégia de inserção internacional do país, chamada no artigo de "autonomia pela integração", eu recomendaria o uso do termo "autonomia pela participação" 2.

Embora ambos sejam construtos do discurso diplomático, o primeiro - integração - por ter sido empunhado pelo chanceler à frente desta própria redefinição política 3, concede ao mesmo uma conotação mais política que conceitual.

 

1. Finnemore M. National interests in international society. Ithaca: Cornell University Press; 1996.         

2. Fonseca Jr. G. A legitimidade e outras questões internacionais: poder e ética entre as nações. São Paulo: Editora Paz e Terra; 1998.         

3. Lampreia LF. A política externa do governo FHC: continuidade e renovação. Revista Brasileira de Política Internacional 1998; 42:5-17.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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