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Marcos Chor Maio; Fernando A. Pires Alves; Carlos Henrique Assunção Paiva; Rodrigo Cesar da Silva Magalhães
A oportunidade de submeter nosso artigo às críticas de Leticia Pinheiro, Gilberto Hochman, Moisés Goldbaum e Celia Almeida é uma ocasião singular para uma releitura refletida de nosso próprio trabalho e para o seu cotejo com outras leituras possíveis. Somos especialmente gratos por esta oportunidade.
Nosso artigo pretendeu analisar a gênese de uma política de ação afirmativa de viés racial no terreno da saúde, no âmbito da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Procuramos identificar o processo de emergência da necessidade de políticas voltadas para a população negra no interior da organização, em diálogo com um contexto institucional mais geral, relevante no domínio da saúde internacional. Buscamos, ao final, discutir as formas pelas quais a organização respondeu a essas demandas.
Para atender a esses objetivos, inspirados pelas abordagens de Marta Finnemore e pelas análises do institucionalismo histórico, adotamos uma perspectiva que considera a OPAS, duplamente, como uma arena de negociação e como ator social relevante, inscrita em um contexto normativo, em um quadro de referências institucionais de caráter mais geral 1,2. Ao fazê-lo, indicamos que uma organização como a OPAS está tanto exposta à formulações de origens múltiplas quanto é capaz de produzir proposições originais, eventualmente vocalizando interesses endógenos aos quadros da organização. Destacamos, ainda, que os eventuais interesses internos tendem a manifestar-se em um ambiente também concorrencial.
Estamos convencidos da pertinência dessa abordagem e Pinheiro, Hochman, Goldbaum e Almeida, em geral, nos acompanham. Seu mero enunciado, como indica Hochman, evidentemente, não basta por si mesmo, apenas se realizando no desenvolvimento da análise. Todavia, vale ressaltar, ela nos parece especialmente adequada para tratar de instituições à semelhança da OPAS, sugerindo mais complexidade do que comportamento institucional monolítico. Ela admite, inclusive, observar a forma pela qual, uma vez definida a política, a organização seja capaz - como de fato o é - de ativamente intervir na realidade, tecendo novas redes de relações e interesses, eventualmente de modo plural, segundo a diversidade dos atores e redes institucionais mobilizados por uma dada agenda.
Almeida problematiza os elementos por nós mobilizados para contextualizar a emergência de uma ampla agenda de políticas sociais a partir dos anos 1990. Sua perspectiva de "conjuntura mundial" refere-se, em essência, à dimensão política do neoliberalismo como componente privilegiado de um contexto capaz de ordenar a vida pública nacional e internacional. Reconhecemos que a hegemonia neoliberal, no período, impôs constrangimentos decisivos à agenda de políticas sociais. Não obstante, essa hegemonia é insuficiente para determinar o conteúdo dessas políticas. Assim, optamos por enfatizar os "elementos contextuais críticos" tendo em vista a emergência de uma pauta de recorte racial no âmbito de um organismo internacional especializado em saúde, a OPAS.
Sem prejuízo de processos genéticos eventualmente mais extensos no tempo - presentes inclusive na própria obra citada de Finnemore 1 -, nos pareceu pertinente, para um enquadramento institucional do nosso objeto, articular: (1) a redução do protagonismo do Estado e de suas agências na formulação e condução das políticas sociais; (2) a emergência de uma plêiade de novos atores, infra e extra-estatais, no cenário internacional; (3) o enfraquecimento relativo dos organismos multilaterais frente aos bancos internacionais de desenvolvimento e às fundações privadas; (4) a emergência de um novo movimento social constituído a partir de matrizes identitárias múltiplas, nos marcos do processo de redemocratização das sociedades latino-americanas. Tais componentes configuram um ambiente singular para o surgimento de uma política de recorte racial no campo da saúde.
Como partícipe ativo de uma cena internacional assim configurada, mobilizando seus componentes doutrinários, como lembra Goldbaum, sua expertise técnica, indagamos a respeito do papel da OPAS na emergência de orientações e políticas de ação afirmativa racializadas. Em nossa resposta a essa questão, indicamos que a Organização, sem dúvida, recepciona enunciados formulados externamente. Todavia, longe de ter sido apenas agendada ou ter se limitado somente a responder a certas recomendações e exigências de "poderosas transnational advocacy networks", a OPAS articulou a atenção voltada para segmentos sociais específicos a formulações de viés universalista, como estratégia orientada para eqüidade em saúde. Ao fazê-lo, a Organização efetivamente atuou como agente difusor.
Cabe destacar também, em diálogo com Hochman, que as transnational advocacy networks contaram com a participação ativa de funcionários da OPAS. A socióloga Cristina Torres, consultora do Programa de Políticas Públicas e Saúde (PPPS) da Divisão de Saúde e Desenvolvimento Humano da OPAS, é um exemplo a ser invocado. Ela não só esteve presente na Conferência de Santiago (2000) - na qual a OPAS foi demandada a incorporar a questão racial em suas políticas - como também publicou diversos artigos sobre as relações entre etnicidade e saúde, com destaque para a situação dos grupos negros. Mais do que isso, Torres foi a responsável pela elaboração de documentos da Organização, que tinham como objetivo instrumentar a OPAS para essa questão e organizar sua intervenção externa.
A esse respeito, e atendendo a uma indagação de Goldbaum, salientamos que a OPAS foi receptiva às demandas dos movimentos sociais, no contexto de democratização das sociedades latino-americanas. Cabe ressaltar que a experiência brasileira em matéria de políticas de ação afirmativa foi avaliada como uma "prática ótima" 3 pela OPAS, ou seja, como um exemplo que os demais países da região deveriam considerar. Nesse caso específico do Brasil, objeto de uma ponderação de Pinheiro, a OPAS co-patrocinou eventos voltados para a discussão do tema e definição de uma agenda política, como o Workshop Interagencial Saúde da População Negra, realizado em Brasília, e que ensejou a publicação do documento Política Nacional de Saúde da População Negra: Uma Questão de Eqüidade. Por fim, mencionamos o convite à médica e militante do movimento negro, Fátima Oliveira, para a elaboração do livro Saúde da População Negra 4, que serviria de referência à implantação de políticas de saúde atentas à variável étnico-racial em escala continental.
Pinheiro, Hochman, Goldbaum e Almeida teceram considerações a respeito da pertinência das relações entre políticas voltadas para as comunidades indígenas, que datam de meados do século XX, e as recentes iniciativas no âmbito da população negra. Consideramos que naquele contexto, a incorporação social de comunidades indígenas, enquanto meta da OPAS, ocorreu devido à relevância da expansão da cobertura dos serviços de saúde e à centralidade que o tema do desenvolvimento assumiu como projeto de assimilação das populações rurais, vistas como atrasadas, ao mundo urbano, moderno, supostamente civilizado. No contexto da década de 1990, esse sentido já se encontra substancialmente alterado. A saúde de grupos populacionais marginalizados diz respeito, a partir de então, a demandas referidas, sem dúvida, às iniqüidades de acesso aos serviços efetivos de saúde. Portanto, uma perspectiva linear entre esses dois momentos da história político-programática da OPAS é inadequada.
Uma visão completa das possíveis ligaduras entre essas duas conjunturas exigirá investimentos adicionais de pesquisa. Por agora, nos é possível afirmar que a emergência de uma política de corte étnico-racial no interior da OPAS ocorreu em um ambiente sensível a esta temática, e necessariamente em diálogo com a trajetória institucional que produziu esta sensibilidade.
A política de saúde da população negra, modalidade de ação afirmativa que adquire visibilidade no início deste milênio, após a Conferência de Durban, na África do Sul, vem sendo implantada a partir da ação de determinados atores, a saber: organizações internacionais, agências financeiras e fundações filantrópicas privadas que reconhecem a centralidade da variável raça para o entendimento do fenômeno da pobreza; movimentos sociais negros transnacionais que buscam, mediante a afirmação de identidades primordiais, fazer valer seus direitos. Instituições multilaterais permeáveis a tais demandas sociais e que as traduzem em seus próprios termos. É o caso da OPAS.
Nosso artigo buscou tornar inteligível o processo de geração de políticas particularistas no interior de uma instituição multilateral e de forte tradição universalista. Procuramos estar atentos aos atores e às instâncias que produziram essas diretrizes políticas no âmbito da OPAS. São poucos os trabalhos existentes que seguem o caminho que procuramos trilhar. O artigo descortina, como pudemos observar pelas manifestações dos comentaristas, um amplo leque de temas e problemas para a inteligibilidade da dinâmica das agências internacionais.
1. Finnemore M. National interests in international society. Ithaca: Cornell University Press; 1996.
2. Marques E. Notas críticas à literatura sobre Estado, políticas estatais e atores políticos. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais 1997; 43:67-102.
3. Torres C. Trabajando para lograr la equidad de salud con una perspectiva étnica: lo que se ha hecho y las prácticas óptimas. http://www.paho.org/spanish/ad/ge/Torres-BestPractice-sp.pdf (acessado em 13/Mai/2010).
4. Oliveira F. Saúde da população negra. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; 2002.