RESENHAS BOOK REVIEWS
Flavio Coelho Edler
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
A SAÚDE NO RIO DE JANEIRO DE DOM JOÃO. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio; 2008. 120 p.
ISBN: 978-85-7756-024-0
Em cuidada edição ilustrada, a Editora Senac Rio publicou, em um volume, dois opúsculos sobre saúde pública, impressos originalmente pela Impressão Régia: Reflexões sobre Alguns dos Meios Propostos por Mais Conducentes para Melhorar o Clima da Cidade do Rio de Janeiro (1808), de autoria de Manoel Vieira da Silva, médico da Real Câmara; e Prolegômenos, Ditados pela Obediência, que Servirão às Observações, que for Dando das Moléstias Cirúrgicas do País, em Cada Trimestre (1820), de Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto, cirurgião da Real Câmara.
A publicação desses textos vem somar-se a outros esforços editoriais, comemorativos do bicentenário da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, voltados à compreensão de aspectos da cultura científica e da ilustração brasileira no período joanino, de que são exemplos os livros Iluminismo e Império no Brasil: O Patriota (1813-1814) 1, organizado por Lorelai Kury, e Dom João VI e a Cultura Científica 2, de João Carlos de Oliveira.
Embora Reflexões tenha sido o primeiro texto médico publicado no Brasil, muitas outras obras de mesmo teor, escritas por cirurgiões e médicos e baseadas em informações aqui colhidas, já circulavam na América Portuguesa desde o século XVII. São igualmente bem conhecidas a existência de uma elite ilustrada luso-brasileira e as iniciativas da coroa portuguesa, em especial do ministro da Marinha e Ultramar do governo mariano, Dom Rodrigo de Souza Rodriguez, no sentido de inventariar nossa flora, fauna e minérios, como fontes potenciais de riqueza (sobre a política ilustrada portuguesa, ver Dias 3 e Silva 4).
A preocupação com as condições de saúde na cidade do Rio de Janeiro, sede da colônia, desde 1763, era constantemente mencionada nos relatórios dos Vice-reis. O Patriota publicou, em 1813, em fascículos sucessivos, os relatórios de três médicos em respostas a questões de higiene pública na sede do Vice-reinado, propostas pela Câmara da cidade, em 1789. Seguindo o protocolo definido pela tradição de pesquisa denominada Topografia Médica, Manuel Joaquim de Medeiros, Bernardino Antônio Gomes e Antônio Joaquim de Medeiros, foram unânimes em afirmar que o clima quente e úmido do Rio de Janeiro seria a causa predisponente a ameaçar a constituição orgânica de seus habitantes. A tal fator insalubre, acrescentavam-se as características topográficas da cidade tropical, situada numa planície no nível do mar, cercada de elevadas montanhas de onde desciam inúmeros e sinuosos rios e cursos d'água, que inundavam a parte baixa do relevo, formando uma grande área pantanosa. Transformadas em depósito de matérias orgânicas em decomposição, as águas estagnadas, ao evaporar, contaminariam o ar com emanações deletérias de gases químicos associados à produção de enfermidades e conhecidos por miasmas. Uma vez que as montanhas circundantes impediam a livre circulação do ar e, conseqüentemente, sua renovação, os miasmas palustres permaneceriam inertes sobre a cidade, predispondo a população a contrair inúmeras doenças.
Com algumas variações, relativas às medidas preventivas imputadas mais eficazes no combate à insalubridade, o elenco dos fatores morbígenos se repetia como num refrão, em Reflexões e Prolegômenos: o morro do Castelo, que impedia a circulação do ar; os costumes alimentares e higiênicos dos habitantes; os terrenos alagadiços, como focos de miasmas; o enterramento dos mortos em locais de grande circulação de pessoas; a inexistência de quarentena dos escravos doentes desembarcados da África; o aleitamento das crianças brancas pelas "mães negras"; o comércio de carne degenerada; a venda de remédios deteriorados; a situação e localização do matadouro e do curral; o esgoto a céu aberto e as ruas mal calçadas...
A breve introdução aos textos, elaborada por Moacyr Scliar, ajuda a situá-los nos marcos da administração portuguesa. Faço apenas um reparo: o contexto teórico que serve como referência ao cirurgião e ao médico da Real Câmara não é o do hipocratismo. Como tantos outros intérpretes do pensamento médico do período, Scliar confunde o vocabulário, a ontologia e os problemas da fisiopatologia iatro-mecânica e do vitalismo com a tradição da medicina galênica, proscrita do ensino médico da Universidade de Coimbra desde a reforma pombalina de 1772.
1. Kury L, organizadora. Iluminismo e império no Brasil: O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.
2. Oliveira JC. D. João VI e a cultura científica. Rio de Janeiro: EMC Edições; 2008.
3. Dias MOS. Aspectos da ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 1968; (278):105-70.
4. Silva MBN. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional; 1977.