REVISÃO REVIEW
Contribuições de estudos sobre demanda de alimentos à formulação de políticas públicas de nutrição
Contributions by food demand studies to the development of public policies in nutrition
Flávia Mori SartiI; Rafael Moreira ClaroII; Daniel Henrique BandoniIII
IEscola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
IINúcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
IIIFaculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
RESUMO
A escolha de alimentos na composição da dieta é determinante do estado de saúde dos indivíduos. Atualmente, há gradualmente menos condições de escassez e mais situações caracterizadas por excesso de alimentos. Modificações na renda e preços relativos geram efeitos mensuráveis no padrão alimentar da população. O poder explicativo de modelos econômicos sobre demanda de alimentos é significativo, sendo que interações entre consumo, renda e preços são usualmente expressas sob forma de elasticidade. Entretanto, devem-se ressaltar deficiências na construção de alguns estudos, especialmente quanto à aplicação em políticas públicas. O presente artigo conceitual discute o potencial de contribuição de estudos de demanda de alimentos, buscando sugerir aperfeiçoamentos ao desenho estrutural de tais estudos para inclusão de conceitos atuais em nutrição no redirecionamento da transição nutricional diretamente da desnutrição à alimentação saudável, evitando a tendência atual à obesidade epidêmica.
Demanda de Alimentos; Consumo de Alimentos; Transição Nutricional; Programas e Políticas de Nutrição e Alimentação
ABSTRACT
Food choice in diet composition is a determinant of individual health status. Currently, there are gradually fewer conditions involving food scarcity and more involving excess food. Changes in income and relative prices generate measurable effects on the population's food intake patterns. Economic models have significant explanatory power for food demand, and the interactions between consumption, income, and prices are usually expressed as elasticity. However, the construction of some studies shows important shortcomings, especially for public policy application. This conceptual article discusses the potential contribution of food demand studies, suggesting improvements in the structural design of such studies with the inclusion of current nutritional concepts for redirecting the nutritional transition from under-nutrition to healthy eating, avoiding the present trend towards epidemic obesity.
Food Demand; Food Consumption; Nutritional Transition; Nutrition Programs and Policies
Introdução
Os padrões de consumo alimentar de diversos países têm sofrido intensas e rápidas modificações nas últimas décadas 1. Atualmente, verifica-se uma progressiva substituição da escassez pelo consumo excessivo de alimentos, caracterizando o processo denominado transição nutricional: um fenômeno que atinge de forma bastante desigual as diferentes regiões mundiais, assim como registrado no Brasil 2,3,4,5, sendo majoritariamente observado em áreas de significativa urbanização e maior renda. Tais mudanças no padrão alimentar são consideradas causas centrais do aumento nas taxas de obesidade e doenças crônicas mundialmente 6.
Escolhas alimentares são comportamentos complexos, derivados de interações entre características ambientais e individuais 7,8. Fatores econômicos, tais como renda e preço, situam-se entre os principais determinantes das escolhas alimentares: o mecanismo de preços exerce caráter proibitivo sobre escolhas alimentares de modo inversamente proporcional ao nível socioeconômico do indivíduo, constituindo-se, assim, determinantes primários da demanda alimentar 9,10.
Consequentemente, alguns estudos em nutrição buscam investigar renda e preços relativos como determinantes da demanda alimentar em pequenas comunidades e grupos populacionais específicos (como escolas ou locais de trabalho). O desenho de estudo comunitário, entretanto, apresenta importantes limitações em termos de generalização e aplicabilidade dos resultados em políticas públicas 11,12,13.
Paralelamente, a ciência econômica mostra-se extremamente útil à compreensão dos determinantes do consumo alimentar 14. Ressalta-se o papel da economia na investigação do processo de seleção de alimentos para composição da dieta, destacando contribuições às políticas públicas em saúde pela análise de fatores associados ao comportamento alimentar populacional. A compreensão dos mecanismos que permeiam relações de consumo de alimentos deve-se, majoritariamente, aos estudos econômicos sobre demanda 10. No entanto, observam-se deficiências na construção de alguns modelos de demanda alimentar, especialmente sob a ótica nutricional e do planejamento de políticas públicas 8.
O presente artigo conceitual discute o potencial de contribuição de estudos de demanda de alimentos, buscando sugerir aperfeiçoamentos ao desenho estrutural de tais estudos, de forma a contemplar aspectos atuais tanto da nutrição quanto da economia. Efetuou-se um levantamento bibliográfico em diferentes bases de dados nacionais e internacionais, buscando-se qualquer produção científica publicada nos últimos 15 anos que incluísse, no mínimo, duas das seguintes palavras-chave: "modelos de demanda", "demanda de alimentos", "elasticidade-preço", "elasticidade-renda" e "consumo alimentar".
A partir do conjunto de publicações obtido no levantamento bibliográfico, buscou-se analisar o escopo e a abordagem utilizados na análise de dados. Foram selecionadas para análise em profundidade as publicações que apresentassem estimativas para modelos de demanda de alimentos, incluindo cálculo de elasticidades, a partir da análise de dados com significativa representatividade populacional, preferencialmente pesquisas de orçamentos familiares.
Dentre as publicações selecionadas para análise em profundidade, é elencado um conjunto de características pertinentes à totalidade dos estudos, que englobam desde o objetivo expresso pelos autores até questões relativas à sua efetiva aplicabilidade e contribuição em termos de políticas públicas de alimentação e nutrição. Por fim, sugerem-se algumas características desejáveis aos modelos de demanda de alimentos, de modo a garantir uma melhor aplicação dos resultados à formulação de políticas públicas em saúde.
Aplicação de modelos de demanda de alimentos em políticas públicas
Estudos econômicos tradicionalmente analisam a demanda de um bem pela sua participação no orçamento familiar, em função do próprio preço, preço de outros bens e renda domiciliar per capita (Equação 1), sendo que, demanda por um produto i em uma família j (Dij) seria uma função do preço do próprio produto i (pij), preço de outros produtos k adquiridos pela família j (pkj) e renda per capita da família j (Rj). Tais estudos fundamentam-se em hipóteses e premissas da teoria do consumidor, usualmente empregando dados de aquisição de produtos, grupos de produtos ou participação relativa de mercado 15,16,17,18. Assim:
A estimativa de coeficientes de elasticidade é a forma usualmente adotada para expressar relações entre aquisição, renda e preços. O conceito de elasticidade (Equação 2) se refere à mensuração, livre de unidade de medida, que indica a variação percentual de uma variável (Y) frente à variação de 1% em um de seus determinantes (X).
A elasticidade é utilizada como uma medida de sensibilidade do consumo, que, em estudos de demanda, geralmente relaciona-se à renda (elasticidade-renda) ou aos preços, sendo que a última pode ser dividida em dois diferentes vetores: elasticidade-preço própria (variação na quantidade demandada dada variação no preço do próprio bem) ou elasticidade-preço cruzada (variação na quantidade demandada do bem dada variação no preço de outro bem, substituto ou complementar).
Elasticidades constituem instrumentos úteis ao delineamento de políticas públicas, pois apresentam fácil interpretação e ampla aplicabilidade. Assim, a principal limitação quanto à estimativa de coeficientes de elasticidade para demanda alimentar refere-se à seleção de variáveis, cuja escolha deve refletir a potencial contribuição do indicador final no delineamento de políticas públicas em saúde e nutrição.
Estudos sobre demanda de alimentos
Inicialmente propostos por Marcel Autret, chefe do departamento de nutrição da Food and Agriculture Organization (FAO), os estudos sobre demanda de alimentos no Brasil iniciam-se a partir da realização de Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF) pelo Instituto Brasileiro de Economia na década de 1960, tendo como objetivo estabelecer ponderações para construção de índices de custo de vida e calcular funções de demanda de produtos agrícolas 19. A partir da POF realizada pela Fundação Getúlio Vargas no ano de 1973, incorporou-se o foco da análise do consumo alimentar das famílias, a partir do cálculo do consumo de calorias e nutrientes segundo estratos socioeconômicos 20.
Conforme Gomes 19, um dos principais fatores limitantes da aplicação de modelos de demanda na área da nutrição reside no paradoxo gerado pela manutenção da propriedade aditiva para construção de sistemas de equações de demanda de alimentos. As curvas de demanda que apresentam propriedades aditivas "... não são as que melhor se ajustam aos dados, gerando um conflito estatístico: manter a propriedade aditiva errando na projeção por produto ou estimar bem a demanda por produto e errar no total de renda disponível para consumo?" 19 (p. 1), uma vez que a demanda não pode ser calculada isoladamente, pois a soma dos valores não pode ultrapassar a renda. No contexto delineado, sugere-se a adoção de estratégias de agregação de dados que minimizem erros derivados da estimativa de modelos em demanda de alimentos, a partir da confluência de conhecimentos derivados das áreas de economia, estatística, química, nutrição e saúde, de forma a conciliar os métodos quantitativos apropriados às prioridades em alimentação e saúde da população.
As principais contribuições dos estudos sobre demanda de alimentos têm sido focadas em três vertentes. A primeira vertente refere-se a pesquisas originárias do setor privado, que buscam identificar oportunidades comerciais face às características identificadas no setor alimentício, focalizando o alimento como mercadoria e o indivíduo como consumidor.
Estudo conduzido pela Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (ABIA) 17, por exemplo, analisa elasticidades-preço dos alimentos para proposição de modificações na estrutura tributária do setor, visando ampliar vendas de produtos industrializados. Em tal tipo de estudo, geralmente, são ignoradas interações entre alimentação e saúde, de forma que são poucas as contribuições para formulação de políticas públicas na área de alimentação.
Uma segunda vertente analisa a alimentação no âmbito de sua participação na despesa domiciliar, enfatizando o problema da escassez na alocação de recursos (orçamento familiar) entre escolhas alternativas de bens (alimentos) como necessidade básica à subsistência, ou seja, estudos econômicos sobre demanda alimentar.
Huang & Lin 18 utilizaram dados de participação percentual no orçamento familiar da pesquisa populacional norte-americana de 1987-1988 (Nationwide Food Consumption Survey) para estimar elasticidades para preços, gastos e nutrientes de 13 grupos de alimentos categorizados sob forma de commodities - ou seja, produtos primários do setor alimentar cujas características são relativamente uniformes quanto a determinados requisitos técnicos específicos. O objetivo proposto foi avaliar efeitos de programas e políticas públicas de alimentação sobre famílias de diferentes níveis de renda, utilizando um sistema de equações (modelos de equações tipo Almost Ideal Demand System - AIDS), via regressão linear.
Skoufias 21 empregou dados de quantidade e preços de diferentes itens alimentares categorizados em quatorze grupos de commodities provenientes dos National Socio-Economic Surveys, realizados durante os anos de 1996 e 1999 na Indonésia, para cálculo da elasticidade-renda da demanda por calorias e por calorias de cereais em relação aos demais alimentos. Utilizaram-se métodos estatísticos não-paramétricos e modelos de regressão levando em conta as características domiciliares como a composição etária familiar, gênero, tamanho do domicílio, nível de educação e tipo/setor de atividade do chefe da família e cônjuge. O objetivo do estudo foi verificar a robustez da elasticidade da demanda por calorias em relação a mudanças nos preços relativos, de forma a verificar a consistência temporal como parâmetro de uso em políticas públicas de alimentação.
Durham & Eales 22 empregaram dados de preços e volume de vendas de frutas em dois supermercados de Portland (Estado do Oregon, Estados Unidos) para estimativa de elasticidade-preço de seis diferentes tipos de frutas (maçãs, peras, bananas, laranjas, uvas e outras frutas). As informações foram coletadas durante oitenta semanas, utilizando-se diversos tipos de modelos econométricos (Log-log, Linear Approximate Almost Ideal, AIDS e Quadratic Almost Ideal Demand System - QUAIDS) para verificar o melhor modelo aplicável ao cálculo de elasticidade-preço de alimentos, utilizando controle por efeitos sazonais e espaço de exposição dos produtos. O objetivo proposto no estudo foi promover a compreensão dos determinantes da qualidade de dieta e estimular a discussão em torno de políticas públicas de alimentação saudável.
No Brasil, Silveira et al. 16, baseando-se em artigo prévio de Menezes et al. 23, utilizaram microdados de participação do gasto alimentar no orçamento familiar da POF do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) conduzida nos anos de 1995 e 1996 para estimar a elasticidade-renda da demanda de 39 produtos alimentares básicos em dez faixas de renda domiciliar nas diferentes regiões metropolitanas. Os objetivos propostos foram efetuar a construção de banco de dados de preços implícitos dos alimentos a partir dos microdados, empregando a técnica Weight Country Product Dummy (WCPD), utilizar extensão quadrática do modelo AIDS (QUAIDS) para descrição do comportamento da demanda por bens alimentícios no Brasil e propor políticas públicas de combate às desigualdades vigentes na sociedade brasileira.
Hoffmann 24 utilizou dados agregados sobre gastos e disponibilidade de alimentação da mesma POF (1995-1996) para estimativa de elasticidade-renda das despesas de 21 categorias de alimentos e 37 itens alimentares e consumo físico de 38 itens alimentares em regiões metropolitanas brasileiras, empregando um modelo poligonal do tipo Log-log. O objetivo do estudo foi analisar a variação de categorias de despesas per capita e consumo físico de alimentos per capita em função da renda familiar per capita nos domicílios brasileiros, segundo três diferentes estratos de renda domiciliar. Posteriormente, um novo estudo foi elaborado utilizando-se dados de renda per capita média, consumo e despesa per capita com alimentos provenientes da POF conduzida entre os anos de 2002-2003 para estimativa de elasticidades-renda do consumo físico e despesa de 58 itens alimentares em dez classes de renda familiar per capita 25.
Pereda 26 utilizou microdados selecionados de preços e composição nutricional da disponibilidade domiciliar de alimentos e dispêndio domiciliar (proxy de renda) da mesma POF (2002-2003) para efetuar a estimativa de elasticidades-preço e elasticidades-dispêndio de onze nutrientes: carboidratos, proteínas, lipídios, colesterol, fibra alimentar, cálcio, ferro, sódio, vitamina A, vitaminas do complexo B e vitamina C. O objetivo proposto do estudo foi estudar a sensibilidade à renda e aos preços da demanda brasileira de alimentos, como determinante do estado de saúde dos indivíduos, empregando-se o modelo QUAIDS com controle por regiões brasileiras e variáveis socioeconômicas.
Por fim, a terceira vertente de estudos busca investigar determinantes de diferentes padrões alimentares com base em parâmetros específicos de quantidade e qualidade da alimentação, utilizando estimativas de elasticidade. Entretanto, poucos estudos abordam conceitos em nutrição e implicações de seus resultados sobre a saúde pública, principalmente sob enfoque das possibilidades de modificação das escolhas alimentares em prol de melhoria da qualidade da alimentação.
Guo et al. 27 utilizaram dados de consumo de grupos alimentares e ingestão de nutrientes coletados em três recordatórios de 24 horas subsequentes de três séries do inquérito de alimentação e saúde da China (China Health and Nutrition Survey) no período entre 1989 e 1993, selecionando informações referentes a 5.625 indivíduos adultos (20 a 45 anos de idade). Métodos de regressão em modelo Log-log foram empregados para cálculo de elasticidades-preço e elasticidades-preço cruzadas para seis diferentes grupos de alimentos (arroz, grãos integrais, farinha de trigo, carne de porco, ovos e óleo comestível) considerados representativos do hábito alimentar nacional, além do teor energético total da dieta e dois macronutrientes (proteína e lipídeos). Dados de preços médios dos alimentos foram obtidos em tabelas oficiais de preços do governo. A renda familiar per capita e seis características demográficas referentes ao domicílio foram empregadas como variáveis de controle do modelo: idade, gênero, educação, tamanho do domicílio, área urbana ou rural e região da residência. O objetivo do artigo foi apresentar uma análise de políticas públicas em saúde sobre o efeito de mudanças nos preços sobre a dieta da população.
Lechene 28 utilizou dados populacionais sobre gasto alimentar e renda per capita da pesquisa nacional de alimentação (National Food Survey) realizada na Grã-Bretanha entre os anos de 1988 e 2000 para cálculo da disponibilidade domiciliar de alimentos e estimativa de elasticidade-preço e elasticidade-renda de itens alimentares e grupos de alimentos, associando aquisições a preços médios mensais de itens alimentares. O objetivo proposto no estudo era efetuar a descrição do consumo alimentar e ingestão de nutrientes na população britânica em relação a consumo, preços e renda familiares, utilizando modelo AIDS com controle de características domiciliares e sazonalidade, tais como: idade do chefe do domicílio, composição etária da família e mês de coleta dos dados.
Ruel et al. 29 analisaram dados de pesquisas domiciliares nacionais representativas de dez países da África subsahariana, contendo amostras desde 6 mil famílias até 22.178 famílias, coletados no período entre 1994 e 2000 (sete na forma de entrevista, dois por diário e um combinando entrevista e diário). Foi utilizada a técnica working-lessor functional form para estimativa de elasticidade-renda da participação percentual do dispêndio em frutas e vegetais em relação ao orçamento familiar - variável que inclui variações tanto nos preços quanto nas quantidades adquiridas dos produtos em questão. O dispêndio familiar per capita e seis características sociodemográficas referentes ao domicílio foram empregadas como variáveis de controle: gênero do chefe da família, tamanho do domicílio, proporção de crianças abaixo de 16 anos e proporção de adultos com idade superior a 30 anos, nível educacional no domicílio e área urbana ou rural da residência. O objetivo do artigo foi apresentar uma análise de políticas públicas em saúde sobre o efeito de mudanças nos preços sobre a dieta da população.
No Brasil, Claro et al. 30 utilizaram microdados de renda domiciliar per capita, aquisição e preços de alimentos da POF da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) realizada nos anos de 1998 e 1999 para efetuar estimativas de elasticidade-preço, elasticidade-preço cruzada e elasticidade-renda da demanda para participação calórica de dois grupos de alimentos (frutas e hortaliças) em relação aos demais alimentos em domicílios do Município de São Paulo. Utilizou-se modelo de regressão Log-log com controle para composição domiciliar e escolaridade do chefe da família. O objetivo do artigo centrou-se na proposição de medidas para promoção de alimentação saudável via políticas públicas de incentivo ao consumo de alimentos dos grupos de frutas e hortaliças.
Algumas limitações dos estudos atuais sobre demanda de alimentos
A maioria dos estudos de base estritamente econômica sobre demanda alimentar apresenta limitações quanto à aplicação em políticas públicas de saúde. Uma significativa proporção dos estudos não apresenta estimativa de elasticidade-preço e elasticidade-preço cruzada da demanda alimentar, que permitiriam explicitar relações de complementaridade ou substituição entre alimentos. Ademais, ressalta-se que a maioria dos autores utiliza alocação dos itens em grupos alimentares sob classificação estritamente econômica (commodities), que não representa base consistente para apoiar ações no âmbito da saúde promoção de alimentação saudável.
As propostas de tais estudos quanto à estimativa de elasticidades para qualidade ou nutrientes, em geral, não representam aspectos diretamente aplicáveis à área da saúde, tendo em vista que são apoiadas em classificações econômicas - referindo-se à interpretação do preço como indicador de qualidade -, ou assumindo premissas controversas quanto à capacidade do consumidor em realizar escolhas alimentares baseadas na relação entre o preço dos alimentos e seu teor nutricional. Destaca-se, especialmente, a imposição do pressuposto de insaciabilidade do consumidor, que constitui uma premissa básica à construção das preferências individuais e que implica na inexistência de um ponto de saciedade no consumo de qualquer bem - ou seja, não há limites ao consumo.
A maioria dos estudos da vertente econômica sobre demanda de alimentos busca aperfeiçoamento do abastecimento alimentar 21, cadeia produtiva ou construção de modelos para aprimoramento técnico-metodológico 17,22,29, pois focalizam um aspecto primordial da ótica econômica: escassez 31. Poucos estudos avaliam a demanda de alimentos sob perspectiva de promoção de saúde populacional 28,30. Assim, contribuições à formulação de políticas públicas tornam-se restritas, pois o paradigma central dos modelos considera alimentos como bens de consumo cuja única característica diferenciadora reside no caráter de necessidade básica.
Note-se, ainda, que estratégias de incentivo (ou inibição) à escolha de determinados alimentos baseadas na modificação de preços relativos de alimentos, via subsídios ou impostos, tendem a surtir um maior impacto sobre a demanda de alimentos uma vez que incidem diretamente sobre o alvo da política pública em saúde, ao contrário das estratégias de elevação da renda, já que efeitos de mudanças na renda podem ser diluídos dentro de um conjunto amplo de despesas familiares 21. Da mesma forma, é preferível que uma política pública para modificação do consumo via preço apresente incidência sobre categorias (ou grupos) de produtos com características comuns, a fim de potencializar seus efeitos e sua aceitação pela população 8,13,31. Assim sendo, é imprescindível conhecer elasticidades-preço de diversos grupos de alimentos para verificação do impacto de modificações nos preços relativos sobre aquisição domiciliar.
A maioria dos estudos não realiza uma avaliação substantiva dos resultados sob a ótica das políticas públicas em saúde, abdicando da discussão quanto à natureza e aos efeitos das interações observadas entre características domiciliares e padrão alimentar na investigação dos determinantes de escolhas alimentares.
Uma limitação que deve ser destacada à construção de modelos de demanda para alimentos refere-se à inexistência de padronização do método de coleta de dados sobre consumo alimentar. Embora sob a ótica da nutrição o consumo alimentar seja equivalente à ingestão alimentar, o que torna desejável a obtenção de dados via questionários de ingestão alimentar (como recordatório de 24 horas, por exemplo), existe um trade-off inevitável entre precisão da informação e custo da pesquisa (que pode tornar impraticável a condução de levantamentos periódicos de dados populacionais). A maioria dos estudos de demanda de alimentos baseia-se em pesquisas de orçamento familiar que, embora apresentem menor precisão em termos de ingestão alimentar, refletem de forma fidedigna a proporcionalidade na demanda de alimentos entre itens e grupos alimentares 32.
Consequentemente, são necessárias mudanças ao desenho estrutural dos modelos de demanda alimentar para inclusão de aspectos atuais da abordagem nutricional. Busca-se, a seguir, delimitar um conjunto de características desejáveis aos estudos de demanda de alimentos, de forma que os resultados reflitam contribuições efetivas a políticas públicas em saúde.
Perspectivas no estudo da demanda de alimentos
Inicialmente é necessário modificar a concepção do alimento como bem de necessidade básica à sobrevivência, considerando o benefício que propriedades intrínsecas dos bens (atributos) oferecem ao consumidor 33. No caso da demanda de alimentos, os atributos estão associados à composição nutricional, especialmente com relação aos macronutrientes, cujo conhecimento é mais disseminado nos diferentes segmentos populacionais. Somente três estudos mencionados consideram a ótica dos atributos 26,29,30, sendo que somente um dos casos considera o papel dos nutrientes no âmbito de uma alimentação saudável 30.
Adicionalmente, modelos de demanda alimentar estimados sob a perspectiva da saúde pública devem basear-se na avaliação de grupos de alimentos - com agrupamento definido de acordo com as características nutricionais - a fim de permitir avaliação qualitativa e quantitativa do padrão alimentar da população e garantir manutenção da diversidade na dieta, via substituição entre alimentos dentro do mesmo grupo alimentar. O agrupamento de alimentos segundo a ótica nutricional abarca a concepção de substituição entre itens alimentares pertencentes ao mesmo grupo, reproduzindo a lógica de busca por variabilidade na dieta que deve pautar uma alimentação saudável 34.
Paralelamente, é recomendável estimar elasticidades-preço cruzadas para identificação de relações de substituição ou complementaridade entre grupos de alimentos saudáveis e alimentos não-saudáveis. Bens complementares apresentam consumo estreitamente vinculado entre si (pão e manteiga, por exemplo), enquanto bens substitutos apresentam consumo competitivo (manteiga e margarina, por exemplo). A estimativa de elasticidades-preço cruzadas pode contribuir à eficácia de políticas públicas de saúde ao explicitar relações entre diferentes grupos de alimentos, garantindo que incentivos ao consumo de grupos de alimentos saudáveis não resultem em efeitos indesejáveis, como estímulos colaterais ao consumo de alimentos complementares não-saudáveis. Os modelos de avaliação da aquisição domiciliar de alimentos podem, ainda, focalizar as relações da demanda entre diferentes grupos de alimentos, identificando o potencial grau de substituição ou complementaridade entre grupos de alimentos, de forma a definir pontos passíveis de intervenção em políticas públicas de saúde 30.
O uso da variável gasto ou percentual de gastos no orçamento domiciliar para aquisição de itens alimentares deve ser evitado na construção de modelos de demanda alimentar. Tanto gasto quanto participação percentual no orçamento podem refletir variações na quantidade adquirida ou preço unitário do alimento, além de aspectos de consumo hedônico, resultando dessa forma em estimativas potencialmente enviesadas com limitada utilidade à elaboração de quaisquer políticas públicas.
Considerações finais
O forte vínculo entre alimentação e o processo saúde-doença ressalta a importância do estudo dos determinantes da demanda alimentar. A existência de bases de dados de alta qualidade e ampla representatividade possibilita a avaliação das condições nas quais uma significativa parcela das populações mundiais realiza suas escolhas alimentares, destacando ainda mais a relevância de tais estudos.
Tais características estimulam a busca de delineamentos mais precisos e sofisticados ao estudo da demanda alimentar. Ainda que contribuições técnico-conceituais da economia à nutrição e à saúde pública sejam inegáveis, ainda são inexistentes os estudos que propuseram modelos que poderiam servir de base para formulação de políticas públicas, restringindo a aplicabilidade dos resultados e acarretando escassez de contribuições econômicas especificamente direcionadas à orientação de políticas públicas setoriais estratégicas.
Orientações relativas à provisão de alimentos de alta densidade calórica ou à garantia de aporte calórico independentemente da qualidade da alimentação constituem parte de um paradigma praticamente já superado no campo da nutrição e da saúde pública. Tal foco não somente se esquiva à promoção de melhores condições de saúde da população, como também pode gerar um aprofundamento dos problemas de saúde emergentes.
Adicionalmente, boa parte dos estudos não considera variáveis demográficas em sua influência sobre escolhas alimentares. Dados como região de moradia, acesso a pontos de venda, entre outras, podem influenciar significativamente a demanda de alimentos. Assim, é fundamental a realização de análises estratificadas e controladas por variáveis demográficas para permitir melhor ajuste dos modelos.
Uma parcela dos estudos utiliza bases de dados com significativa representatividade populacional, no entanto, apóia sua análise em modelos de demanda estimados com base em gastos ou percentual do gasto no orçamento familiar, tecendo considerações em termos de políticas públicas de saúde que não condizem com os resultados obtidos.
Verifica-se ainda que, a despeito da variedade de estudos analisados, em termos de diversidade geográfica e socioeconômica, em geral, não há uma discussão substantiva quanto à propriedade no uso de determinados modelos de demanda de alimentos e seus resultados como potencial contribuição às políticas públicas, especialmente no campo da nutrição como prevenção.
Obviamente, tais estudos sobre demanda de alimentos, realizados em diferentes países a partir de bases de dados de significativa representatividade populacional, constituem um primeiro passo ao delineamento de políticas econômicas relacionadas à produção de alimentos, em nível regional. No entanto, ainda apresentam limitações em aspectos relativos à prevenção em saúde, sendo passíveis de aperfeiçoamento para constituir efetiva contribuição à formulação das políticas públicas de saúde.
A proposição de novo desenho para estudos de demanda de alimentos definiu algumas características desejáveis para maior aplicabilidade dos resultados ao planejamento de políticas públicas em saúde, contemplando conceitos atuais em nutrição na busca do redirecionamento da transição nutricional diretamente da desnutrição à alimentação saudável, sem percorrer a trilha recentemente assinalada pela tendência mundial à obesidade.
Colaboradores
F. M. Sarti participou da concepção do projeto, redação do artigo e aprovação de sua versão final. R. M. Claro e D. H. Bandoni colaboraram na redação do artigo e aprovação de sua versão final.
Agradecimentos
Agradecemos ao Professor Carlos Augusto Monteiro (Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo - FSP/USP) pelas contribuições ao presente artigo. Ao Programa de Incentivo à Pesquisa (PROIP) da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP.
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Correspondência:
F. M. Sarti
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
Universidade de São Paulo
Av. Arlindo Bettio 1000, sala 302a
São Paulo, SP 03828-000, Brasil
flamori@usp.br
Recebido em 04/Abr/2010
Versão final reapresentada em 25/Out/2010
Aprovado em 07/Fev/2011