REVISÃO REVIEW

 

A (in)visibilidade da violência psicológica na infância e adolescência no contexto familiar

 

The (in)visibility of psychological family violence in childhood and adolescence

 

 

Cecy Dunshee de AbranchesI; Simone Gonçalves de AssisII

IInstituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A violência psicológica na infância e adolescência, no contexto familiar, ainda é pouco estudada. Este artigo tem como objetivo analisar como a violência psicológica na família relatada por crianças e adolescentes tem sido abordada nos estudos acadêmicos, através de revisão de literatura. A metodologia utilizada baseou-se na pesquisa bibliográfica das fontes de informações das bases de dados da LILACS, MEDLINE, SciELO, PubMed e do Portal Capes, nas bases Scopus e PsycInfo. Entre 51 estudos epidemiológicos, 16 desses se mostraram adequados ao objetivo desse artigo e comprovam a alta prevalência deste tipo de violência. Através dessa revisão pode-se perceber que esse tema tem sido mais estudado na literatura internacional do que na brasileira, e que aumentou significativamente sua visibilidade na última década, porém ainda enfrenta dificuldades quanto à definição, conceituação e operacionalidade. Constatou-se que a violência psicológica ao sair da invisibilidade pode colaborar para o aumento da prevenção e da proteção desta natureza de violência.

Maus-Tratos Infantis; Violência Doméstica; Criança; Adolescente


ABSTRACT

Psychological family violence in childhood and adolescence is still poorly studied, due to difficulties in its definition and detection. This article aims to examine how psychological family violence reported by children and adolescents has been addressed in academic studies, using a literature review (LILACS, MEDLINE, SciELO, PubMed, CAPES Portal, PsycINFO, and SCOPUS databases). Among 51 epidemiological studies, 16 articles met the review's objectives; some of the articles reported a high prevalence of such violence. The study showed that the issue has been studied more in the international literature than in Brazil, which has significantly increased its visibility in the last decade but still faces difficulties involving definition, conceptualization, and operationalization. Eliminating the invisibility of psychological violence in the family could help promote prevention of such violence and protection of children and adolescents.

Child Abuse; Domestic Violence; Child; Adolescent


 

 

Introdução

A violência é uma questão fundamental para o setor de saúde devido ao seu impacto nas condições de vida e de saúde da população 1,2, especialmente quando acontece durante a infância, antes do completo crescimento e desenvolvimento humano.

Na década de 70 foi demonstrada ao mundo a gravidade dos abusos na infância através da "síndrome da criança espancada", impulsionando estudos sobre violência física e violência sexual e seus impactos na saúde de crianças, adolescentes e adultos expostos a estes. Através destas experiências percebeu-se que a violência psicológica, muito pouco estudada na época, poderia causar mais danos do que as outras formas de maus-tratos, sendo certamente mais difícil de ser identificada 3,4,5,6,7,8.

Estudos das décadas de 70, 80 e 90 apontam para a grande preocupação com o conceituar e definir a violência psicológica. Diferente das outras naturezas de violência, com definição e conceitos mais claros possibilitando assim melhor detecção e consequente intervenção, a violência psicológica é pouco diagnosticada apesar de ser mais prevalente do que as outras formas de abuso segundo pesquisadores da área 4,5,6.

Estudiosos 7,8 no desenvolvimento psicológico infantil mostram que a violência psicológica acarreta ataques ao ego da criança, com sérios danos e distorções introduzidas em seu mapa psicológico sobre o mundo. Com essa perspectiva, Garbarino et al. 7 elencaram cinco importantes comportamentos parentais tóxicos do ponto de vista psicológico infantil para auxiliar na detecção deste abuso: rejeitar (recusar-se a reconhecer a importância da criança e a legitimidade de suas necessidades), isolar (separar a criança de experiências sociais normais impedindo-a de fazer amizades, e fazendo com que a criança acredite estar sozinha no mundo); aterrorizar (a criança é atacada verbalmente, criando um clima de medo e terror, fazendo-a acreditar que o mundo é hostil); ignorar (privar a criança de estimulação, reprimindo o desenvolvimento emocional e intelectual) e corromper (quando o adulto conduz negativamente a socialização da criança, estimula e reforça o seu engajamento em atos antissociais). Outra contribuição deste autor refere-se ao contexto cultural e social onde ocorre a violência, sendo consenso de que o reconhecimento de maus-tratos psicológicos depende substancialmente do contexto em que se está inserido. Nesta linha, o reconhecimento de maus-tratos psicológicos será efetuado quando comunicar uma mensagem cultural específica de rejeição ou prejudicar relevante processo de socialização e desenvolvimento psicológico 7,8.

Diferentes ângulos têm sido adotados pelos autores ao estudarem violência psicológica na infância. O'Hagan 9 e Brassard et al. 10 focalizam a conceituação dos maus-tratos psicológicos durante o desenvolvimento infantil no comportamento dos pais, em que estes repetidamente convencem a criança de que ela é a pior, não amada, não querida, ou que seu único valor é comparado com a necessidade dos outros.

Jellen et al. 11 sinalizam que a violência psicológica tem sido considerada como ponto central do abuso infantil e da negligência. Claussen et al. 12 afirmam que a violência psicológica pode causar mais danos no desenvolvimento infantil do que a violência física.

Os possíveis efeitos na criança de conviver com violência psicológica são enumerados por vários estudiosos, tais como: incapacidade de aprender, incapacidade de construir e manter satisfatória relação interpessoal, inapropriado comportamento e sentimentos frente a circunstâncias normais, humor infeliz ou depressivo e tendência a desenvolver sintomas psicossomáticos 3,6,7,8.

Diante dos agravos que a violência psicológica pode causar em crianças e devido a sua difícil detecção, buscamos neste artigo analisar as publicações mundiais existentes sobre o tema através de uma revisão da literatura.

 

Material e método

Os artigos analisados são originados da pesquisa bibliográfica em bases de dados especializadas, utilizando-se os seguintes descritores: (a) LILACS, MEDLINE e SciELO - violência ou abuso ou maus-tratos e psicológico ou emocional, e criança ou adolescente; (b) PubMed, Scopus e PsycInfo - psychological or emotional and maltreatment or violence or abuse and child or adolescent.

A escolha das palavras-chave baseou-se na diversidade encontrada na literatura especializada: "violência", "abuso" e "maus-tratos" e os diferentes termos "psicológicos" (aspectos afetivos e cognitivos) e "emocionais" (só os aspectos afetivos). Neste artigo os termos são usados como sinônimos 8.

O levantamento iniciou-se em 1970, época em que a "síndrome da criança espancada" disseminou-se no meio científico, e finalizou em 2009. Teve como objeto de pesquisa a exposição à violência psicológica na infância, no contexto familiar.

Nas diferentes bases de dados foram identificados 3.953 artigos que, através da leitura do título e do resumo, foram reduzidos para 140 artigos. Desses, através dos critérios de inclusão e exclusão, foram selecionados 81 artigos.

Os critérios de inclusão foram: artigos com título e/ou resumo com referência a violência psicológica ocorrida na infância e na adolescência, no contexto familiar, podendo estar sozinha ou acompanhada de outros tipos de violência.

Como critérios de exclusão têm-se: estudos exclusivos sobre outros tipos de violência doméstica; estudos sobre violência psicológica contra a mulher adulta, entre casal e contra a gestante, inclusive na faixa etária em estudo. Também foram excluídos textos em outras línguas que não o português, inglês e espanhol (4 artigos em francês e 3 em coreano).

A análise dos artigos se deu em duas etapas. Inicialmente 81 artigos selecionados foram integralmente lidos e categorizados (Tabela 1). A seguir, verificou-se que, dos 51 estudos epidemiológicos, 35 destes apresentavam como sujeito de pesquisa jovens adultos ou adultos que relatavam ter sofrido violência psicológica na infância no contexto familiar. Estes estudos retrospectivos dependem da capacidade de memória e podem introduzir um viés de informação 13. Este aspecto é relevante especialmente quando se considera que a dificuldade de resgatar as informações da exposição ocorrida no passado se agrava quando o efeito em estudo carrega forte carga emocional, como é o caso de ter sofrido violência psicológica de pessoa significativa na infância. Por essa razão, apenas uma visão geral desses 35 artigos é apresentada na seção de resultados.

Optou-se então por analisar detalhadamente os artigos onde o sujeito de pesquisa sofreu há pouco tempo ou está sofrendo ainda violência psicológica no contexto familiar, como é o caso de crianças e adolescentes. Assim, foram selecionados 16 artigos (4 nacionais e 12 internacionais) com seus resultados expostos a seguir.

 

Resultados

Dados gerais dos artigos sobre violência psicológica ocorrida na infância e na adolescência

Dos 81 artigos analisados apenas cinco pertencem à literatura brasileira; 93,8% são internacionais. Em sua maioria, os artigos foram publicados na língua inglesa.

Na Tabela 1 pode-se constatar o crescente interesse pelo tema. Os anos 70 respondem por apenas 1 artigo (1,3%) do total; o crescimento é progressivo, chegando a 56 artigos (69%) publicados na primeira década do novo século.

Ainda na Tabela 1 vê-se que aproximadamente um em cada 3 artigos é teórico-conceitual e aborda a grande dificuldade de se definir e conceituar a violência psicológica. Esse tipo de publicação aumenta no decorrer das décadas. A reflexão sobre os conceitos, dada sua dimensão, não faz parte do presente artigo.

Nos 51 estudos epidemiológicos encontrou-se que 14 destes (27,5%) são exclusivos com amostra do sexo feminino 14,15,16,17,18,19,20,21,22,23,24,25,26,27. Em relação à idade dos entrevistados, 35 artigos (68,6%) utilizaram como amostra de pesquisa a faixa etária dos adultos e 16 artigos (31,4%), adolescentes e crianças 10,27,28,29,30,31,32,33,34,35,36,37,38,39,40,41 .

Em relação ao desenho do estudo dos artigos verificou-se que 35 estudos eram transversais sendo 7 destes relacionados ao desenvolvimento e validação de instrumentos psicométricos; 11 artigos apresentavam estudos longitudinais e 5 artigos utilizaram metodologia caso-controle.

Quanto aos locais onde foram realizados os estudos 64% foram realizados nos Estados Unidos; seguido por países como Canadá, Brasil, África do Sul, Sri Lanka e países europeus.

Em relação aos objetivos destes artigos analisados, encontrou-se que 18 destes (35,3%) investigaram a exposição à violência psicológica na infância correlacionando-a a diversas variáveis, que demonstraram a associação dessa exposição com repercussões na saúde mental (ansiedade, depressão e tentativa de suicídio) e com repercussões na saúde física (distúrbios alimentares e a obesidade) 12,13,14,15,16,19,20,23,26,29,42,43, 44,45,46,47,48,49.

Os resultados de 8 artigos (15,6%) que estudaram a estimativa de prevalência de violência psicológica encontraram os percentuais entre 26% a 80% 25,30,41,50,51,52,53,54.

O estudo de violência psicológica como fator de risco, encontrado em 7 artigos (13,7%), apontam para bulimia nervosa, obesidade, ansiedade, depressão, estresse pós-traumático e distúrbios somáticos 21,22,27,28,55,56,57.

Sobre o desenvolvimento de instrumentos de pesquisa, 5 dos artigos (9,8%) têm esse interesse 10,17,18,33,39. Dois artigos, na categoria de outros, mostram pesquisas bem diferentes, uma sobre a análise de desenhos de crianças como instrumento de detecção de violência psicológica 58 e outro estuda as reações de universitárias filmando o encontro destas com pessoas não conhecidas 59.

Os resultados destes artigos reforçam as dificuldades de definição e detecção da violência psicológica, mas mostram a alta ocorrência desta na infância e seus efeitos no desenvolvimento tendo, a curto e longo prazo, impactos na saúde física e mental. Apresentam inúmeras escalas mostrando a dificuldade de detecção, mas também o crescente interesse e preocupação com tão grave abuso 10,12,13,15,18,25,27,28,30,33,34,37,38,42,45,48,51,55,57,58,59.

Artigos sobre vivência de violência psicológica informada por crianças e adolescentes

Na Tabela 2 veem-se informações sobre os 16 artigos em que crianças e adolescentes relatam a vivência de violência psicológica na família.

A partir dos dados apresentados na Tabela 2 nota-se que 4 artigos (25%) foram realizados em instituições de proteção a crianças e adolescentes, sendo esta população caracterizada pela convivência mais íntima com distintas formas de violência, não refletindo assim a população em geral. Já os demais artigos foram realizados com maiores grupos populacionais, sendo que 44,4% foram efetuados em escolas, com adolescentes. Os estudos que avaliaram crianças também entrevistaram os responsáveis, visando compreender o comportamento frente à educação dos filhos.

Dos 16 artigos estudados, 6 são realizados com população americana (37,5%) 10,11,29,32,34,37 e os restantes divididos em diferentes culturas: 2 no Canadá 28,36, 1 na Palestina 27, 1 na África do Sul 30, 1 em Sri Lanka 33, 1 em Israel 35 e 4 no Brasil 38,39,40,41. Neste aspecto, alguns investigadores preocuparam-se em desenvolver uma escala que se adapta ao contexto cultural 27,33,35 e outros em fazer a adaptação transcultural de escalas já existentes e com boa validade e confiabilidade 39.

A maioria dos artigos foi publicada na última década (94%), demonstrando o aumento no interesse neste tema. Porém parece que a dificuldade em relação à detecção desta natureza de violência ainda persiste: 11 diferentes escalas foram utilizadas em 16 artigos, sendo três destes referentes ao desenvolvimento de escala ou adaptação transcultural para aplicação em diferentes culturas. Em todos os artigos os autores se preocuparam com a questão da definição da violência psicológica, sendo que em alguns se realizou revisão conceitual e histórico do desenvolvimento de escalas que se aproximassem do tema pesquisado 10,27,31,32,34,37. Este fato é bem demonstrado no trabalho de Trickett et al. 37 que faz uma comparação da prevalência relatada em um departamento de proteção às crianças e às famílias (9% de casos de violência psicológica), em contraste com a aplicação de um instrumento específico para esta questão, nos mesmos relatos, identificando-se 50% de violência psicológica. Os artigos convergem no sentido de que, para a violência psicológica ser mais bem identificada, é preciso que se tenha um instrumento que a enquadre, defina e delimite 37.

Os objetivos dos artigos selecionados foram: desenvolver escalas, estimar prevalência, investigar fatores de risco na infância e avaliar a relação dos maus-tratos com problemas de saúde mental. Entre os artigos que investigaram a prevalência dos abusos na infância observa-se elevada a magnitude da violência psicológica na infância: 70,7% 30, 50% 35,37, 48% 38, 29% 40,41. Os artigos convergem no fato de que para que a violência psicológica se dê nas relações familiares é necessário que alguém significativo para a criança lhe transmita o sentimento de que é incapaz, de que suas necessidades emocionais não são reconhecidas e de que seus desejos não têm valor.

Os fatores de risco encontrados nos estudos foram muito variados, destacando-se, especialmente: pobreza, pai/mãe não biológicos ou separados, alienação ou precária autoestima da mãe, baixa amabilidade dos pais, gravidez ou parto complicados, baixo QI, dificuldades de temperamento 28; ambiente familiar, questões de gênero, disciplina rígida, suporte dos pais e valores familiares 27; satisfação com o casamento e idade da mãe 40.

Alguns problemas associados à convivência de violência psicológica na infância e constatados nos estudos foram: mau rendimento escolar; problemas emocionais (ansiedade, depressão, tentativa de suicídio e transtorno de estresse pós-traumático - TEPT); ser vítima de violência na comunidade e na escola, transgredir normas e vivenciar violência no namoro.

Dentre as escalas desenvolvidas, de uma forma geral há indicativos de relativa confiabilidade e validade, embora os estudos sejam recentes e ainda não estejam suficientemente replicados e avaliados em outros contextos. De uma forma geral nos estudos há detalhamento sobre: validade de conteúdo 29,33; consistência interna aferida por Α de Crombach acima de 0,92 29,39; concordância entre aplicadores com coeficiente de Pearson acima de 0,72 relatado por Brassard et al. 10 e acima de 0,90 para outros autores 34,35,37; confiabilidade teste-reteste acima de 0,80 para a maioria dos itens 11,33,37,39; validade de critério através de avaliação psiquiátrica 33; validade de constructo medida por frequência/participação escolar 33 e apoio social, autoestima, violência severa cometida pelos pais 39; além da apresentação da análise fatorial dos itens que compõem a escala 29,39.

 

Discussão

Qualquer análise da violência deve começar pela definição de suas várias formas 2, de modo a permitir que a discussão científica avance e que se possibilitem formas de mensuração fidedignas. No caso da violência psicológica, constatou-se que inicialmente houve uma preocupação com a definição e a conceituação, para que se pudesse partir para a reflexão sobre as formas de operacionalização do problema. Observou-se o aumento do interesse pelo tema principalmente na última década e o desejo de aprofundamento do conhecimento com estudos longitudinais, considerando-se que a magnitude da violência psicológica comprova a relevância de se estudar essa natureza de violência. Todavia, vale a pena ressaltar que questões conceituais certamente ainda não foram superadas, refletindo na ampla variedade de tipos de aferição e de instrumentos existentes tentando mensurar as distintas formas a violência psicológica. O problema está bem presente e seu enfrentamento tem hoje crucial importância, como apontam alguns artigos desta revisão 5,6,7,8,9,15.

Frente às dificuldades de detecção da violência psicológica encontrou-se nos estudos epidemiológicos selecionados a relevância do uso de instrumentos para aferir a ocorrência de violência psicológica, sendo que o uso de escalas pode beneficiar a possibilidade de associações e correlações dos resultados destas com diferentes variáveis, obtendo-se assim, a estimação de fatores de risco e de proteção, o que contribuiria com informações sobre populações que necessitam de intervenções preventivas, cumprindo uma das metas da saúde pública que é colocar esse conhecimento científico em prática 2.

Muito do que se sabe sobre a violência não fatal provém de pesquisas e estudos especiais em diferentes grupos populacionais 2, como visto nos artigos selecionados nesta revisão de literatura. Além disso, o fato dos artigos serem realizados em diferentes culturas aumentou a contribuição para o conhecimento do tema, reforçando que a violência vivida na infância, em especial a violência psicológica, origina danos reais e potenciais na saúde física e mental de crianças e adolescentes, tendo repercussões a curto e longo prazo, ou seja, refletindo também na vida adulta destas pessoas 14,15,16,17,20,21,22,23, 24,25,43,44,45,46,47,48,49,55. É importante sensibilizar a rede de atenção a vítimas de violência e a sociedade em geral com a noção de que a violência psicológica promove uma mensagem cultural específica de rejeição que prejudica de forma relevante o processo de socialização e desenvolvimento psicológico, com graves efeitos especialmente quando ocorre na infância e adolescência 27,28,30,33,35,36,38,39.

Encontrou-se também que crianças e adolescentes que sofrem violência no contexto familiar, por parte de pessoas significativas (a quem amam e de quem, na verdade, esperam cuidados e proteção), estão mais vulneráveis e podem tornar-se mais suscetíveis à violência em outros ambientes sociais, como escola, comunidade e nas relações de namoro 35,36,38. A violência familiar representa um importante fator de risco para o adequado desenvolvimento e integração social, embora seja frequentemente justificada pelos agressores como formas de educar e corrigir comportamentos indesejáveis 41.

Vale a pena ressaltar que os artigos partem do pressuposto de que durante toda a infância e a adolescência, o crescimento e desenvolvimento adequados dependem de diferentes fatores relacionados aos cuidados básicos especialmente de responsabilidade da família, cujos prejuízos podem ser manifestados de diferentes formas, de acordo com a duração e intensidade do comprometimento 27,28,35.

Os 16 artigos que utilizaram os relatos de crianças e adolescentes que vivem ou viveram há pouco tempo violência psicológica no contexto familiar mostram prevalência muitíssimo alta: 70,7% 30; ou muito alta: 50% 35,37, 48% 38, 29% 40,41. Esses artigos indicam também a associação com problemas de saúde mental 28,29,34, sinalizando a possibilidade de futuros impactos na vida adulta. Neste sentido, a comparação com os 35 estudos epidemiológicos retrospectivos corroboram isso, já que estes demonstraram a ocorrência de efeitos em longo prazo na saúde de quem sofreu violência psicológica na infância no contexto familiar 12,13,14,15,16,19,20,23,26,29,43,44,45,46,47,48,49. Este fato reforça a importância desses estudos de prevalência para o planejamento de ações e administração de serviços de saúde, bem como para a elaboração de políticas, e para a saúde pública.

 

Considerações finais

Apesar da violência psicológica que atinge crianças e adolescentes não ser recente, apenas há 30 anos recebeu atenção internacional com crescente conscientização e sensibilização de profissionais e do público em geral. É um fenômeno universal que não tem limites culturais, sociais, ideológicos ou geográficos e ainda está envolto por um pacto de silêncio, principal responsável pelo ainda tímido diagnóstico e pelo reduzido número de notificações. Entretanto, como se constitui em um problema social crescente que não se limita às áreas da saúde, assistência social ou de justiça, qualquer cidadão, ao entrar em contato com crianças e adolescentes, deveria ser capaz de diagnosticar, relatar e ajudar a orientar estas crianças e seus responsáveis.

Assim, esta revisão da literatura mundial sobre a exposição à violência psicológica na infância, no contexto familiar, demonstra que a violência psicológica está saindo da invisibilidade, mas que ainda apresenta inúmeras dificuldades a serem vencidas, para o melhor enfrentamento de tão grave natureza de violência.

 

Colaboradores

C. D. Abranches participou da coleta e análise dos dados, da redação e da elaboração do artigo. S. G. Assis participou na redação, elaboração e revisão do artigo.

 

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Correspondência:
C. D. Abranches
Instituto Fernandes Figueira
Fundação Oswaldo Cruz
Av. Rui Barbosa 716
Rio de Janeiro, RJ 22250-020, Brasil
cecy@iff.fiocruz.br

Recebido em 12/Jul/2010
Versão final reapresentada em 03/Mar/2011
Aprovado em 29/Mar/2011

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br