ARTIGO ARTICLE
Utilização de serviços de saúde pela população adulta de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil: resultados de um estudo transversal
Health services utilization by the adult population in São Leopoldo, Rio Grande do Sul State, Brazil: a cross-sectional study
Juvenal Soares Dias-da-CostaI, II; Maria Teresa Anselmo OlintoI; Simoni Assunção SoaresI; Marcelo Felipe NunesI; Tatiane BagatiniI; Maximiliano das Chagas MarquesI; Lisiane Kiefer GuimarãesI; Letícia Possebon MüllerI; Fátima Carina de Souza MachadoI; Eduardo dos Santos BarcellosI; Marcos Pascoal PattussiI
IUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil
IIFaculdade de Medicina, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil
RESUMO
O objetivo do estudo foi descrever as características da população adulta em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil, quanto ao uso de serviços de saúde. Avaliaram-se como desfecho: não se consultar com médico no último mês, utilizar serviços do SUS e se consultar nos serviços privados. Foi realizado um estudo transversal com indivíduos de ambos os sexos, de 20 a 69 anos. Das 1.098 pessoas respondentes, 623 (56,7%; IC95%: 53,8-59,7) não haviam se consultado com médico no último mês. Dos 487 indivíduos que tinham se consultado, 51,2% utilizaram os serviços do SUS, 26,9% os serviços privados e 22% outros serviços. Consultar estava associado com sexo feminino e idade elevada. A análise evidenciou que os indivíduos nas categorias intermediárias de renda, escolaridade e classe econômica se consultavam menos do que as correspondentes altas e baixas categorias. Os resultados sugerem que a classe intermediária, por não possuir "capacidade de compra" para serviços privados e/ou por não utilizar o sistema público, tenderia a procurar assistência de saúde com menor frequência.
Acesso aos Serviços de Saúde; Avaliação em Saúde; Equidade em Saúde
ABSTRACT
The aim was to describe healthcare utilization by adults in a Brazilian city. The outcomes were medical appointments in the previous month and use of public (Unified National Health System - SUS) versus private healthcare services. A population-based cross-sectional study with 1,098 adults aged 20 years or over was carried out. No medical appointment in the previous month was reported by 623 persons (56.7%, 95%CI: 53.8-59.7). Of the 487 individuals who had consulted a physician, 51.2% used the public healthcare system, 26.9% private care, and 22% other services. Consultation was associated with female gender and older age. Individuals in the intermediate categories for income, schooling, and socioeconomic status consulted less than the corresponding high and low categories. The results suggest that the middle class in this city lacks the purchasing power to seek care in the private sector while also using public services less, thus generally seeking healthcare less frequently.
Health Services Accessibility; Health Evaluation; Equity in Health
Introdução
As definições de sistemas de saúde que oferecem cuidados qualificados sempre incluem entre seus atributos o acesso facilitado aos serviços 1,2. Além disso, autores têm demonstrado que a oferta de cuidados primários em saúde é um aspecto importante para melhorar as condições de saúde da população 3,4. Para Travassos & Martins 5 (p. S192), "acesso é uma característica da oferta de serviços importante para a explicação do padrão de utilização de serviços de saúde", sendo que o uso compreende todo contato com os serviços de saúde.
Estudos epidemiológicos sobre serviços de saúde podem avaliar se o acesso universal, a integralidade dos cuidados ou se as bases da equidade estão sendo atingidos 6.
Diversas pesquisas brasileiras, por exemplo, ainda revelam as iniquidades na utilização dos serviços de saúde, principalmente em relação às condições demográficas e socioeconômicas 7,8,9,10. Estudos transversais de base populacional entre adultos realizados no Rio Grande do Sul têm mostrado que apesar da elevada utilização dos serviços de saúde, persistem marcadas diferenças entre indivíduos de acordo com características socioeconômicas. Na cidade de Rio Grande, por exemplo, foi mostrado que após ajuste para idade e sexo os grupos de menor renda e escolaridade tinham 62% menos probabilidade de usar serviços de saúde quando comparados com aqueles de maior renda 11. Estudos realizados em Pelotas encontraram diferenças socioeconômicas na utilização de serviços de saúde. Capilheira & Santos 12 observaram na análise ajustada por sexo e idade que indivíduos inseridos nas classes econômicas A e B consultavam 13% mais. Outro estudo realizado na mesma cidade apontou que tanto os homens quanto as mulheres de baixa renda se consultavam menos nos serviços ambulatoriais 13. Em São Leopoldo, uma pesquisa incluindo apenas a população feminina apontou que as mulheres inseridas nas classes econômicas C, D e E, com baixa renda e pior nível de escolaridade, apresentavam maiores prevalências de não uso de serviços de saúde 14. Assim, fica clara a importância da realização de estudos sobre o uso de serviços de saúde para a detecção e o apontamento de grupos populacionais excluídos das políticas de saúde.
O objetivo deste trabalho foi descrever o uso dos serviços de saúde e as características sociodemográficas associadas entre a população adulta do Município de São Leopoldo.
Métodos
Este é um estudo transversal realizado entre janeiro de 2006 e julho de 2007 com indivíduos de 20 a 69 anos, residentes na zona urbana do Município de São Leopoldo.
São Leopoldo está situado na região do Vale do Rio dos Sinos, área metropolitana de Porto Alegre, e apresentava uma população estimada para 2007 de 207.721 habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm/1, acessado em 02/Dez/2009). A Rede Municipal de Saúde está organizada em três níveis de atendimento: primário, com 28 unidades básicas fixas e móveis, oito Estratégia Saúde da Família cobrindo 18% da população; nível secundário com cinco Centros de Saúde e um Serviço Ambulatorial Especializado; e terciário por meio do Hospital Centenário, além de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS Adulto) e dois CAPS em fase de implantação (Infantil e Álcool e outras Drogas).
Para se calcular o tamanho da amostra, considerou-se poder de 85% para se detectar uma diferença de 7% na prevalência de autopercepção de saúde ruim entre áreas com alto e baixo capital social (principal desfecho estudado no projeto) e nível de 95% de confiança. Estimando-se 35 domicílios por setor e coeficiente de correlação intraclasse igual a 0,05, o tamanho da amostra foi aumentado em 20% no número de domicílios e em 10% no número de setores devido a possíveis perdas e para controlar fatores de confusão. Portanto, foi necessário um total de 1.520 domicílios em 40 setores censitários dos 270 existentes em São Leopoldo. A amostragem foi por conglomerados.
O instrumento de coleta de dados foi um questionário padronizado e pré-codificado aplicado aos responsáveis pelos domicílios presentes no momento da entrevista. Os instrumentos foram aplicados por estudantes de graduação e pós-graduação da UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), os quais receberam treinamento para realização das entrevistas. Os questionários e a logística foram testados em um estudo piloto realizado em outro setor não incluído no estudo. Por razões logísticas as entrevistas foram feitas durante o horário comercial.
Foram analisados três desfechos: não se consultar com médico no último mês, utilizar os serviços do SUS e se consultar nos serviços privados de saúde. Foi perguntado se os indivíduos haviam se consultado com médico nos últimos 30 dias. O desfecho inicialmente analisado foi não se consultar com médico no último mês. Entre os indivíduos que tinham se consultado foi indagado o local da consulta com três respostas possíveis: serviços do SUS, em serviços privados, e em outros serviços. Construíram-se duas variáveis dummies: utilizar os serviços do SUS e se consultar nos serviços privados de saúde.
As variáveis socioeconômicas analisadas foram: renda familiar (em salários mínimos), escolaridade (em anos de estudos), classe econômica. As variáveis renda familiar e escolaridade foram categorizadas em: alta (25% dos maiores escores dentre os indivíduos), média (50% dos escores intermediários) e baixa (25% dos escores menores). A classificação de classe econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas e Mercados (ABEP. Critérios de Classificação Econômica no Brasil. http://www.abep.org/codigiguias/criterio_Brasil_2008.pdf, acessado em 02/Dez/2009) é um escore baseado no acúmulo de bens materiais e escolaridade.
As variáveis demográficas foram referentes a sexo, faixa etária, cor da pele observada pelo entrevistador (branca, preta/parda) e estado civil (casado, solteiro, outros).
A entrada de dados foi realizada no programa Epi Info 6 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos) em dupla entrada e posterior comparação, para se eliminar a probabilidade de erros de digitação. A análise bruta foi realizada no programa SPSS, versão 17 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos), descrevendo as razões de prevalência, os intervalos de 95% de confiança (IC95%) e testes estatísticos. Foi realizada análise ajustada, usando-se o programa Stata, versão 11 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos), utilizando-se a regressão de Poisson com variância robusta 15. Ingressaram na análise ajustada as variáveis que alcançaram valor de p ≤ 0,20 na análise bruta.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNISINOS em 2006 (CEP nº. 04/034).
Resultados
Foram realizadas 1.098 entrevistas em 38 setores, sendo que as perdas ocorreram por: recusas (4%) e pessoas ausentes na residência (2%).
Quanto à descrição das características dos indivíduos incluídos no estudo, observou-se que 56,2% foram classificados como de renda familiar média (mediana 5,1 salários mínimos), 65,2% apresentavam escolaridade média (mediana 8,0 anos) e 45,9% estavam inseridos na classe econômica C. Em relação às características demográficas, 71,9% eram mulheres, 23,5% estavam na faixa etária de 40-49 anos (mediana 44,0), 83,9% foram classificados como de cor da pele branca e 55,9% eram casados (Tabela 1).
Entre as 1.098 pessoas respondentes, 623 (56,7%; IC95%: 53,8-59,7) não haviam se consultado com médico nos últimos 30 dias. Entre os 485 indivíduos que tinham se consultado com médico no último mês, 51,2% utilizaram os serviços do SUS, 26,8% os serviços privados de saúde e 22% outros serviços.
Na análise bruta observaram-se os homens se consultando menos que as mulheres. A prevalência de não se consultar com médico foi 16% maior entre os homens. Os indivíduos de 40-59 anos também se consultaram menos. Os de renda familiar média se consultaram menos. Entretanto, os entrevistados com menor nível de escolaridade apresentaram menores prevalências de não consulta. Não foram observadas associações estatisticamente significativas em relação à renda, classe econômica da ABEP (valor de p = 0,84), cor da pele (valor de p = 0,85) e estado civil (valor de p = 0,10) (Tabela 1).
Na análise ajustada de não consulta médica mantiveram associação com o desfecho as variáveis sexo, idade, escolaridade e renda familiar. Em relação à prevalência de não realização de consultas médicas no último mês, esta foi 21% maior entre os homens do que nas mulheres. Quanto à idade, os grupos entre 40-49 e 50-59 anos tiveram uma ocorrência do desfecho 19% e 25% maiores do que aqueles de 20-29 anos, respectivamente. Ainda, no grupo com escolaridade mais baixa, a prevalência de não consulta foi 12% menor do que naqueles com mais anos de estudos. Também, entre os indivíduos com renda familiar classificada como média, a ocorrência do desfecho foi 26% maior do que naqueles com renda mais alta (Tabela 2).
Os indivíduos de renda elevada se consultaram predominantemente nos serviços privados de saúde, enquanto aqueles inseridos na categoria de baixa renda majoritariamente procuraram o SUS (Figura 1).
Quanto ao uso de serviços do SUS, 77,9% eram mulheres (valor de p = 0,12), 53% casados (valor de p = 0,12), 73,6% possuíam escolaridade média (valor de p < 0,001), 54,6% com renda familiar classificada como média (valor de p < 0,001) e pertencentes à classe C 47,7% (valor de p < 0,001). As variáveis cor da pele e idade não apresentaram associação com a realização de consultas pelo SUS. Após o ajuste das varáveis entre si, mantiveram associação estatística a renda familiar, com uma prevalência duas vezes maior entre aqueles com rendimentos menores do que os com renda alta. Os indivíduos com escolaridades média e baixa também apresentaram maiores prevalências de consultas no SUS, assim como os entrevistados classificados nas classes econômicas D e E (Tabela 3).
Em relação aos indivíduos que se consultaram com médico no último mês nos serviços privados de saúde, somente renda familiar, escolaridade e classe econômica pela ABEP apresentaram associação estatística. Apenas 8,1% dos entrevistados de baixa renda acessaram os serviços privados de saúde. Observou-se maior prevalência de consultas ao sistema privado entre os indivíduos de escolaridade elevada (64,1%). A análise da classe econômica ABEP, mostrou que a prevalência de consultas nos serviços privados foram 43,7% nas classes A e B e apenas 11% nas classes D e E. As variáveis sexo, idade, cor da pele e estado civil não apresentaram associação estatística com a realização de consultas privadas. A análise ajustada mostrou que os indivíduos com renda familiar média e baixa se consultaram menos no setor privado. O grupo classificado como de baixa escolaridade apresentou uma prevalência de consultas no serviço privado de saúde 15% menor do que a classe alta, e os indivíduos inseridos nas classes econômicas D e E se consultaram 11% menos (Tabela 4).
Discussão
Este estudo ampliou as informações sobre o uso de serviços de saúde em São Leopoldo, na medida em que incluiu a população masculina. As informações até então disponíveis referiam-se a outro estudo transversal, realizado em 2003, que incluiu exclusivamente a população feminina 14. Vale destacar que a coleta de dados de ambos os estudos foi realizada nos mesmos setores censitários e que a distribuição por idade, renda e escolaridade destes locais foi semelhante àquela verificada no censo para São Leopoldo. Entretanto, a pesquisa incluiu as pessoas reconhecidas como responsáveis pelo domicílio presentes no momento da entrevista, o que pode explicar o desvio observado na proporção de homens. Outros estudos transversais também constataram uma maior proporção de mulheres 11,12,13.
Pesquisas sobre a utilização de serviços de saúde têm empregado medidas diferentes quanto à temporalidade. No presente estudo, utilizou-se "consulta médica no último mês", o que dificulta problemas de recordatório decorrentes de períodos mais prolongados 16.
Com base na prevalência de consultas médicas observadas seria possível estimar que se o porcentual fosse mantido, a cada dois meses aproximadamente toda a população de São Leopoldo receberia, pelo menos, uma consulta médica, equivalendo a seis consultas/ano.
A análise das variáveis demográficas mostrou resultados condizentes com outras pesquisas semelhantes. As mulheres e as pessoas a partir de 60 anos se consultaram mais. Outros estudos nacionais tinham mostrado que as mulheres se consultaram mais do que os homens 7,8. Tem sido constatado que as pessoas idosas necessitam de mais cuidados de saúde por apresentarem múltiplas morbidades, conforme relatados em estudos brasileiros 9,17,18,19,20,21.
Entretanto, no presente estudo um achado foi relevante. Na análise entre "quem não consultou", não foram encontradas diferenças entre as variáveis socioeconômicas nas categorias extremas. A análise evidenciou que os indivíduos nas categorias intermediárias de renda, escolaridade e classe econômica se consultavam menos. Estudos realizados no Brasil têm mostrado diferenças entre o uso de serviços de saúde e condições socioeconômicas, sempre constatando que os grupos sociais menos favorecidos têm menor utilização de serviços de saúde. Deve-se destacar que os indivíduos das classes D e E, e até mesmo as pessoas inseridas nas categorias intermediárias se consultam menos 7,9,20. Esses achados são particularmente importantes em relação à saúde das mulheres, no que diz respeito a exames de detecção precoce de afecções como câncer de colo uterino e de mama. Outros estudos, no entanto, revelaram que a implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF) pode atenuar essas desigualdades 21,22. Contudo, em São Leopoldo a cobertura da ESF não pode ser considerada elevada, atingindo 18%. Porém, o achado pode ser explicado pelo elevado número de consultas médicas. Uma possível explicação para o fato, portanto, seria o de que as classes extremas estariam cobertas pelo setor privado, no caso das classes A e B e de renda familiar alta, e pelo SUS no caso das classes D e E e de renda familiar baixa. A classe intermediária não possuindo "capacidade de compra" para ingresso nos serviços privados 23 e acesso ao público 24 apresentaria uma maior predisposição a não consulta.
O presente estudo revelou também que o local de consulta independe das condições demográficas, sendo claramente determinado pelas variáveis socioeconômicas. Outros estudos realizados em Pelotas também tinham constatado essas diferenças, mostrando que os indivíduos de melhor nível socioeconômico preferencialmente recorreram aos serviços privados, enquanto o padrão de utilização das pessoas mais pobres é o SUS 25,26.
Por fim, ressalta-se a importância da realização de estudos acerca da utilização de serviços de saúde, tendo em vista a sua capacidade para detectar iniquidades no sistema de saúde e contribuir para o seu contínuo aperfeiçoamento.
Colaboradores
J. S. Dias-da-Costa, S. A. Soares, M. F. Nunes, T. Bagatini, M. C. Marques, L. K. Guimarães, L. P. Müller, F. C. S. Machado e E. S. Barcellos, participaram da revisão bibliográfica, análise de dados e redação do artigo. M. T. A. Olinto colaborou na análise dos dados e revisão do texto final. M. P. Pattussi contribuiu na elaboração do projeto, análise dos dados e redação do artigo.
Agradecimentos
Projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, processo nº. 478503/2004-0), e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS, processo nº. 0415621).
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Correspondência:
J. S. Dias-da-Costa
Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Av. Unisinos 950
São Leopoldo, RS 90030-000, Brasil
episoares@terra.com.br
Recebido em 12/Jan/2010
Versão final reapresentada em 01/Mar/2011
Aprovado em 11/Mar/2011