ARTIGO ARTICLE

 

Impacto de um programa de atualização em alimentação infantil em unidades de saúde na prática do aleitamento materno e na ocorrência de morbidade

 

An infant feeding update program at healthcare centers and its impact on breastfeeding and morbidity

 

 

Juliana Rombaldi Bernardi; Cíntia Mendes Gama; Márcia Regina Vitolo

Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi avaliar o impacto de um programa de atualização em alimentação infantil na prática do aleitamento materno exclusivo (AME), ocorrência de diarreia e de sintomas de morbidade respiratória. Ensaio de campo randomizado por conglomerados foi conduzido na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, com vinte unidades básicas de saúde (UBS). Profissionais de saúde receberam informações sobre os Dez Passos da Alimentação Saudável para Crianças Menores de Dois Anos de Idade. Foram avaliadas 619 crianças com idade entre 6-9 meses. Observou-se maior duração do AME (p = 0,02) no grupo intervenção, porém sem significância na prevalência de diarreia e sintomas de morbidade respiratória. Análises complementares mostraram que a duração do AME foi maior no grupo de crianças sem ocorrência de diarreia (p = 0,001) e sem sintomas de morbidades respiratórias (p =0,03). Tais resultados sugerem que a estratégia de atualização não foi suficiente para interferir na ocorrência de morbidades, contudo foi eficaz em aumentar o tempo de AME.

Aleitamento Materno; Diarreia Infantil; Doenças Respiratórias; Serviços de Saúde


ABSTRACT

This study evaluated the impact of an infant feeding update program on exclusive breastfeeding and the incidence of diarrhea and respiratory illness in infants. A randomized cluster field study was conducted in the city of Porto Alegre, Rio Grande do Sul State, Brazil, with 20 healthcare centers. Health professionals received information on the Ten Steps to Healthy Feeding for Children up to Two Years of Age. We evaluated 619 infants 6-9 months of age. The results showed longer duration of exclusive breastfeeding (p = 0.02) in the intervention group but no significant differences in the incidence of diarrhea or respiratory symptoms. Complementary analyses showed that exclusive breastfeeding was longer in the group of children without the occurrence of diarrhea (p = 0.001) or respiratory symptoms (p = 0.03). The data suggest that the training was insufficient to affect incidence of illness, but that it was effective in extending exclusive breastfeeding.

Breastfeeding; Infantile Diarrhea; Respiratory Tract Diseases; Health Services


 

 

Introdução

Diversas estratégias sobre a promoção de efetivas práticas preventivas no apoio pós-natal vêm sendo implantadas para aumentar a prevalência e a duração do aleitamento materno exclusivo (AME), promover a alimentação infantil saudável e, consequentemente, melhorar as condições de saúde das crianças nos primeiros meses de vida.

Evidências consistentes sugerem que a prática do aleitamento materno (AM), sobretudo quando exclusivo, protege contra doenças como diarreia, infecções gastrointestinais e outros sintomas de morbidade infantil e fornece uma série de outros benefícios para a saúde da criança, no curto e longo prazos 1,2,3,4,5. Apesar da recomendação que o AME seja mantido até os 6 meses de vida da criança 6, estima-se que nos países desenvolvidos somente entre 24% a 32% das crianças sejam amamentadas exclusivamente até essa idade, sendo encontrados, ainda, valores inferiores nos países em desenvolvimento 7. Tal situação se torna evidente com os últimos resultados da II Pesquisa de Prevalência de Aleitamento Materno, realizada nas capitais brasileiras e no Distrito Federal, que indicou mediana de tempo de AME no Brasil de apenas 54,1 dias (1,8 mês) e probabilidade estimada de 9,9% das crianças estarem em AME aos 6 meses de idade na Região Sul 8.

Como o conhecimento e a prática dos profissionais de saúde constituem importantes instrumentos para melhorias na alimentação infantil, estudos que utilizem estratégias efetivas envolvendo-os no apoio pós-natal precisam ser realizados. Como exemplo, Curso Integrado de Aconselhamento em Alimentação Infantil, realizado com profissionais de saúde em São Paulo, consistindo de 40 horas de capacitação, com 8 horas de sessões práticas, encontrou melhora no conhecimento para o conjunto das questões de amamentação, HIV e alimentação infantil, alimentação complementar e aconselhamento em alimentação infantil. Quanto ao desempenho dos profissionais, verificou-se melhora significativa na prática de anamnese alimentar no grupo intervenção 9. No Brasil, os resultados referentes à formação continuada de profissionais de saúde, também apresentaram impactos positivos na frequência de AME aos quatro meses de idade (43% vs. 18%) e aos seis meses (15% vs. 6%) de crianças atendidas em Centros de Lactação, em São Paulo 10. Experiência semelhante à equipe multidisciplinar em Campinas, São Paulo, apresentou resultados positivos quanto à melhora do conhecimento das mães 11. Outro estudo realizado por Cattaneo & Buzzetti 12 na Itália comprova que curso no âmbito hospitalar de pelo menos três dias sobre os Dez Passos para o Sucesso do Aleitamento Materno, incluindo sessões práticas e aconselhamentos de habilidades foram efetivos em mudar as práticas e conhecimentos dos profissionais de saúde e melhorar os índices de AM.

Mediante o exposto acima, o objetivo deste estudo foi avaliar o impacto do programa Dez Passos para uma Alimentação Saudável: Guia Alimentar para Crianças Menores de Dois Anos 6 por meio de atualização de profissionais em unidades básicas de saúde (UBS), na duração do AME e na redução da ocorrência de diarreia e sintomas de morbidade respiratória em crianças entre 6 a 9 meses de idade.

 

Métodos

Local e desenho do estudo

As UBS participantes do estudo localizaram-se na cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, Brasil, com população estimada de 1.436.123 habitantes 13.

O estudo constituiu-se em um ensaio de campo randomizado por conglomerados, que avaliou o impacto de atualização em profissionais de saúde integrantes das equipes das UBS selecionadas. As UBS consideradas elegíveis para participar do estudo foram aquelas que apresentaram mais de 100 atendimentos de crianças menores de um ano de idade, no ano de 2006. Foram consideradas não elegíveis as UBS que participavam do Programa Saúde da Família (PSF) ou que tinham convênios com outras instituições de saúde, de ensino ou empresas. Foram selecionadas aleatoriamente duas UBS em cada uma das 8 regiões distritais da cidade, para o grupo denominado intervenção ou controle, resultando em 16 UBS. A escolha das UBS entre os grupos foi realizada por sorteio aleatório com envelope fechado. Quatro UBS elegíveis foram adicionadas durante o estudo para atingir o tamanho amostral necessário, resultando em 20 UBS participantes.

Atualização em alimentação da criança

Os profissionais de saúde das UBS randomizadas para o grupo denominado intervenção foram convidados a participar da atualização, com duração aproximada de 1 hora, mediada pelo investigador principal do estudo, no próprio espaço físico da UBS.

A atualização foi baseada nas diretrizes alimentares - Dez Passos para uma Alimentação Saudável: Guia Alimentar para Crianças Menores de Dois Anos 6. As recomendações consistiram em: incentivo da duração do AME até os 6 meses, mantendo o AM até os 2 anos ou mais; adequada introdução de alimentos complementares a partir dos 6 meses de forma lenta e gradual com recomendações sobre a consistência, qualidade e sua quantidade; estímulo do consumo diário de frutas, verduras e legumes; não incentivo do consumo de açúcar, café, enlatados, frituras, refrigerantes, balas, salgadinhos e outras guloseimas; práticas adequadas de higiene durante a preparação, armazenamento e alimentação; maneiras para estimular a criança doente a se alimentar.

Os profissionais de saúde receberam materiais educativos impressos com lembretes sobre as principais informações a serem consideradas na abordagem às praticas alimentares nos primeiros dois anos de vida junto à população. Esses materiais compunham-se de: três guias impressos dos Dez Passos da Alimentação Saudável para Crianças Menores de Dois Anos publicados pelo Ministério da Saúde 6, um guia de bolso para cada profissional das UBS, incluindo os funcionários da área administrativa e mais de 100 fôlderes para cada UBS para serem distribuídos às mães na puericultura. Dois cartazes foram entregues para as UBS alocadas no grupo intervenção, sendo um sobre a introdução de alimentos complementares, com as principais mensagens e imagens de alimentos permitidos e proibidos até os 2 anos de idade e outro com esquemas alimentares objetivos para crianças de 6 meses a 1 ano de idade e a partir de 1 ano. Os materiais educativos (guias de bolso, folhetos, cartazes e cartilhas) foram desenvolvidos especialmente para serem utilizados neste estudo.

As atividades e os atendimentos realizados nas UBS alocadas para o grupo controle foram mantidos inalterados durante todo o decorrer do estudo, sem intervenções ou influências dos pesquisadores e materiais educativos.

Coleta de dados

Monitorados pelo investigador principal do estudo, 15 pesquisadores treinados (estudantes de nutrição e nutricionistas) realizaram as entrevistas.

Durante o período de abril a dezembro de 2008, os entrevistadores compareceram às UBS intervenção e controle para identificar gestantes cadastradas nestes locais que estivessem no último trimestre de gestação. Posteriormente, essas mães foram contatadas em seus domicílios, e os dados referentes aos desfechos foram coletados após o nascimento da criança. Para a viabilidade do procedimento, foram obtidos a data provável do parto, o endereço e o contato telefônico das gestantes. Após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, as gestantes responderam a um questionário sobre dados socioeconômicos, demográficos, ambientais e domiciliares (abastecimento de água, condições de saneamento e esgoto). Gestantes HIV positivas foram excluídas do estudo. A duração de cada entrevista foi de aproximadamente 30 minutos (variando de 20-45 minutos).

A coleta de dados das crianças iniciou em novembro de 2008 e se estendeu até setembro de 2009. Nessa segunda entrevista, realizada no domicílio, o entrevistador, que desconhecia a origem do grupo, obteve dados referentes à prática alimentar da criança, dados de nascimento e condições de saúde nos primeiros seis meses de vida, incluindo a ocorrência de diarreia e de sintomas de morbidade respiratória. Foram registrados o tempo de introdução de água, chá, outros líquidos, outros leites e alimentos sólidos, o início e a duração do AME e AM.

Em relação à avaliação antropométrica, as crianças foram pesadas duas vezes, para assegurar pouca variabilidade inter e intraobservador, com balança digital de marca com precisão de 100g (Techline, São Paulo, Brasil). Para a pesagem, solicitou-se a retirada da fralda. O comprimento das crianças foi medido em decúbito dorsal com uso de estadiômetro de madeira de uso pediátrico. A duração de cada entrevista (questionário e avaliação antropométrica) foi de aproximadamente 60 minutos (variando de 45-90 minutos).

Ocorrência de diarreia e sintomas de morbidade respiratória

A ocorrência de diarreia foi considerada de acordo com a percepção da mãe, vale dizer, o relato da mudança nítida do padrão evacuatório da criança nos últimos 6 meses 10,14. Se as mães respondiam afirmativamente à pergunta, outras questões complementares eram solicitadas, como: quantas vezes a criança foi levada ao médico por esse motivo, se foi necessário utilizar terapia de reidratação oral, se os episódios duraram 3 ou mais dias consecutivos.

Os sintomas de morbidade respiratória incluíram a ocorrência de tosse e corrimento nasal ou coriza (por no mínimo 2 dias consecutivos); obstrução nasal; muco ou catarro, respiração rápida ou difícil e respiração com chiado ou assobio no peito, referentes ao último mês de vida da criança. Além disso, as mães informaram sobre a presença de doenças respiratórias diagnosticadas, como: bronquite bronquiolite, pneumonia, asma e sinusite, infecções e uso de medicamentos já referidos. Foi questionado se a criança teve gripe ou resfriado forte e febre (temperatura superior a 38°C) no último mês e se a criança já tinha sido internada 1 ou mais dias no hospital.

Cálculo amostral

A amostra foi estimada tendo em conta os desfechos analisados neste trabalho, pelo efeito da intervenção de resultado de estudo anterior 15. O número de pares mãe-filho foi calculado com base na ocorrência de diarreia e de sintomas de morbidade respiratória de 28,4% e 25,8% e 42% e 41% no grupo de intervenção e controle, respectivamente, isto é, diferenças entre os grupos de 13,6% para diarreia e 15,2% para sintomas de morbidade respiratória. Outros parâmetros utilizados para o cálculo foram: poder estatístico de 80%, nível de significância de 5% e 1,5 como coeficiente de correlação intracluster (ICC), resultando em tamanho amostral de 273 e 233 pares para cada grupo, totalizando 546 e 466 pares para diarreia e sintomas de morbidade respiratória, respectivamente. Considerando previsão de perdas da amostra de 10%, foi necessário número aproximado de 600 pares mãe-filho para que o tamanho amostral fosse atingido.

Qualidade dos dados

A revisão dos questionários foi realizada diariamente, e, quando havia informações incompletas ou não claras, outro pesquisador retornava ao domicílio ou telefonava para esclarecer as respostas. Foi realizada a confirmação dos dados, por ligações telefônicas, em 5% dos questionários, sorteados aleatoriamente.

Os dados foram codificados pelos próprios pesquisadores imediatamente após a entrevista. O banco de dados foi duplamente digitado no programa estatístico SPSS para Windows versão 11.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos) por 2 pesquisadores treinados, sendo posteriormente realizado o validate no programa Epi Info versão 6.4 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos).

Análises estatísticas

Os desfechos estudados incluíram a ocorrência de diarreia e de sintomas de morbidade respiratória (variáveis dicotômicas) em relação ao grupo intervenção ou controle, sendo o AME (meses de duração) uma covariável da análise.

As variáveis independentes analisadas foram renda familiar mensal (total de rendimentos da família em Reais), escolaridade materna e paterna (anos de estudo), número total de indivíduos no domicílio, idade materna (em anos), estrutura familiar (nuclear: pai, mãe e filhos; não nuclear: qualquer outra condição diferente), paridade, tabagismo materno (dicotômica) e histórico familiar de doenças respiratórias. Em relação às crianças, foram utilizados como variáveis: sexo, peso ao nascimento (menor ou maior a 2.500g), idade (em meses), relação baixo peso para estatura, presença em escolas de educação infantil (dicotômica), presença de animais no domicílio, uso de bico (dicotômica), consumo de água adequada (quando comprada, filtrada ou fervida) e consultas de puericultura. O AME foi definido como o uso de leite materno como único alimento oferecido à criança, sem oferta de chá e água. O estado nutricional das crianças foi calculado de acordo com o critério de desvios-padrão (DP) para o índice de peso para a estatura, utilizando o programa Anthro (Organização Mundial da Saúde. http://www.who.int/childgrowth/software/en/). As crianças com valores inferiores a -2 DP foram consideradas como de baixo peso para a estatura 16.

Todos os resultados foram analisados com base na intenção de tratar, ou seja, de acordo com alocação inicial do grupo intervenção ou controle. Os resultados foram baseados em análises individuais, mas com ajustes para o efeito cluster.

Os dados foram analisados pelo programa estatístico SPSS para Windows versão 16.0. As análises descritivas incluíram frequência, apresentadas por médias ou medianas, DP ou proporções. As análises bivariadas foram baseadas no modelo de Equações de Estimação Generalizada (GEE), método robusto, com distribuição de Poisson e função de ligação logarítmica, que representou a correlação intraindividual. Permaneceram associadas ao desfecho as variáveis com valor de p < 0,05.

Aspectos éticos

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), sob o número 545/07. Crianças com situações desfavoráveis, como obesidade, excesso de peso e baixa estatura foram encaminhadas às UBS para avaliação e tratamento.

O projeto foi registrado no ClinicalTrials.gov com o número NCT0063545.

 

Resultados

Das 736 gestantes elegíveis, 715 (97,1%) aceitaram participar do estudo. As perdas de seguimento estão apresentadas na Figura 1, representando 11,5% dos pares mãe-filho. Assim, 633 crianças foram avaliadas em seus domicílios entre 6 a 9 meses. Participaram das análises finais 619 crianças, pois 14 apresentaram doenças crônicas ou congênitas e por tal motivo não foram inclusas nas análises. O número de pares mãe-filho por UBS variou de 22 a 53, e todos os clusters foram incluídos nas análises. A coleta de dados foi planejada para ocorrer quando a criança completasse seis meses, porém por motivos de logística durante o seguimento, a mesma estendeu-se até os 9 meses. Logo, 95 (15,3%), 10 (1,6%) e 3 crianças (0,5%) foram visitadas aos 7, 8 e 9 meses de idade, respectivamente.

As características sociodemográficas não diferiram entre os grupos (p > 0,05), demonstrando randomização adequada (Tabela 1). A média de idade (DP) das gestantes foi de 25,5 (6,8) anos (variando de 12 a 44 anos), e 327 (52,8%) apresentavam nível médio de escolaridade e 482 (77,9%) eram casadas ou viviam com companheiro. O tamanho médio das famílias foi de aproximadamente 4 membros. A média de idade (DP) das crianças foi de 6,5 (0,6) meses; 52,5% (n = 325) eram do sexo masculino. Apenas 6 (1%) crianças não compareceram às consultas de puericultura; 14 (2,3%) foram consideradas de baixo peso para estatura. Não houve diferenças significativas entre as gestantes que se recusaram a participar (n = 21) e as perdas durante o estudo (n = 82) nas variáveis grupos (intervenção ou controle), escolaridade materna, escolaridade paterna, idade da mãe, estrutura familiar e renda familiar, em comparação àquelas que completaram o estudo.

 

 

Embora 53% das mães (n = 324) tenham iniciado o AM 1 hora após o parto, a maioria das crianças não recebeu AME até os 4 e 6 meses, representando 20,8% e 2,7%, respectivamente. A proporção de crianças que nunca mamou foi de 1% (n = 6) e a média (DP) da duração do AME foi de 2,1 (1,6) meses de idade (variando de 0 a 6 meses).

Em relação ao impacto da intervenção sobre a prática do aleitamento materno exclusivo, houve diferença significativa entre a média (DP) de duração do AME nos grupos intervenção e controle. Entretanto, não foi observada diferença entre a ocorrência de diarreia e sintomas de morbidade respiratória entre os grupos (Tabela 2).

 

 

Ocorrência de diarreia e de sintomas de morbidade respiratória

A ocorrência de diarreia nos últimos seis meses foi de 38,1% (n = 236), e 49% (n = 106) das crianças necessitaram de atendimento médico por esse motivo. Oitenta e uma (34,3%) crianças necessitaram de terapia de reidratação oral e tiveram episódios de diarreia com duração de 3 ou mais dias consecutivos. A ocorrência de diarreia não foi influenciada pela estação do ano (p = 0,24).

A ocorrência de pelo menos dois sintomas de morbidade respiratória, durante o mês anterior ao estudo, foi de 57,8% (n = 358) e diferiu de acordo com a estação do ano, sendo a maior ocorrência, como esperado, no inverno (p = 0,02). A ocorrência de febre foi de 32,2% (n = 200), infecções de 21,5% (n = 133) e gripe ou resfriado forte de 18,9% (n = 117). Quase todas as crianças (96,6%; n = 598) receberam medicação e 21,3% (n = 132) delas foram internadas uma ou mais vezes.

As crianças com diarreia e sintomas de morbidade respiratória tiveram significativamente mais febre (p < 0,001) e infecções (p < 0,001). Crianças com diarreia tiveram mais internações hospitalares (p < 0,001). A ocorrência desses desfechos foi maior nas crianças com menor tempo de aleitamento materno exclusivo (Tabela 3).

 

 

Discussão

Prevenir as principais morbidades que ocorrem nos primeiros anos de vida da criança é um desafio, especialmente em grupos populacionais com limitadas condições socioeconômicas e educacionais. Em razão disso, o Ministério da Saúde desenvolveu o programa Dez Passos para Alimentação Saudável para Crianças Menores de Dois Anos. A eficácia do programa foi avaliada pela primeira vez em estudo de campo randomizado, utilizando como estratégia metodológica visitas domiciliares às mães por estudantes universitários. Os resultados mostraram redução na ocorrência de diarreia e sintomas de morbidade respiratória entre crianças de 12 a 16 meses do grupo intervenção, cujas mães receberam orientações sobre práticas de alimentação no primeiro ano de vida 15,17. A implementação das diretrizes alimentares utilizando os serviços de atenção primária à saúde, metodologia aplicada no presente estudo, gerou novos conhecimentos sobre o tema.

Os resultados deste estudo mostraram impacto positivo no tempo de duração do AME e associação dessa prática com a redução na ocorrência de diarreia e sintomas de morbidade respiratória; os grupos controle e intervenção, todavia, não mostraram ocorrências diferentes dessas morbidades. O efeito positivo de programas de incentivo ao AME já foi demonstrado por estudos no Brasil e no mundo, com diferentes metodologias e níveis de impacto. Várias estratégias de intervenção vêm sendo testadas, como implementação do programa Dez Passos para o Sucesso do Aleitamento Materno por meio da Iniciativa Hospital Amigo da Criança 18; combinação de suporte pós-natal em Hospitais Amigos da Criança 19; visitas domiciliares por meio de conselheiros1 ou representantes da comunidade 2; combinação de educação pré-natal e suporte pós-natal por conselheiros de lactação 20, entre outras. Entretanto, revisão sistemática com o objetivo de avaliar a efetividade de programas de intervenção para reduzir morbidades no primeiro ano de vida, concluiu que os estudos realizados até o período da revisão não foram suficientes no estabelecimento de evidências consistentes deixando, portanto, uma lacuna sobre o assunto 21.

A ausência de impacto da atualização na ocorrência de diarreia e sintomas de morbidade respiratória verificada neste estudo, mesmo com o aumento da duração do AME no grupo intervenção, remete os pesquisadores a algumas considerações. Uma delas é a importância da interferência de fatores ambientais na ocorrência das morbidades. Estudos mostram que, além do aumento na prática da amamentação, outros motivos também foram responsáveis pela queda da diarreia no Brasil, como as intensas e bem sucedidas campanhas de terapia de reidratação oral, a melhora nas condições de saneamento básico da população, o processo geral de desenvolvimento econômico com redução dos níveis de pobreza e o maior acesso à assistência primária à saúde 22,23. Somam-se a esses fatores, no caso das morbidades respiratórias, a influência da exposição do bebê ao fumo na gestação e sua associação com asma e sibilância 24. Contudo, neste estudo, a Tabela 1 demonstra a similaridade das variáveis ambientais investigadas entre os grupos intervenção e controle. Sugere-se que a falta de impacto encontrada possa ser pela ausência de investigação de alguma outra variável próxima aos desfechos, mais prevalente no grupo controle, o que minimizaria o impacto da atualização nas morbidades, mesmo com o aumento do AME no grupo intervenção. Estudo anterior, em que as orientações foram dadas sistematicamente pelos pesquisadores nos domicílios, encontrou diferença entre os grupos nos desfechos de morbidades, possivelmente por causa das visitas terem estimulado maior cuidado e preocupação das mães com os aspectos alimentares e higiênicos do lactente 15.

Outra consideração a ser feita é o viés de memória das mães, pois os desfechos analisados foram autorrelatados. Porém, sabe-se que o viés de memória foi aleatório, ou seja, randomizado em ambos os grupos. Então, caso as respostas tenham sido enviesadas pela memória, isso provavelmente ocorreu igualmente entre os grupos, por se mostrarem similares nas variáveis socioeconômicas e demográficas. Portanto, sugere-se que a influência deste viés nos resultados não tenha influenciado a ausência de impacto dos sintomas entre os grupos.

Como os estudos randomizados por conglomerados podem ser mais suscetíveis a vieses que comprometam o resultado final do trabalho 25, alguns cuidados foram planejados e executados neste estudo: o cálculo amostral foi ajustado para o ICC; a randomização foi realizada por conglomerados, mostrando-se adequada pela ausência de diferenças socioeconômicas entre os grupos; nas análises estatísticas, considerou-se o efeito de cluster (modelo GEE), para minimizar o erro do tipo I, isto é, resultados com valores de p muito pequeno e intervalos de confiança estreitos 26.

Sobre a estratégia de intervenção utilizada nas UBS neste estudo, destaca-se a objetividade do programa, pois o pouco tempo disponível dos profissionais de saúde para participar de atualizações, conferiu-lhe condição mais factível e viável como programa. Entretanto, é possível que o tempo utilizado para tal tenha sido insuficiente para promover resultados de maior impacto. É importante considerar a relação custo-benefício dos programas a serem implantados em serviços públicos de saúde, já que podem apresentar limitações financeiras e programas de alto custo não são viáveis. Estudo realizado na Índia mostrou diminuição nos custos operacionais de programas sobre redução de mortalidade neonatal e morbidades na infância, promovendo maior conhecimento dos profissionais de saúde nos serviços 27. Revisão sistemática recente sugere que, dada a escassez de conclusões baseadas em evidências sobre a eficácia da integração de programas de saúde, os investimentos devem ser feitos mediante estudos com desenhos robustos, que apresentem grupos controle e intervenção, resultados válidos e confiáveis e análises de custos 28.

Este estudo também demonstrou que a ocorrência de diarreia e sintomas de morbidade respiratória esteve associada à febre, infecções e internações hospitalares, sugerindo ocorrer complicações adicionais, o que pode contribuir para maiores custos de medicamentos e hospitais. Tal afirmação é fundamentada por estudo transversal realizado em Nova Delhi, Índia, no qual se identificou que das 101 crianças com episódios de diarreia nas últimas duas semanas, mais da metade, 55%, apresentou sintomas graves como febre, perda de sangue nas fezes, vômito persistente, e apenas 17% não tiveram sintomas relacionados à diarreia 29. Indicadores de morbidades e fatores de risco do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS. http://tabnet.datasus.gov.br, acessado em 10/Abr/2009) mostraram que aproximadamente 270 mil internações hospitalares entre crianças menores de cinco anos ocorreram por conta da diarreia. Diante dos recursos limitados e das muitas doenças a tratar, as considerações econômicas também são importantes no contexto da assistência médica. Desse modo, com a redução do número de internações haveria menor gasto hospitalar anual. Estudo realizado no Rio de Janeiro quantificou em média 4,8 dias o tempo de permanência e R$ 34,50 o custo diário de internação por diarreia nos menores de um ano, nos hospitais do SUS, e o uso de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) quadruplicou o valor da internação 30.

Em conclusão, a proposta de atualização foi efetiva em aumentar a prevalência de crianças com maior tempo de AME. Apesar da ausência de impacto na ocorrência das morbidades estudadas entre os grupos intervenção e controle, acredita-se que a associação observada entre a duração do AME e a redução na ocorrência das morbidades, constitui-se em efeito indireto do programa.

 

Colaboradores

J. R. Bernardi contribuiu com a análise e interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada. C. M. Gama contribuiu com a revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada. M. R. Vitolo contribuiu com a concepção do projeto, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem aos coordenadores dos centros de saúde de Porto Alegre pela oportunidade e pelo apoio recebido durante este estudo. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) e ao Ministério da Saúde.

 

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Correspondência:
J. R. Bernardi
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Rua Sarmento Leite 245, Porto Alegre, RS 90050-170, Brasil.
juliana.bernardi@yahoo.com.br

Recebido em 28/Ago/2010
Versão final reapresentada em 26/Mar/2011
Aprovado em 11/Abr/2011

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br