“ Atualmente recorre-se às drogas diante das incertezas da vida, como forma de diminuir a ansiedade, de estar em um mundo conflituoso. (...) O consumo de drogas cresceu numa sociedade em que os valores humanos e afetivos são deixados de lado e as necessidades básicas emocionais são canalizadas para o consumo desenfreado, do prazer a qualquer custo, em que o eu sempre prevalece em detrimento do coletivo ” 11 . Passagli M. Toxicologia forense: teoria e prática. 3aEd. Campinas: Millennium Editora; 2011. (p. 52).
O mundo das drogas está em constante transformação. Os usuários experimentam novas drogas em busca de diferentes sensações e experiências e os fabricantes lançam novos produtos, com fórmulas diferenciadas para satisfazer a demanda do mercado e tentar burlar a lei 22 . Burillo-Putze G, Climent B, Echarte JL, Munné P, Miró Ó, Puiguriguer J, et al . Drogas emergentes (I): las “smart drugs”. An Sist Sanit Navar 2011; 34:263-74. .
É nesse contexto que se enquadram as drogas legais ( legal highs ): fármacos criados ou modificados a partir de alterações na estrutura molecular de substâncias ilegais conhecidas, sem a perda dos efeitos psicotrópicos. O uso recreativo busca os mesmos efeitos das drogas ilícitas, mas esses compostos não são listados como produtos controlados pela legislação vigente, o que dificulta a apreensão dessas substâncias. Os usuários podem comprá-las facilmente pela Internet, sem prescrições médicas ou restrições legais 22 . Burillo-Putze G, Climent B, Echarte JL, Munné P, Miró Ó, Puiguriguer J, et al . Drogas emergentes (I): las “smart drugs”. An Sist Sanit Navar 2011; 34:263-74. , 33 . Alves AO, Spaniol B, Linden R. Canabinoides sintéticos: drogas de abuso emergentes. Rev Psiquiatr Clín 2012; 39:142-8. , 44 . Ambrósio JCL. O crescimento do uso de drogas sintéticas “legais” no Brasil. Revista Perícia Federal 2012; (29):22-5. .
As legal highs são consideradas alternativas legais às drogas clássicas, porém são escassos os estudos farmacológicos e toxicológicos que demonstrem a sua segurança em humanos, sendo que, a informação de uso, dos riscos e efeitos são geralmente obtidas na Internet em sites informais ou com o próprio vendedor da substância 22 . Burillo-Putze G, Climent B, Echarte JL, Munné P, Miró Ó, Puiguriguer J, et al . Drogas emergentes (I): las “smart drugs”. An Sist Sanit Navar 2011; 34:263-74. , 55 . Coppola M, Mondola R. Research chemicals marketed as legal highs: the case of pipradol derivatives. Toxicol Lett 2012; 212:57-60. . Dessa forma, a falta ou a má qualidade das informações pode levar usuários à suposição equivocada da segurança desses produtos 66 . Schmidt MM, Sharma A, Schifano F, Feinmann C. “Legal highs” on the net-evaluation of UK-based websites, products and product information. Forensic Sci Int 2011; 206:92-7. .
As legal highs são produzidas por alterações na estrutura molecular de seus precursores e sua classificação tem como base o composto de origem 77 . Pérez-Álvarez V. Catinona y derivados: farmacologia y potencial uso como precursores de anfetaminas. Revista Latinoamericana de Química 2011; 39:32-43. . Podem ser classificadas em catinonas sintéticas, piperazinas, canabinoides sintéticos, derivados da triptamina, da feniletilamina, do pipradrol e da fentanila e plantas contendo alcaloides ou terpenos com efeitos psicotrópicos 88 . Bovens M, Schläpfer M. Designer drugs/research chemicals/legal highs: a survey of recent seizures and an attempt to a more effective handling from a Swiss perspective. Toxichem Krimtech 2011; 78:167-75. .
As brechas na fiscalização e controle de drogas propiciaram um novo mercado, focado principalmente em sites de vendas pela Internet de substâncias psicoativas supostamente “legais” e que representam um desafio de saúde pública devido à facilidade de aquisição pelo usuário 44 . Ambrósio JCL. O crescimento do uso de drogas sintéticas “legais” no Brasil. Revista Perícia Federal 2012; (29):22-5. , 99 . Jones AL. Legal “highs” available through the internet-implications and solution? Q J Med 2010; 103:535-6. .
Outro desafio enfrentado pelas autoridades é a rapidez com que uma nova droga chega ao mercado. O tempo entre o surgimento de uma nova droga e sua chegada ao mercado é de alguns dias ou semanas 88 . Bovens M, Schläpfer M. Designer drugs/research chemicals/legal highs: a survey of recent seizures and an attempt to a more effective handling from a Swiss perspective. Toxichem Krimtech 2011; 78:167-75. . Somente nos anos de 2009 e 2010 surgiram 65 novas substâncias no mercado europeu 22 . Burillo-Putze G, Climent B, Echarte JL, Munné P, Miró Ó, Puiguriguer J, et al . Drogas emergentes (I): las “smart drugs”. An Sist Sanit Navar 2011; 34:263-74. . Essa rápida inserção de novas drogas possibilita o comércio “legal” de substâncias potencialmente nocivas à saúde. Atualmente, na União Europeia, a introdução de substâncias na lista de proibição leva cerca de um ano e existem mais de cem compostos com atividade canabimimética que estão à espera de identificação na Europa 33 . Alves AO, Spaniol B, Linden R. Canabinoides sintéticos: drogas de abuso emergentes. Rev Psiquiatr Clín 2012; 39:142-8. , 88 . Bovens M, Schläpfer M. Designer drugs/research chemicals/legal highs: a survey of recent seizures and an attempt to a more effective handling from a Swiss perspective. Toxichem Krimtech 2011; 78:167-75. , 1010 . Kapka-Skrzypczak L, Kulpa P, Sawicki K, Cyranka M, Wojtyla A, Kruszewski M. Legal highs: legal aspects and legislative solutions. Ann Agric Environ Med 2011; 18:304-9. , 1111 . Fattore L, Fratta W. Beyond THC: the new generation of cannabinoid designer drugs. Front Behav Neurosci 2011; 5:60. .
Segundo o relatório do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, entre 1997 e 2010 mais de 150 novas substâncias psicoativas foram formalmente notificadas por meio do mecanismo de alerta rápido e estão agora sob controle 1212 . European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction. Annual report on the state of the drugs problem in Europe. http://www.emcdda.europa.eu/publications/annual-report/2011/ (acessado em 21/Out/2012).
http://www.emcdda.europa.eu/publications... . Em contrapartida, no Brasil, apenas sete substâncias foram identificadas e entraram para a lista de substâncias proibidas nos últimos cinco anos 1313 . Santana MMP, Souza MF, Cunha RL. 1-(3-Clorofenil) Piperazina (mCPP): uma nova droga sintética ilegal no Brasil. Revista Prova Material 2009; (12):24-7. . Entre elas destacam- se: Salvia divinorum , salvinorina A, 1-(1,3-benzodioxol-5-il)-2-(pirrolidin-1-il)-1-pentanona (MDPV), ergina, 4-metilhexan-2-amina (DMAA) e metanfetamina 1414 . Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC no37, de julho de 2012. Diário Oficial da União 2012, 3 jul. .
Estudos recentes avaliaram os efeitos do uso de legal highs sobre a saúde humana 1515 . Spiller HA, Ryan ML, Weston RG, Jansen J. Clinical experience with and analytical confirmation of “bath salts” and “legal highs” (synthetic cathinones) in the United States. Clin Toxicol (Phila) 2011; 49:499-505. , 1616 . Davies S, Lee T, Ramsey J, Dargan PI, Wood DM. Risk of caffeine toxicity associated with the use of “legal highs” (novel psychoactive substances). Eur J Clin Pharmacol 2012; 68:435-9. , 1717 . Gunderson EW, Haughey HM, Ait-Daoud N, Joshi AS, Hart CL. “Spice” and “K2” herbal highs: a case series and systematic review of the clinical effects and biopsychosocial implications of synthetic cannabinoid use in humans. Am J Addict 2012; 21:320-6. , 1818 . Lidder S, Dargan P, Sexton M, Button J, Ramsey J, Holt D, et al. Cardiovascular toxicity associated with recreational use of diphenylprolinol (diphenyl-2-pyrrolidinemethanol [D2PM]). J Med Toxicol 2008; 4:167-9. . Nesses trabalhos, evidenciou-se a ação dessas substâncias sobre os sistemas cardiovascular, digestivo, nervoso e endócrino de usuários. Em dois centros de toxicologia clínica nos Estados Unidos foram notificados 18 casos de intoxicação aguda por catinonas sintéticas, detectadas em sangue e urina de pacientes expostos a “sais de banho” 1515 . Spiller HA, Ryan ML, Weston RG, Jansen J. Clinical experience with and analytical confirmation of “bath salts” and “legal highs” (synthetic cathinones) in the United States. Clin Toxicol (Phila) 2011; 49:499-505. . Além disso, foram relatados dois óbitos 1010 . Kapka-Skrzypczak L, Kulpa P, Sawicki K, Cyranka M, Wojtyla A, Kruszewski M. Legal highs: legal aspects and legislative solutions. Ann Agric Environ Med 2011; 18:304-9. e um caso de lesão miocárdica após o consumo de uma legal high que continha desoxipipradrol (2-DPMP) 1818 . Lidder S, Dargan P, Sexton M, Button J, Ramsey J, Holt D, et al. Cardiovascular toxicity associated with recreational use of diphenylprolinol (diphenyl-2-pyrrolidinemethanol [D2PM]). J Med Toxicol 2008; 4:167-9. .
No Brasil, para que uma substância seja considerada proscrita ou controlada, ela precisa constar em uma das listas da Portaria nº 344/98 e tal decisão é da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) 44 . Ambrósio JCL. O crescimento do uso de drogas sintéticas “legais” no Brasil. Revista Perícia Federal 2012; (29):22-5. , 1313 . Santana MMP, Souza MF, Cunha RL. 1-(3-Clorofenil) Piperazina (mCPP): uma nova droga sintética ilegal no Brasil. Revista Prova Material 2009; (12):24-7. . A legislação brasileira apresenta as mesmas limitações e inconveniências das legislações de outros países, pois exige que o nome químico da substância conste nos anexos da Portaria. Dessa forma, há disparidade cronológica entre a disponibilidade no mercado e o controle legal dessas drogas. Por exemplo, o único canabinoide sintético proscrito no Brasil é o JWH-018, enquanto que na Europa já foram apreendidas as variações JWH-019, JWH-073 e JWH-250 e cinco variações da série cicloexilfenóis 1212 . European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction. Annual report on the state of the drugs problem in Europe. http://www.emcdda.europa.eu/publications/annual-report/2011/ (acessado em 21/Out/2012).
http://www.emcdda.europa.eu/publications... .
Como o número de compostos identificados em outros países é maior, acredita-se que estes compostos futuramente serão introduzidos no mercado brasileiro 44 . Ambrósio JCL. O crescimento do uso de drogas sintéticas “legais” no Brasil. Revista Perícia Federal 2012; (29):22-5. . Sendo assim, é preciso adequar a legislação à nova realidade das drogas sintéticas.
A adoção de leis mais abrangentes com a introdução de cláusulas genéricas que permitam que classes inteiras de substâncias sejam proscritas ou controladas poderia ser uma ferramenta para limitar a produção, a comercialização e o uso de novas drogas sintéticas. Poder-se-ia também estabelecer uma proibição baseada nos efeitos farmacológicos das moléculas e nas classes de substâncias, incluindo seus sais e isômeros 44 . Ambrósio JCL. O crescimento do uso de drogas sintéticas “legais” no Brasil. Revista Perícia Federal 2012; (29):22-5. .
Entretanto, a adoção de cláusulas genéricas poderia intensificar o “inchamento” da legislação penal 1919 . Carvalho S. Pena e garantias. 3aEd. Rio de Janeiro: Lúmen Juris; 2008. , além de inviabilizar o possível comércio de drogas para fins de pesquisa ou uso terapêutico.
O governo britânico criou um dispositivo para acelerar a inclusão de novas substâncias nas listas de controle chamado misuse of drugs: temporary class drugs . Nele, um novo composto, recomendado pelo Conselho Consultivo sobre o Abuso de Drogas, pode ser temporariamente incluído na lista de substâncias controladas. A agência reguladora tem 12 meses para realizar as análises necessárias a fim de passar a substância da lista de drogas temporariamente proscritas para a lista definitiva 44 . Ambrósio JCL. O crescimento do uso de drogas sintéticas “legais” no Brasil. Revista Perícia Federal 2012; (29):22-5. . A iniciativa britânica pode ser mais viável à realidade brasileira, pois permitiria que instituições públicas fiscalizadoras enquadrassem de forma temporária as legal highs dentro de um prazo estabelecido. Nesse sentido, estaríamos em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro e não geraria insegurança jurídica como a adoção de cláusulas genéricas.
Como forma de dificultar a entrada desses produtos no país, é necessária uma articulação maior entre as instituições responsáveis pela apreensão de compostos e a inserção de substâncias na lista de uso proscrito. Um sistema de notificação virtual poderia viabilizar essa interação entre instituições.
A colaboração internacional e a partilha de conhecimentos e de dados analíticos entre os especialistas de laboratórios forenses e clínicos também são fatores importantes quando considerada a amplitude de mercado atingida pelas legal highs .
O aumento da disponibilidade dessas drogas na Internet exige uma legislação de controle abrangente e rígida, com um Programa Nacional de Acesso a Medicamentos em que seja exigida habilitação para as farmácias que queiram realizar a venda online de medicamentos, com imposição de sanções penais para todos os envolvidos que facilitem a venda de legal highs 99 . Jones AL. Legal “highs” available through the internet-implications and solution? Q J Med 2010; 103:535-6. .
Considerando o risco à saúde dos usuários de legal highs, é necessária uma maior agilidade na proscrição dessas substâncias logo que comercializadas no país, por meio de inserção de cláusulas genéricas na Portaria n° 344/98 , ou a deliberação de Conselhos Consultivos que proíbam a droga temporariamente até o parecer conclusivo do órgão responsável. Uma articulação entre a ANVISA e as polícias, responsáveis pela apreensão e identificação desses novos compostos, também poderia agilizar e aumentar a eficiência do controle dessas substâncias.
Referências
- 1Passagli M. Toxicologia forense: teoria e prática. 3aEd. Campinas: Millennium Editora; 2011.
- 2Burillo-Putze G, Climent B, Echarte JL, Munné P, Miró Ó, Puiguriguer J, et al . Drogas emergentes (I): las “smart drugs”. An Sist Sanit Navar 2011; 34:263-74.
- 3Alves AO, Spaniol B, Linden R. Canabinoides sintéticos: drogas de abuso emergentes. Rev Psiquiatr Clín 2012; 39:142-8.
- 4Ambrósio JCL. O crescimento do uso de drogas sintéticas “legais” no Brasil. Revista Perícia Federal 2012; (29):22-5.
- 5Coppola M, Mondola R. Research chemicals marketed as legal highs: the case of pipradol derivatives. Toxicol Lett 2012; 212:57-60.
- 6Schmidt MM, Sharma A, Schifano F, Feinmann C. “Legal highs” on the net-evaluation of UK-based websites, products and product information. Forensic Sci Int 2011; 206:92-7.
- 7Pérez-Álvarez V. Catinona y derivados: farmacologia y potencial uso como precursores de anfetaminas. Revista Latinoamericana de Química 2011; 39:32-43.
- 8Bovens M, Schläpfer M. Designer drugs/research chemicals/legal highs: a survey of recent seizures and an attempt to a more effective handling from a Swiss perspective. Toxichem Krimtech 2011; 78:167-75.
- 9Jones AL. Legal “highs” available through the internet-implications and solution? Q J Med 2010; 103:535-6.
- 10Kapka-Skrzypczak L, Kulpa P, Sawicki K, Cyranka M, Wojtyla A, Kruszewski M. Legal highs: legal aspects and legislative solutions. Ann Agric Environ Med 2011; 18:304-9.
- 11Fattore L, Fratta W. Beyond THC: the new generation of cannabinoid designer drugs. Front Behav Neurosci 2011; 5:60.
- 12European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction. Annual report on the state of the drugs problem in Europe. http://www.emcdda.europa.eu/publications/annual-report/2011/ (acessado em 21/Out/2012).
» http://www.emcdda.europa.eu/publications/annual-report/2011/ - 13Santana MMP, Souza MF, Cunha RL. 1-(3-Clorofenil) Piperazina (mCPP): uma nova droga sintética ilegal no Brasil. Revista Prova Material 2009; (12):24-7.
- 14Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC no37, de julho de 2012. Diário Oficial da União 2012, 3 jul.
- 15Spiller HA, Ryan ML, Weston RG, Jansen J. Clinical experience with and analytical confirmation of “bath salts” and “legal highs” (synthetic cathinones) in the United States. Clin Toxicol (Phila) 2011; 49:499-505.
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- 17Gunderson EW, Haughey HM, Ait-Daoud N, Joshi AS, Hart CL. “Spice” and “K2” herbal highs: a case series and systematic review of the clinical effects and biopsychosocial implications of synthetic cannabinoid use in humans. Am J Addict 2012; 21:320-6.
- 18Lidder S, Dargan P, Sexton M, Button J, Ramsey J, Holt D, et al. Cardiovascular toxicity associated with recreational use of diphenylprolinol (diphenyl-2-pyrrolidinemethanol [D2PM]). J Med Toxicol 2008; 4:167-9.
- 19Carvalho S. Pena e garantias. 3aEd. Rio de Janeiro: Lúmen Juris; 2008.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Fev 2014
Histórico
- Recebido
02 Mar 2013 - Revisado
22 Out 2013 - Aceito
06 Nov 2013