A atenção à saúde dos recém-nascidos e de suas mães vive um momento muito especial em nosso país, e este suplemento de Cadernos de Saúde Pública, muito brilhantemente, aborda questões cruciais para o seu entendimento e a necessária tomada de posição dos gestores da saúde materno infantil. Considero falar do nascimento, em suas mais diversas abordagens, decisão crucial para o campo acadêmico e científico.
O momento do nascimento, exatamente a transição da vida fetal para a vida extrauterina, envolve múltiplos mecanismos de adaptação biológica, com participação de vários sistemas e órgãos dos bebês, tendo como grande mediador o sistema endócrino e, com certeza, tendo como fundamental resultado o estabelecimento da respiração e a oxigenação do corpo do recém-nascido. A partir desse momento, comandado pelo próprio recém-nascido e evidentemente não mais pela sua mãe, o bebê valendo-se da respiração passa a viver biologicamente independente. Nunca mais em toda a sua vida o ser humano vivenciará experiência tão radical de mudança e de tanta importância para sua existência. E o que observamos atualmente é a quase invisibilidade desse processo, completamente fisiológico, que quando respeitado tem como expressão maior o trabalho de parto e o parto normal. Infelizmente, o nascimento está praticamente banalizado pelos seus cuidadores.
As taxas de cesariana e suas consequências para a saúde das mulheres e dos recém- nascidos, apresentadas com base na pesquisa Nascer no Brasil, nos confrontam com uma triste realidade: a prática médica não acompanha o conhecimento científico hoje acumulado e conquistado no mundo acadêmico.
Para nós pediatras, o foco da discussão deveria estar centrado nas consequências do modelo de assistência à saúde dos recém-nascidos, mesmo sem abandonar a saúde e os cuidados maternos. Somos também cuidadores de mães.
Altas taxas de cesáreas, na sua grande maioria sem uma indicação precisa e, principalmente, a ausência dos mecanismos fisiológicos de adaptação ao nascimento, implicam risco para a adaptação dos bebês. Seu pior desfecho pode ser evidenciado por meio das altas taxas de prematuridade, associadas a distúrbios respiratórios, sejam eles Taquipneia transitória ou mesmo a doença de membrana hialina.
É relevante pensar no sistema de atendimento como um todo, fundamental para formular políticas, porém é também muito importante particularizar dois grandes cenários de atendimento em nosso país, o privado, com forte presença dos seguros e convênios, e o público representado pelo SUS.
Os estudos publicados neste número apresentam resultados que devem nos fazer refletir. A cesariana é praticamente o modus operandi do atendimento no setor privado, e as mulheres atendidas neste setor revelam um maior nível de satisfação no que toca a relação médico/paciente. Ao mesmo tempo, em outro artigo, avaliando a trajetória das mulheres na definição pelo tipo de parto, nos revela uma preferência pela cesárea, no início da gravidez, baixa no setor público e alta no privado. Sabemos que tanto no público como no privado as taxas são altas, especialmente altas no setor privado. Se pensarmos o parto como desfecho da gravidez e nas cesáreas desnecessárias, com desfechos nefastos para a saúde dos bebês, podemos concluir que, apesar das mulheres no setor privado terem assumido a cesárea como escolha inicial, elas não estão sendo informadas das vantagens e desvantagens da via de parto e não estão conscientes dos riscos da prematuridade e de suas consequências. Penso que parte desse resultado se deve a uma postura dos profissionais que não utilizam o tempo de pré-natal para informar as mulheres aspectos relacionados ao nascimento de seus filhos. É incrivelmente no setor privado, onde o poder aquisitivo é maior, e maior é a possibilidade de escolha, que os resultados são piores. Certamente estão comprando gato por lebre.
Quando os estudos que definem desfechos favoráveis, os recém-natos a termo, contato precoce pele a pele, início do aleitamento na primeira hora de vida, alojamento conjunto e alta hospitalar em aleitamento materno exclusivo mais frequentes em hospitais classificados como atípicos, que são os Hospitais Amigos das Crianças, com equipes de plantão e trabalho colaborativo entre enfermeiras obstétricas e médicos na atenção ao parto, é relevante destacar que este cenário ainda é infinitamente pequeno na atenção pública em nosso país e menor ainda no setor privado. Dicotomia relevante, principalmente porque o que mais naturalmente se espera de uma gravidez saudável, como na grande maioria das mulheres representadas nos estudos, é o nascimento de crianças saudáveis e que assim possam ser atendidas, com baixa intervenção.
Segundo outro artigo, encontramos uma forte presença médica na assistência ao pré-natal e parto independentemente da classificação do risco da gestação. Sabemos que essa cobertura em outros países, especialmente na Europa, para gestações de baixo risco é muito mais baixa do que em nosso país. Isso pode ter implicância nos resultados apresentados, especialmente no que toca às intervenções na assistência.
No Brasil, nascem aproximadamente três milhões de crianças ao ano e na sua imensa maioria dentro de hospitais. Segundo dados publicados na literatura, uma em cada 10 crianças necessitará de assistência para iniciar a respiração, uma em cada 100 crianças precisará de entubação e uma em cada mil deverá ser submetida à entubação, ventilação, massagem cardíaca e uso de drogas para sua reanimação. A indicação de cesárea entre 37 e 39 semanas de gestação, mesmo sem fatores de risco antenatais para asfixia, e sem trabalho de parto, segundo a literatura também eleva o risco de que a ventilação ao nascer seja indicada.
De toda forma é muito importante afirmar que crianças saudáveis devem ser atendidas como tal, e para crianças com algum agravo ao nascimento devemos estar preparados para intervir, principalmente com o objetivo de prevenir danos definitivos à sua saúde para o resto de suas vidas.
Hoje existem modelos de assistência ao nascimento focados no reconhecimento desses sinais de risco que indicam a necessidade de intervenção. Associações internacionais de pediatria, como também a Sociedade Brasileira de Pediatria, publicam nessa direção. Quatro perguntas são consideradas básicas para o atendimento de recém- nascidos nas salas de parto: é a termo a gestação? Tem mecônio? O bebê chora ou respira? Como está seu tônus?
Quando todas as respostas são afirmativas, considera-se que o bebê é saudável e que este deve ser colocado no colo de sua mãe e neste lugar deverá ser secado e atendido. Preconiza-se a sala de atendimento aquecida e um ambiente acolhedor à mãe e ao bebê. A avaliação da cor da pele e mucosa, imediatamente ao nascimento, não é mais valorizada para decidir condutas na sala de parto. Portanto, o ambiente acolhedor às mães e aos recém-natos deve incluir uma menor quantidade de luz na sala de parto.
Tínhamos a sensação, empírica, de que pediatras e obstetras no cuidado ao parto e nascimento, consideram bebês saudáveis como verdadeiras bombas-relógios, programadas para a qualquer hora explodir. Os resultados aqui publicados no que toca às desigualdades nas práticas de atenção ao parto de recém-natos saudáveis no Brasil são reveladores dessa sensação. Foram muito altas as taxas de aspiração das vias aéreas e gástricas (esta raramente preconizada), como também de uso de oxigênio, incubadoras, o não contato pele a pele e a consequente ausência do seio materno na sala de parto e na primeira hora de vida. Certamente os recém-nascidos estão formalmente sendo mostrados às suas mães na hora do nascimento ou estão sendo desnecessariamente atendidos longe delas. Vale ressaltar que a ligadura oportuna do cordão umbilical, uma das boas práticas de assistência ao parto, pressupõe o atendimento aos bebês junto às suas mães mesmo em condições de adversidade ao nascimento. O sangue circulante no conjunto bebê/placenta, enquanto o cordão umbilical não desacelera ou para de bater, é de vital importância no nascimento e ao longo do primeiro ano de vida para os bebês.
Considero desafiador definir normalidade quando se estuda o parto e o nascimento. Talvez cheguemos perto desse entendimento se optarmos pela definição de ausência de intervenção. Pelo que os estudos aqui publicados revelam, estamos muito distantes dessa realidade. Possivelmente nunca voltaremos a esse estágio na atenção ao nascimento. Porém precisamos refletir sobre a qualidade da intervenção, especialmente num fenômeno tão fisiológico como deveria ser o nascimento. No cenário de potencial normalidade deveríamos antes de tudo evitar tentar danos com intervenções desnecessárias como afirmam alguns estudiosos.
Cumprida a etapa da pesquisa Nascer no Brasil e publicados os seus resultados, o desafio colocado pelos pesquisadores está no seu entendimento e na consequente implementação dos seus resultados pelos gestores e formuladores de políticas, e pelos que na ponta do atendimento estão no dia a dia no pré-natal, nas sala de partos e no acompanhamento dos bebês.
Acredito que na maneira como a mulher dá à luz e como as crianças nascem podem estar relacionadas nossas visões de natureza, ciência, saúde, entre outras.
Mudando a forma de nascer poderemos tentar melhorar o mundo, já nos falou o cientista. Devemos nos desafiar para esse projeto. Temos aqui uma ferramenta para tal.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Ago 2014
Histórico
- Recebido
25 Abr 2014 - Aceito
28 Abr 2014