Inicialmente, manifesto a satisfação e o sentimento de responsabilidade por comentar um artigo derivado da pesquisa nacional Nascer no Brasil. Essa pesquisa representa um marco na produção de conhecimentos sobre o modelo de assistência ao parto no país, dada sua relevância, abrangência e ineditismo.
À exceção das taxas de cesariana, episiotomia e alívio da dor no parto normal, os outros dados apresentados no artigo são únicos. Desconheço informações sobre as demais práticas e intervenções obstétricas no parto – alimentação, mobilidade, uso do partograma, cateterização venosa periférica, infusão de ocitocina, amniotomia, parto em posição litotômica, manobra de Kristeller (pressão no fundo do útero durante a expulsão fetal) e parto normal sem intervenções –, salvo em estudos parciais ou localizados. Além disso, no papel de comentadora, gozo o privilégio da liberdade de interpretação, sem prender-me à “imanência” dos resultados.
É provável que a “noção de segurança” da assistência ao parto, com a intervenção oportuna para prevenir desfechos mórbidos, se confunda com as metas de celeridade e oportunismo, sacrificando a “noção de fisiologia” do parto. A cesariana se tornou a maneira de resolver rapidamente o parto, tanto em mulheres de baixo risco (45,5%) quanto para as demais (60,3%).
Para as mulheres classificadas como de baixo risco, outra forma de abreviar o parto é tentada mediante uso de intervenções que dão agilidade, ligeireza, rapidez ou velocidade ao processo assistencial. Destaco aquelas que, com ou sem sucesso, se prestam a acelerar o parto normal: amniotomia e infusão de ocitocina, na dilatação cervical; Kristeller e episiotomia, na expulsão fetal.
Nas mulheres da pesquisa, o modo de produção em saúde no parto dominante é via modelo assistencial centrado no serviço e no profissional, não na mulher e no processo do parto. Por consequência, esse modelo gera alguns dos resultados observados: maior exposição das nulíparas à infusão de ocitocina, manobra de Kristeller e episiotomia; maior chance para as mulheres de menor escolaridade de sofrerem amniotomia e receberem ocitocina ao darem à luz em serviços da rede pública; também para aquelas com parto na região Centro-oeste do país, mais Kristeller e episiotomia.
Por sua vez, mesmo em centros de parto normal, onde são atendidas exclusivamente mulheres de baixo risco, algumas intervenções desnecessárias são utilizadas em alta proporção. As taxas de amniotomia e infusão de ocitocina chegam a 75,1% e 46,3%, respectivamente, e indicam o uso não criterioso 1.
Em relação à episiotomia, embora as taxas em centros de parto normal sejam elevadas (variação entre 16,2% e 35%) 1, a intervenção se mostra mais sensível à redução, pois houve diminuição importante na taxa encontrada em todas as macrorregiões no Nascer no Brasil, em comparação com a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) 2, de 2006, em que a taxa nacional foi de 76,1%.
Parece haver uma hierarquia em relação ao abandono de práticas inadequadas na assistência obstétrica. É provável que as intervenções nas quais o atual processo assistencial apoia fortemente seu modo de produção constituam os últimos obstáculos que serão, finalmente, superados na promoção do parto fisiológico. Suspeito que tais intervenções são a cesariana e a condução do parto com ocitocina.
Os dados sugerem a necessidade de mudanças rápidas na assistência ao parto no Brasil, sob a pena de se estabelecerem, a longo prazo, padrões irreversíveis de morbidade materna e neonatal, em consequência das intervenções desnecessárias.
Por fim, reafirmo que os dados do artigo analisado são uma grande contribuição para as atuais e futuras interpretações sobre a adoção das práticas obstétricas e as tendências do modelo assistencial ao parto e nascimento em gestações de baixo risco.
- 1Riesco MLG, Oliveira SMJV, Bonadio IC, Schneck CA, Silva FMB, Diniz CSG, Lobo SF, Saito E. Birth centers in Brazil: scientific production review. Rev Esc Enferm USP 2009; 43:1291-6.
- 2Lago TDG, Lima LP. Assistência à gestação, ao parto e ao puerpério: diferenciais regionais e desigualdades socioeconômicas. In: Ministério da Saúde, organizador Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher – PNDS 2006. p. 150-68.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Ago 2014