A alimentação saudável vem ganhando espaço na agenda das políticas públicas e, hoje, sua promoção está prevista em diversas políticas e programas nacionais. Por outro lado, as práticas alimentares dos brasileiros estão longe das desejáveis nas diferentes fases do curso da vida e em todos os estratos socioeconômicos, e pioraram nas últimas décadas. Além disso, são expressivos o aumento da obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis ligadas a ela e à alimentação, como o diabetes e a hipertensão. Nesse cenário, cabe perguntar: como avançar no desenvolvimento de políticas públicas efetivas para a promoção da alimentação adequada e saudável no país?
A resposta a essa pergunta pressupõe a ampliação do escopo da análise sobre a alimentação no contexto contemporâneo. Para tal, consideramos oportuna a concepção de que a alimentação integra cinco dimensões: a do direito humano, a biológica (aspectos nutricionais e sanitários), a sociocultural (sistema de valores, relação de indivíduos e de coletivos com a comida), a econômica (relações de trabalho estabelecidas no âmbito do sistema alimentar, preço dos alimentos) e a ambiental (formas de produção, comercialização e consumo de alimentos) 11. Castro IRR, Castro LMC, Gugelmim SA. Ações educativas, programas e políticas envolvidos nas mudanças alimentares. In: Diez-Garcia RW, Cervato-Mancuso AM, organizadores. Mudanças alimentares e educação nutricional. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan; 2011. p. 18-34.. Essa concepção se traduz na definição de alimentação adequada e saudável apresentada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, qual seja: "a realização de um direito humano básico, com a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais dos indivíduos, de acordo com o ciclo de vida e as necessidades alimentares especiais, pautada no referencial tradicional local. Deve atender aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação, prazer (sabor), às dimensões de gênero e etnia, e às formas de produção ambientalmente sustentáveis, livre de contaminantes físicos, químicos, biológicos e de organismos geneticamente modificados" 22. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - por um desenvolvimento sustentável com soberania e segurança alimentar e nutricional. Relatório final. Fortaleza: Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; 2007.. Disso decorre que uma resposta efetiva à questão alimentar atual passa, portanto, por políticas públicas que integrem promoção da saúde, sustentabilidade ambiental, compromisso com a realização de direitos e justiça social.
Nessa perspectiva, é fundamental o reconhecimento das características e da dinâmica de funcionamento dos sistemas agroalimentares, incluindo o brasileiro 11. Castro IRR, Castro LMC, Gugelmim SA. Ações educativas, programas e políticas envolvidos nas mudanças alimentares. In: Diez-Garcia RW, Cervato-Mancuso AM, organizadores. Mudanças alimentares e educação nutricional. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan; 2011. p. 18-34.. Destaco aqui algumas delas: (a) estão pautados em premissas que não são mais aplicáveis, a saber: clima estável, água abundante, energia barata; (b) têm como produto alimentos com componentes não alimentares, como agrotóxicos, antibióticos, conservantes e realçadores de sabor, que têm efeitos nefastos para a saúde; (c) geram a degradação de ecossistemas sustentáveis em função de seus métodos de produção, armazenamento, transporte e comercialização dos alimentos; (d) reproduzem e aprofundam as desigualdades sociais no acesso a terra, água, energia e renda; (e) apesar de apresentarem sucessivos recordes de safra, apresentam ineficiência na produção, transporte, armazenamento, distribuição e manuseio doméstico, gerando desperdício e aumento do preço final dos produtos; (f) são marcados pela concentração de etapas da cadeia alimentar em grandes corporações transnacionais, como as de insumos e sementes, as indústrias de alimentos e as mega redes varejistas; (g) por meio de diversos mecanismos (econômicos, tecnológicos e de propaganda e marketing), promovem o deslocamento do consumo de alimentos in natura e minimamente processados para o de produtos prontos para consumo ultraprocessados (PPCUP) 33. Monteiro CA, Levy RB, Claro RM, Castro IRR, Cannon G. A new classification of foods based on the extent and purpose of their processing. Cad Saúde Pública 2010; 26:2039-49., cujos atributos são, entre outros: composição nutricional desequilibrada (altos teores de gordura e/ou açúcar e/ou sal, baixo teor de fibras, alta densidade energética), hiperpalatabilidade e grande durabilidade, levando à deterioração de culturas alimentares tradicionais e à diminuição da diversidade alimentar. Movimentos contra-hegemônicos estão em curso no sentido de promover a agroecologia e processos de produção e comercialização mais sustentáveis, mas ainda não ganharam força suficiente para provocar uma mudança estrutural nos sistemas agroalimentares hoje estabelecidos.
A compreesão de que os sistemas alimentares determinam nossas escolhas é fundamental para entender que as decisões individuais, embora imprescindíveis, não são suficientes para a garantia de práticas alimentares saudáveis e sustentáveis em âmbito coletivo. Só terão chance de ser efetivas as ações que integrarem às medidas dirigidas às pessoas (atividades educativas, atividades de apoio) outras medidas dirigidas ao ambiente em que elas vivem. Aqui cabe ressaltar que entendo ambiente em uma perspectiva mais ampla do que a de "ambiente construído", alinhando-me ao modelo conceitual sobre ambiente proposto por Swinburn et al. 44. Swinburn B, Egger G, Raza F. Dissecting obesogenic environments: the development and application of a framework for identifying and prioritizing environmental interventions for obesity. Prev Med 1999; 29:563-70.. Seu arcabouço teórico propõe duas dimensões (micro e macro) e quatro tipos (físico, econômico, político e sociocultural) de ambiente. Com base nesse referencial, depreende-se que, para serem efetivas, as ações de promoção da alimentação saudável devem articular medidas que contemplem as diferentes dimensões e tipos de ambiente anteriormente apresentados.
Isso posto, penso que os desafios e as perspectivas para a promoção da alimentação saudável podem ser organizados em dois grandes eixos. O primeiro tem como ponto de partida o entendimento de que a alimentação é uma prática social, ou seja, é mais do que um comportamento ou um procedimento de ingestão de alimentos e outros produtos comestíveis que contribuem para a prevenção ou ocorrência de um conjunto de doenças. Esse eixo diz respeito à ressignificação da comida, do cozinhar, do comer e da comensalidade (comer e beber juntos), resgatando seu sentido existencial profundo e ampliando a consciência de sua dimensão política.
Têm se ampliado e diversificado as iniciativas de resgate da alimentação como um dos eixos estruturantes da identidade coletiva (cultura) e de valorização do consumo (incluindo o consumo de alimentos) como ação política, aqui entendida como a percepção e o uso das práticas e escolhas de consumo (individuais e coletivas) como uma forma de participação na esfera pública. São expressões dessa consciência da dimensão política da alimentação, por exemplo, a escolha do que comer e do que não comer em função não somente do gosto, da tradição ou do cuidado com saúde individual, mas também em função de suas implicações ambientais, sociais e econômicas.
Nessa perspectiva, um aspecto fundamental é a tomada de consciência de que as práticas alimentares saudáveis (aqui incluídas as escolhas dos alimentos, as formas de preparo das refeições e o seu compartilhamento) são contra-hegemônicas em nossa sociedade e que, portanto, demandam atenção e dedicação constantes para que sejam mantidas e cultivadas. Nesse contexto, a valorização da culinária no dia a dia vem assumindo centralidade nas ações de educação alimentar e nutricional como prática emancipatória (porque promotora de autonomia) e de autocuidado.
No âmbito das ações de educação alimentar e nutricional, uma inflexão fundamental é a adoção da classificação de alimentos segundo seu grau de processamento 33. Monteiro CA, Levy RB, Claro RM, Castro IRR, Cannon G. A new classification of foods based on the extent and purpose of their processing. Cad Saúde Pública 2010; 26:2039-49. e não em função dos nutrientes neles contidos, que é o referencial que embasa a pirâmide alimentar, um ícone amplamente utilizado nos últimos anos em muitos países, incluindo o Brasil, em atividades educativas voltadas para a promoção da alimentação saudável. O novo Guia Alimentar da População Brasileira, que esteve em consulta pública no início deste ano e que foi publicado em novembro de 2014, adota essa nova abordagem. Sistemas de classificação que enfatizam o processamento industrial de alimentos fornecem elementos preciosos para práticas educativas confluentes com o desafio da ressignificação da comida no contexto contemporâneo.
O segundo eixo de desafios e perspectivas parte do entendimento de que a necessária mudança estrutural no sistema agroalimentar brasileiro não acontecerá por meio de mudanças individuais ou iniciativas espontâneas do setor produtivo. Esse eixo diz respeito ao desenvolvimento de políticas públicas que incentivem e facilitem as escolhas saudáveis e que protejam indivíduos e populações de fatores e situações que levem a escolhas não saudáveis. Diz respeito, também, à consolidação de políticas públicas que respondam ao mesmo tempo a vários problemas da agenda de alimentação e nutrição. Um aspecto fundamental para isso é avançar nas ações de caráter regulatório referentes a diferentes elementos do sistema alimentar, como, por exemplo, a regulação da propaganda, da publicidade (na mídia, em ambientes específicos) e da rotulagem de alimentos; a regulamentação das cantinas escolares; a taxação ou o subsídio de determinados alimentos; a regulação da composição de produtos ultraprocessados; o direcionamento de programas sociais no sentido de ampliar a sua cobertura e de garantir mecanismos que promovam um círculo virtuoso no sistema alimentar (como o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar); a revisão do código sanitário de forma a torná-lo mais includente aos pequenos produtores (exemplo disso é a RDC nº 49/2013 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Embora haja importantes conquistas em relação a essa agenda em nosso país, a atuação do setor público é ainda incipiente e enfrenta forte e sistemática resistência política por parte do setor privado às medidas regulatórias. Para que tenhamos avanços expressivos nessa agenda, é fundamental amadurecer e ampliar as iniciativas de advocacy já desenvolvidas em nosso país, e criar e fortalecer mecanismos de regulação da relação público-privado em alimentação e nutrição.
O avanço da promoção da alimentação saudável no Brasil pressupõe, portanto, o engajamento e a articulação de setores e atores de diferentes áreas, como saúde, segurança alimentar e nutricional, movimentos ambientalistas, movimentos sociais do campo, entre outros, que protagonizem mudanças estruturais no padrão de consumo e no modelo de desenvolvimento hoje vigentes em nosso país.
- 1Castro IRR, Castro LMC, Gugelmim SA. Ações educativas, programas e políticas envolvidos nas mudanças alimentares. In: Diez-Garcia RW, Cervato-Mancuso AM, organizadores. Mudanças alimentares e educação nutricional. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan; 2011. p. 18-34.
- 2Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - por um desenvolvimento sustentável com soberania e segurança alimentar e nutricional. Relatório final. Fortaleza: Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; 2007.
- 3Monteiro CA, Levy RB, Claro RM, Castro IRR, Cannon G. A new classification of foods based on the extent and purpose of their processing. Cad Saúde Pública 2010; 26:2039-49.
- 4Swinburn B, Egger G, Raza F. Dissecting obesogenic environments: the development and application of a framework for identifying and prioritizing environmental interventions for obesity. Prev Med 1999; 29:563-70.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan 2015
Histórico
- Recebido
15 Set 2014 - Aceito
24 Set 2014