A existência de conflitos de interesse no campo da alimentação e nutrição não é recente, mas se intensificou e tem sido bastante documentada na última década, tanto no que se refere à produção e à divulgação de conhecimento como na formulação e na gestão de políticas. Desde os anos 1970, foram publicados mais de oito mil artigos sobre conflitos de interesse em bases de dados bibliográficas de ciências da saúde (MEDLINE e LILACS). Em contraste, há poucas dezenas de publicações sobre a temática relacionadas à alimentação e/ou nutrição que se restringem às últimas duas décadas, das quais, quase três quartos foram publicadas somente na última década.
O aumento recente na documentação sobre conflitos de interesse em alimentação e nutrição é proporcionalmente maior que o observado para o total de publicações nas mesmas bases de dados. Isso indica uma possível intensificação de conflitos, ampliação do reconhecimento de conflitos como tais e da inconformação frente a eles e/ou uma maior motivação para visibilizá-los.
Tanto na produção e divulgação de conhecimento como na formulação de políticas em alimentação e nutrição, esse crescimento, intensificação e maior visibilização de conflitos de interesse, bem como a inconformação a eles, têm, como uma das bases, a expansão de falhas nos sistemas alimentares, as quais os impedem de cumprir plenamente sua finalidade de garantir uma alimentação adequada e saudável às populações. Portanto, para avançar no enfrentamento de conflitos de interesse nessa área, é necessário reconhecer os problemas nutricionais como expressões de falhas no sistema alimentar11. Stuckler D, Nestle M. Big food, food systems, and global health. PLoS Med 2012; 9:e1001242.,22. Gomes FS. UN International Conference on Nutrition. First priority is sustainable food systems. World Nutrition 2014; 5:516-8.. Dessa forma, é possível identificar causas comuns, estruturais, que respondem por problemas distintos como obesidade, deficiências de micronutrientes e outros resultados da má alimentação, evitando-se, assim, soluções inefetivas ou paliativas. Além disso, é necessário identificar e caracterizar os responsáveis por tais falhas.
Encontram-se amplamente documentadas evidências de que essas mudanças drásticas nos sistemas alimentares e na alimentação de populações têm sido impostas globalmente por grandes corporações transnacionais 11. Stuckler D, Nestle M. Big food, food systems, and global health. PLoS Med 2012; 9:e1001242.,22. Gomes FS. UN International Conference on Nutrition. First priority is sustainable food systems. World Nutrition 2014; 5:516-8.,33. Moodie R, Stuckler D, Monteiro C, Sheron N, Neal B, Thamarangsi T, et al. Profits and pandemics: prevention of harmful effects of tobacco, alcohol, and ultra-processed food and drink industries. Lancet 2013; 381:670-9.. Tais mudanças incidem sobre os modos de produzir, abastecer, preparar e comer alimentos com o objetivo final de gerar riqueza para essas empresas e aumentar sua participação nos mercados de forma concentrada (Tabela 1). Por isso, além dos problemas nutricionais que desencadeiam, essas corporações também exercem um efeito negativo importante sobre a iniquidade, a começar pelo próprio ambiente corporativo. Um estudo realizado em 2013 revelou que um funcionário da McDonald’s Corporation nos Estados Unidos precisa trabalhar 1.196 horas para receber o equivalente a uma hora de trabalho do presidente da empresa 44. Lime D. 466 hours of worker overtime equals one hour of CEO pay. http://www.nerdwallet.com/blog/investing/2013/466-hours-overtime-equals-hour-ceo-pay/ (acessado em 31/Mai/2015).
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Caracterização das dez maiores corporações transnacionais membros da Aliança Internacional de Alimentos & Bebidas (IFBA), segundo seus produtos, práticas, políticas e fatias de mercado.
Os impactos socioeconômicos, bem como os ambientais e culturais 55. Tilman D, Clark M. Global diets link environmental sustainability and human health. Nature 2014; 515:518-22.,66. Diez Garcia RW. Reflexos da globalização na cultura alimentar: considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Rev Nutr 2003; 16:483-92., decorrentes desse modelo imposto por tais corporações também favorecem a ampliação do reconhecimento de conflitos antes não reconhecidos como tais. A intensificação de conflitos de interesse no campo da alimentação e nutrição também é, portanto, resultante dos avanços no reconhecimento social de problemas alimentares e nutricionais por outros setores além daqueles mais diretamente afetos ao tema. A Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em setembro de 2011, é um dos marcos que formaliza esse reconhecimento mais amplo, uma vez que, pela primeira vez na história, o tema foi pautado na agenda dos Membros representados por seus Chefes de Estado, e não somente pelas autoridades em alimentação, nutrição e saúde.
Essa ampliação do reconhecimento da má alimentação como um problema para as sociedades, por conseguinte, sinaliza uma busca mais intensa por soluções. As soluções demandam o enfrentamento das causas com repercussões sobre a acumulação de riquezas e concentração de mercados supracitados. Com isso, o setor comercial passa a investir ainda mais agressivamente no impedimento e na protelação das soluções focadas nas causas estruturais, mantidas e intensificadas pelas corporações transnacionais. Em vez de apenas defender-se ou esquivar-se da regulação, o setor passa a interferir explícita (p.ex.: em nome da empresa) ou disfarçadamente (p.ex.: por meio de fundações, entidades profissionais, de pesquisa, filantrópicas que defendem os interesses das empresas que as fundaram, financiam ou controlam) no processo de formulação das políticas.
Desde a reunião de alta cúpula em 2011, essas interferências têm sido cada vez mais incisivas sobre organizações supranacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), mas também atingem os países. Recentemente, a OMS abriu uma consulta pública sobre um esboço de princípios e políticas de engajamento de atores não membros da OMS, que tem como centro da discussão a distinção entre atores de interesse público e de interesse comercial e o gerenciamento de conflitos entre esses interesses. A consulta pública foi encerrada, mas o documento ainda segue em discussão, e, no centro da disputa, está colocada a interação de atores do setor privado comercial com a OMS, bem como sua participação na formulação de políticas.
Além de pressionarem diretamente a OMS para interferirem sobre as políticas, as corporações transnacionais também fazem lobby dentro dos países-membros de modo a influenciar seus posicionamentos junto à OMS 77. Nagarajan R. Leaked mail reveals lobbying by food, beverage giants to access policy making in WHO. http://timesofindia.indiatimes.com/business/international-business/Leaked-mail-reveals-lobbying-by-food-beverage-giants-to-access-pol icy-making-in-WHO/articleshow/47361739.cms (acessado em 31/Mai/2015).
http://timesofindia.indiatimes.com/busin... . Um exemplo recentemente divulgado foi o do posicionamento da Itália contra as novas recomendações (mais restritivas) da OMS sobre o consumo de açúcar 88. World Health Organization. Guideline: sugars intake for adults and children. Geneva: World Health Organization; 2015.. O posicionamento do país solitariamente contrário surpreendeu todos os demais 33 países membros do Conselho Executivo da OMS. Mais tarde, o Observatório Italiano sobre Saúde Global revelou que um ex-assessor do Grupo Ferrero, uma empresa fabricante de produtos açucarados, compunha a delegação do Ministério de Relações Exteriores da Itália99. Dentico N. Forza zucchero! http://www.saluteinternazionale.info/2015/02/forza-zucchero/ (acessado em 31/Mai/2015).
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Apesar da crescente visibilização de situações de conflitos de interesse, ainda há situações de interação entre partes individuais ou coletivas não tão claramente reconhecidas como conflituosas. Ademais, com o poder político altamente sensível a pressões econômicas, agências das Nações Unidas e governos são cada vez mais provocados a se posicionarem de forma favorável ao envolvimento do setor privado na formulação e no desenvolvimento de políticas de alimentação e nutrição, adotando uma perspectiva indiscriminada e bastante reducionista, comumente expressada como: “precisamos engajar o setor privado”. Somado a isso, há um grande investimento por parte das corporações transnacionais para tornar naturais e/ou invisíveis os conflitos no campo da alimentação e nutrição e reforçar uma negação cínica sobre eles.
Em contrapartida, crescem as iniciativas de mobilização pela proteção de políticas públicas de saúde da interferência de interesses comerciais. Em 2011, uma coalização formada por 160 redes e organizações de atuação nacional, regional e internacional endossou uma declaração demandando das Nações Unidas uma clara distinção entre organizações de interesse público e de interesse comercial (Conflicts of Interest Coalition; http://coicoalition.blogspot.com/). No Brasil, dezenas de indivíduos e entidades da sociedade civil, instituições de pesquisa e outras instituições criaram, em 2013, a Frente pela Regulação da Relação Público-Privado em Alimentação e Nutrição (http://regulacaopublicoprivado.blogspot.com), que tem como uma de suas finalidades articular ações coletivas de enfrentamento e regulação de conflitos de interesse.
Não obstante, ainda há muitas situações nas quais indivíduos, organizações ou instituições que atuam em favor do interesse público enfrentam dificuldades para romper interações conflituosas com setores que têm interesses opostos. Por essa razão, serão oferecidos aqui alguns elementos que podem contribuir para visibilizar essas interações conflituosas como tais e justificar sua descontinuidade.
No caso da alimentação e nutrição, para materializar ou caracterizar interesses de modo a identificar os que se opõem à alimentação adequada e saudável, é imprescindível ir além da análise dos produtos fabricados pelas empresas e considerar também suas práticas e políticas (incluindo missão, metas, objetivos, princípios, visão) 1010. Burlandy L, Gomes FS, Carvalho CMP, Dias PC, Henriques P. Intersetorialidade e potenciais conflitos de interesse entre governos e setor privado comercial no âmbito das ações de alimentação e nutrição para o enfrentamento de doenças crônicas não transmissíveis. Vigil Sanit Debate 2014; 2:124-9.. Além das empresas, devem ser consideradas também as organizações e as iniciativas nas quais elas se inserem, conforme apresentado na Tabela 1 e na Figura 1.
Critérios para identificação de atores do setor comercial que não devem ser engajados * em processos de formulação de políticas, bem como na produção e na divulgação de conhecimento, ou formação profissional, em alimentação e nutrição **.
Cabe ressaltar que, só pelos produtos, já se justificaria a não interação de uma organização de alimentação e nutrição, por exemplo, com um fabricante de produtos que não são recomendados como parte de uma alimentação saudável. No entanto, muitas vezes, é contra-argumentado que a empresa produz outros produtos que não são contraindicados, e as discussões se perdem na definição de produtos como saudáveis ou não e acabam não avançando. Por essa razão, é fundamental associar informações sobre as práticas e políticas empresariais, as quais revelarão indubitavelmente os interesses da empresa e de organizações relacionadas.
A Tabela 1 apresenta exemplos de produtos, práticas e políticas das dez maiores corporações transnacionais membros da Aliança Internacional de Alimentos & Bebidas (https://ifballiance.org/about/members/) para ilustrar a aplicação dos critérios apresentados na Figura 1. Essas empresas fabricam produtos e promovem práticas não recomendados como parte de uma alimentação saudável e adequada e adotam políticas que reforçam a expansão de tais produtos e práticas. Além disso, detêm fatias expressivas do mercado global desses produtos (Tabela 1). A Tabela 1 também pode servir como subsídio para o rompimento de interações conflituosas de organizações e profissionais que não recomendam ou endossam os produtos, práticas e/ou políticas das referidas empresas, com essas e outras empresas que fabricam tais produtos, promovem tais práticas e/ou adotam tais políticas.
Outras empresas não listadas na Tabela 1 podem ser igualmente analisadas frente aos mesmos critérios (Figura 1) para se identificar aquelas que se opõem ao interesse público no que se refere à melhoria da alimentação e da saúde da população. As informações sobre produtos, práticas e políticas das empresas e organizações relacionadas podem ser facilmente obtidas nos pontos de venda de produtos, sítios web das empresas e de seus produtos e/ou relatórios anuais das empresas e organizações relacionadas.
Os problemas associados à operação de corporações transnacionais, tais como as mencionadas aqui, já são bastante evidentes. No entanto, a maioria das tentativas de soluções implementadas ainda tem sua mira desviada do alvo, e as que miram o alvo, exatamente porque o fazem, experimentam forte oposição. Por essa razão, é tempo de intensificar a exposição dos principais responsáveis e promover o reconhecimento social de tais atores como fontes de sustentação e propagação do problema e suas causas. Assim, se avançará, de forma mais robusta, com soluções que incidam sobre as estruturas e os atores que têm causado as falhas nos sistemas alimentares que resultam na incapacidade de alimentar as populações adequadamente.
- 1Stuckler D, Nestle M. Big food, food systems, and global health. PLoS Med 2012; 9:e1001242.
- 2Gomes FS. UN International Conference on Nutrition. First priority is sustainable food systems. World Nutrition 2014; 5:516-8.
- 3Moodie R, Stuckler D, Monteiro C, Sheron N, Neal B, Thamarangsi T, et al. Profits and pandemics: prevention of harmful effects of tobacco, alcohol, and ultra-processed food and drink industries. Lancet 2013; 381:670-9.
- 4Lime D. 466 hours of worker overtime equals one hour of CEO pay. http://www.nerdwallet.com/blog/investing/2013/466-hours-overtime-equals-hour-ceo-pay/ (acessado em 31/Mai/2015).
» http://www.nerdwallet.com/blog/investing/2013/466-hours-overtime-equals-hour-ceo-pay/ - 5Tilman D, Clark M. Global diets link environmental sustainability and human health. Nature 2014; 515:518-22.
- 6Diez Garcia RW. Reflexos da globalização na cultura alimentar: considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Rev Nutr 2003; 16:483-92.
- 7Nagarajan R. Leaked mail reveals lobbying by food, beverage giants to access policy making in WHO. http://timesofindia.indiatimes.com/business/international-business/Leaked-mail-reveals-lobbying-by-food-beverage-giants-to-access-pol icy-making-in-WHO/articleshow/47361739.cms (acessado em 31/Mai/2015).
» http://timesofindia.indiatimes.com/business/international-business/Leaked-mail-reveals-lobbying-by-food-beverage-giants-to-access-pol icy-making-in-WHO/articleshow/47361739.cms - 8World Health Organization. Guideline: sugars intake for adults and children. Geneva: World Health Organization; 2015.
- 9Dentico N. Forza zucchero! http://www.saluteinternazionale.info/2015/02/forza-zucchero/ (acessado em 31/Mai/2015).
» http://www.saluteinternazionale.info/2015/02/forza-zucchero/ - 10Burlandy L, Gomes FS, Carvalho CMP, Dias PC, Henriques P. Intersetorialidade e potenciais conflitos de interesse entre governos e setor privado comercial no âmbito das ações de alimentação e nutrição para o enfrentamento de doenças crônicas não transmissíveis. Vigil Sanit Debate 2014; 2:124-9.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Out 2015
Histórico
- Recebido
03 Jun 2015 - Revisado
19 Ago 2015 - Aceito
15 Out 2015