Estratégias de instituições da sociedade civil no acesso a medicamentos para câncer de mama no SUS

Strategies by civil society organizations for access to breast cancer drugs in the Brazilian Unified National Health System

Estrategias de las instituciones de la sociedad civil sobre el acceso a medicamentos para el cáncer de mama en el Sistema Único de Salud brasileño

Aline Scaramussa Deprá Carlos Dimas Martins Ribeiro Ivia Maksud Sobre os autores

Resumos

Esta pesquisa objetiva identificar e analisar as estratégias de instituições da sociedade civil dedicadas ao câncer de mama (ISC-CM) no acesso a medicamentos no SUS e seus principais atores sociais. Utilizou-se a abordagem qualitativa, empregando-se os métodos de análise de redes sociais e bola-de-neve e as técnicas de observação participante e entrevistas semiestruturadas. A análise temática baseou-se nas categorias: acesso a medicamentos para tratamento de câncer de mama; relacionamento das ISC-CM com o Estado; relacionamento das ISC-CM com a indústria farmacêutica; e outras estratégias utilizadas por ISC-CM no acesso a medicamentos. Os resultados mostraram que as ISC-CM têm influenciado o acesso a medicamentos para câncer de mama no SUS e sua principal estratégia é a pressão sobre o Estado. A indústria farmacêutica patrocina algumas dessas instituições para fortalecê-las com o intuito de ampliar seu mercado. As principais dificuldades no acesso a medicamentos se referem à deficiência de serviços, à iniquidade dos tratamentos oferecidos, e à inclusão de tecnologias no SUS.

Neoplasias da Mama; Indústria Farmacêutica; Propaganda


This study aims to identify and analyze strategies by civil society organizations working with breast cancer (CSOs) on access to drugs in Brazilian Unified National Health System (SUS) and the main social actors. A qualitative approach used the snowball technique, semi-structured interviews, and participant observation. Thematic analysis was based on the following categories: access to drugs for breast cancer treatment, relationship between CSOs and government, relationship between CSOs and the pharmaceutical industry, and other strategies used by CSOs. The results showed that civil society organizations have influenced access to drugs for breast cancer in the SUS and that their main strategies have focused on pressuring government at all levels. Meanwhile, the pharmaceutical industry sponsors some CSOs in order to strengthen them and expand its own market. The main difficulties in access to such drugs involve insufficient services, unequal treatment, and inclusion of technology in the SUS.

Breast Neoplasms; Drug Industry; Propaganda


Esta investigación tiene como objetivo identificar y analizar las estrategias de las instituciones de la sociedad civil, dedicadas al cáncer de mama (ISC-CM), sobre el acceso a los medicamentos en el Sistema Único de Salud (SUS) y sus actores sociales. Se utilizó un enfoque cualitativo, mediante entrevistas semi-estructuradas, de bola de nieve, y observación participante. El análisis temático se basó en las categorías: acceso a los medicamentos para el tratamiento del cáncer de mama; relación de ISC-CM con el Estado; relación de ISC-CM con la industria farmacéutica; y otras estrategias usadas por el ISC-CM. Los resultados mostraron que el ISC-CM ha influido en el acceso a los medicamentos para el cáncer de mama en el SUS y sus principales estrategias se han centrado en la presión sobre el Estado. Por otro lado, la industria farmacéutica patrocina algunos ISC-CM para fortalecerlos a fin de ampliar su mercado. Las principales dificultades en el acceso a los medicamentos se refieren a los servicios de discapacidad, la falta de equidad de los tratamientos que se ofrecen y la inclusión de la tecnología en el SUS.

Neoplasias de la Mama; Industria Farmacéutica; Propaganda


Introdução

O câncer de mama é um dos mais incidentes no mundo, aproximadamente 1,67 milhão de casos novos, com cerca de 520 mil mortes em 2012 1. Ferlay J, Soerjomataram I, Ervik M, Forman D, Bray F, Dikshit R, et al. GLOBOCAN 2012: cancer incidence and mortality worldwide. Lyon: International Agency for Research on Cancer; 2013.. No Brasil, estima-se que em 2015 ocorrerão 57 mil novos casos da doença 2. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2014: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2014..

Contudo, os casos diagnosticados e tratados adequadamente apresentam bom prognóstico: dada a sobrevida média de 61% na população mundial, cinco anos após o diagnóstico 3. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Tipos de câncer. Mama. http://www.inca.gov.br/wps/wcm/connect/tiposdecancer/site/home/mama (acessado em 12/Set/2014).
http://www.inca.gov.br/wps/wcm/connect/t...
. No Brasil, a mortalidade continua elevada, muito provavelmente porque a doença ainda é diagnosticada em estágios avançados 2. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2014: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2014..

A magnitude socioepidemiológica do câncer e os altos custos com tratamento o tornam uma enfermidade cujas políticas públicas são extremamente relevantes para o Sistema Único de Saúde (SUS). Para diminuir sua incidência e prevalência, o Ministério da Saúde publicou a Política Nacional de Atenção Oncológica, enfatizando ações de promoção e prevenção, diagnóstico precoce, qualidade do tratamento e avaliações econômicas 4. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM no 2.439 de 8 de dezembro de 2005. Institui a Política Nacional de Atenção Oncológica. Diário Oficial da União 2005; 9 dez..

Todavia, a incoerência das políticas públicas, muitas vezes inexistentes ou insuficientes, faz com que a sociedade civil pressione o Estado para a sua formulação e execução. Como observa Cohn 5. Conh A. Estado e sociedade e as reconfigurações do direito à saúde. Ciênc Saúde Coletiva 2003;8:9-18., os movimentos sociais, por seu forte traço reivindicativo na luta pela efetivação de demandas sociais, constituem sintomas de conflitos presentes na própria sociedade. E como reivindicam direitos que implicam justiça social, quando vitoriosos, surgem duas questões relativas à sua representatividade: “sua origem como representação de interesses de determinados grupos sociais e a natureza de sua própria legitimidade5. Conh A. Estado e sociedade e as reconfigurações do direito à saúde. Ciênc Saúde Coletiva 2003;8:9-18. (p. 11).

Neste sentido, o estudo do relacionamento entre as instituições da sociedade civil dedicadas ao câncer de mama, aqui denominadas ISC-CM, e o Estado é de suma importância para entender como os momentos de interlocução ou enfrentamento contribuem para ampliação da justiça social. Porém, é igualmente importante analisar as estratégias por elas utilizadas e seus principais aliados, dentre os atores sociais envolvidos.

No âmbito do acesso a medicamentos, essa análise é fundamental já que estudos internacionais apontam a crescente relação dos laboratórios farmacêuticos com associações de portadores de doenças e advocacy groups 7. Angell M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. 3a Ed. Rio de Janeiro: Record; 2008. , 8. Ball DE, Tisocki K, Herxheimer A. Advertising and disclosure of funding on patient organization sites: a cross-sectional survey. BMC Public Health 2006; 6:201-12. , 9. Mosconi P. Industry funding of patients’ support groups. Declaration of competing interests is rare in Italian breast cancer associations. BMJ 2003; 327:344. , 1010 . Lenzer J. Lay campaigners for prostate screening are funded by industry. BMJ 2003; 326:680. , 1111 . Hirst J. Charities and patient groups should declare interests. BMJ 2003; 326:1211.. No Brasil, o assunto é pouco estudado, mas há indícios da influência da indústria farmacêutica sobre as estratégias das instituições da sociedade civil (ISC) junto ao Estado, para a utilização de medicamentos “inovadores” 1212 . Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Patentes e indústria: a encruzilhada das ONGs. Revista Rede Câncer 2008; 6:34-5. , 1313 . Essential Action. Patients, patents and the pharmaceutical industry: the pharmaceutical industry ties of the organization “Patients and Patents”, and the signers of the “Patient declaration on medical innovation and access”. Washington DC: Essential Action; 2008..

O objetivo desse estudo foi identificar e analisar as estratégias das ISC-CM para o acesso a medicamentos no SUS e os principais atores sociais mobilizados nesse processo.

Metodologia

Esta pesquisa se configura como original. Trata-se de um tema polêmico e complexo, que, além de apresentar escassa bibliografia, revelou um dilema metodológico desde o início: como abordar diretamente instituições relacionadas à indústria farmacêutica? Esta questão redefiniu o objeto de pesquisa – inicialmente centrado nas relações entre instituições e indústrias – para um estudo que visou conhecer e analisar as estratégias de ISC-CM para o acesso a medicamentos no SUS. Este objeto construiu-se a partir de variadas falas/percepções e análises de atores sociais implicados, de formas diferenciais, com a temática. Diante da dificuldade em acessar entrevistados dispostos a falar sobre esse tema, o estudo se iniciou com a estratégia metodológica de realizar entrevistas semiestruturadas 1414 . Pope C, Mays N, organizadores. Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. 3ª Ed. Porto Alegre: Editora Artmed; 2009. empregando o método bola-de-neve 1515 . Wasserman S, Faust K. Social network analysis: methods and applications. Cambridge: Cambridge University Press; 1994. , 1616 . Biernacki P, Waldorf D. Snowball sampling: problems and techniques of chain referral sampling. Sociol Methods Res 1981; 10:141-63.: um respondente indicava outros possíveis informantes de sua rede de relações para a pesquisa. Portanto, o campo foi sendo construído, processualmente, e os atores estavam ligados a ISC, a órgãos governamentais e a indústrias farmacêuticas. O estudo não pretendeu analisar as instituições a que pertenciam os entrevistados, mas, sobretudo, colocar em evidência suas percepções sobre o acesso aos medicamentos para câncer de mama no Brasil.

Foi realizada, de forma complementar, observação de eventos: INCA no Outubro Rosa – Fortalecendo Laços para o Controle do Câncer de Mama: Avanços e Desafios, realizado pelo Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), nos dias 4 e 5 de Outubro de 2012, no Rio de Janeiro e um encontro nacional das ISC-CM. Um diário de campo 1717 . Minayo MCS, organizador. O desafio do conhecimento. São Paulo: Editora Hucitec; 2008. , 1818 . Malinowski B. Objeto, método e alcance desta pesquisa. In: Zaluar A, organizador. Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves; 1990. p. 39-62. foi utilizado para registro desses dados, aos quais se somaram eventuais informações disponíveis nos sites de instituições ligadas à temática de pesquisa, o que foi tomado como material complementar para a análise. Para a garantia do anonimato dos participantes, foram omitidos dados que pudessem identificá-los, bem como nomes de instituições, indústrias farmacêuticas e medicamentos citados nas entrevistas.

A coleta de dados durou seis meses e foi interrompida por dois motivos: pelo cronograma de pesquisa e pelo fato de o material empírico já apontar para possíveis compreensões do tema.

A análise dos dados foi conduzida através da análise de conteúdo na modalidade temática 1919 . Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2006.. As categorias de análise, construídas com base nos objetivos do estudo e na leitura repetida dos dados, foram: (1) acesso a medicamentos para tratamento de câncer de mama; (2) relacionamento das ISC-CM com o Estado; (3) relacionamento das ISC-CM com a indústria farmacêutica; e (4) outras estratégias utilizadas pelas ISC-CM no acesso a medicamentos.

O estudo seguiu os critérios estabelecidos pela Resolução CNS nº 196/1996, foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina, Universidade Federal Fluminense e aprovado em outubro/2012. Foram prestados os esclarecimentos devidos aos participantes, através do termo de consentimento livre e esclarecido.

Com o objetivo de facilitar a análise e a visualização dos resultados, os entrevistados foram divididos em quatro modalidades – ISC, agentes de Estado, indústria farmacêutica e pesquisadores, de acordo com sua relação com a temática, ainda que não compusessem, entre si, um grupo real. É importante destacar que: (1) as instituições da sociedade civil dedicada ao câncer de mama envolvidas têm perfil bastante diferenciado, (2) essas instituições não correspondem à totalidade do movimento de câncer e (3) apenas uma indústria farmacêutica participou da pesquisa.

Resultados

Sintetizando as ideias dos entrevistados

O perfil dos entrevistados se conformou da seguinte maneira: uma pesquisadora vinculada à ISC internacional (ISC-I), quatro coordenadoras das ISC-CM – uma paciente e uma ex-paciente de câncer de mama e duas médicas – e uma paciente usuária de ISC-CM compuseram o grupo ISC – grupo de entrevistados (I). Entre os agentes do Estado (E) estavam: três técnicos do INCA, um procurador e uma juíza estaduais e uma defensora pública federal. Também participaram do estudo duas intelectuais/pesquisadoras (P) nos temas Propriedade Intelectual e Sociedade Civil/Judicialização da Saúde e um membro da indústria farmacêutica (IF) (Tabela 1).

Tabela 1
Caracterização dos grupos de entrevistados.

A primeira barreira para o acesso a medicamentos, identificada pelos entrevistados, é a insuficiente rede de assistência oncológica. As pacientes são encaminhadas, mas não há vagas suficientes nos centros de tratamento referenciados. Contudo, após a inserção nesses serviços do SUS elas têm acesso aos medicamentos cobertos.

Na oncologia, entretanto, não há uma lista única de medicamentos selecionados e, tampouco, há protocolos clínicos publicados pelo Ministério da Saúde para todos os tipos de cânceres 2020 . Coordenação Geral de Sistemas de Informação, Departamento de Regulação, Avaliação e Controle, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Avaliação e controle. Manual de bases técnicas da oncologia. 14a Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.. Não existe regra que estabeleça qual medicamento ou esquema terapêutico pode ser incluído nos procedimentos de 1a, 2a ou 3a linha de tratamento da tabela de Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade (APAC), que se baseia nos tipos e estadiamentos tumorais. Logo, a escolha dos medicamentos e a prescrição são de responsabilidade, respectivamente, da unidade de saúde e do médico assistente, cabendo-lhes pedir o ressarcimento ao SUS de acordo com valores pré-fixados para cada APAC 2020 . Coordenação Geral de Sistemas de Informação, Departamento de Regulação, Avaliação e Controle, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Avaliação e controle. Manual de bases técnicas da oncologia. 14a Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2012..

De acordo com o Ministério da Saúde, esses valores são revisados periodicamente e são avaliadas propostas de inclusão/exclusão de procedimentos, com bases em evidências técnico- científicas consolidadas e na relação custo-efetividade 2020 . Coordenação Geral de Sistemas de Informação, Departamento de Regulação, Avaliação e Controle, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Avaliação e controle. Manual de bases técnicas da oncologia. 14a Ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.. Entretanto, a maioria dos entrevistados do grupo de ISC se mostrou insatisfeita com o tratamento oferecido pelo SUS, principalmente pela falta de acesso a novas tecnologias. Alguns entrevistados afirmaram que os valores de tabela cobrem medicamentos muito “básicos” e que por isso os protocolos clínicos estão sempre defasados.

O problema é o valor pago pela tabela, e também não há incorporação nos protocolos. (...) É triste ver que eles se baseiam e ficam esperando estudos que nunca vão acontecer para mostrar que o impacto em sobrevida existe. (...)” (I3, coordenadora e médica da ISC-CM nº 1).

O colega que está lá [no hospital do SUS] de manhã, à tarde, passa o Medicamento B no consultório dele. Eu também passaria o Medicamento B, porque é mais moderno. A literatura mundial apoia o Medicamento B. Por que ele não está no protocolo? Não me pergunte. Quem sou eu para saber disso?” (I2, coordenadora e médica da ISC-CM no 3).

Em saúde pública precisam ser oferecidos tratamentos com evidência terapêutica reconhecida e boa relação custo-efetividade; em muitos casos a novidade terapêutica não apresenta melhores resultados do que a opção consolidada. Contudo, esses argumentos não são aceitos pela maioria dos entrevistados do grupo das ISC, segundo os quais o Ministério da Saúde tem a responsabilidade de fornecer os medicamentos mais modernos aos pacientes, ainda que para um aumento ínfimo de sobrevida.

A alegação do Ministério da Saúde é de que o ganho de sobrevida é mínimo. Realmente é mínimo, são meses. A pessoa não tem direito de ter meses com qualidade de vida? Perversidade e ignorância dos técnicos do Ministério da Saúde que não estão acompanhando as últimas pesquisas sobre uso do Medicamento A em câncer metastático. Eu sou prova viva disso, tomei e já tem quase um ano e eu estou aqui. Isso é graças ao Medicamento A” (I4, coordenadora da ISC-CM nº 2 e paciente).

Uma das pesquisadoras relativiza o papel central atribuído às avaliações de custo-efetividade na elaboração de políticas públicas de saúde, e traz a discussão sobre legitimidade do direito individual à vida em detrimento do direito coletivo à saúde:

“(...) Que escolha é essa? (...) Se eu for pelo parâmetro de custo-efetividade que é o parâmetro rei dos protocolos e diretrizes clínicas, (...) não teríamos acesso a medicamentos de AIDS na época que tivemos. Porque não era custo-efetivo. Então não é uma discussão fácil. (...) Se é legítimo socialmente eu desejar viver mais um ano, como eu devo desejar viver?” (P2, pesquisadora em Sociedade Civil/Judicialização da Saúde).

Questões entre direito coletivo e direito individual são complexas e muitas vezes conflitantes. O contexto em que se inserem é fundamental para a legitimidade de cada um. Nesta discussão, o cenário envolve a escassez dos recursos para execução das políticas públicas de saúde, a rapidez com que surgem novas tecnologias e a pressão para sua incorporação. Por outro lado, como ponderou a pesquisadora vinculada à ISC-I nº 1, a falta de recursos para a saúde deve ser mais bem justificada diante dos vultosos investimentos em áreas não essenciais.

Outra questão importante, discutida por agentes do Estado, é o modelo de financiamento empregado no custeio das políticas oncológicas, que pode ser fonte de iniquidades no sistema. Alguns hospitais, com verbas diferenciadas, oferecem melhores tratamentos do que aqueles que só podem contar com o ressarcimento do SUS.

“(...) O INCA tem guidelines para todos os tipos de câncer mais são guidelines de aplicação nas unidades assistenciais do INCA. Porque a gente tem um perfil: é um hospital terciário, especializado, de ensino, referência nacional, com orçamento próprio. Então, eu me dou o luxo de ter um guideline que seja muito próximo do padrão ouro internacional. (...) O nosso sistema [SUS] é muito desigual, muito diferenciado. Concentra tecnologia, dura, leve-dura e leve numa determinada região e em outras essa tecnologia é diferente. Cabe eu ter um guideline nacional num país como o nosso?” (E1, técnico do INCA).

Esses dados revelam a necessidade de maiores investimentos na rede de assistência oncológica que permitam oferecer tratamentos mais uniformes e com qualidade.

É imprescindível avaliar criteriosamente o que será oferecido pelo SUS. Nesse sentido, a Comissão de Incorporação de Tecnologias (CONITEC) assume papel relevante, mas sua efetividade depende, entre outros fatores, da capacitação de seus recursos humanos e de análises de impacto das tecnologias incorporadas. De outra forma, a incorporação de medicamentos servirá apenas à legitimação dos interesses dos grandes laboratórios farmacêuticos, como pontuaram alguns agentes do Estado e uma das pesquisadoras.

Nós vamos ter o perfil da judicialização inglesa, onde quem entra para requerer incorporação tecnológica é a indústria farmacêutica. Se antes a estratégia dos laboratórios farmacêuticos era junto aos médicos e aos pacientes, hoje eles podem ampliar, no sentido de ter uma demanda direta do laboratório ao poder executivo” (P2).

Sob influência da indústria farmacêutica

Estudos internacionais apontam o relacionamento de laboratórios farmacêuticos com ISC. Na 61 a Assembleia Mundial de Saúde, em 2008, quando se discutiu o tema Propriedade Intelectual, o grupo de trabalho recebeu um manifesto internacional denominado Patient Declaration on Medical Innovation and Access, favorável à manutenção do sistema de patentes de medicamentos vigente – posição defendida pela indústria farmacêutica. A análise do documento mostrou que mais de 50% das instituições signatárias – nove brasileiras – contavam com financiamentos oriundos de indústria farmacêutica 1313 . Essential Action. Patients, patents and the pharmaceutical industry: the pharmaceutical industry ties of the organization “Patients and Patents”, and the signers of the “Patient declaration on medical innovation and access”. Washington DC: Essential Action; 2008..

A análise das entrevistas, do caderno de campo e dos sites das principais ISC-CM permitiu confirmar a hipótese de que indústrias farmacêuticas patrocinam algumas dessas instituições; e possivelmente as influenciam com o intuito de ampliar seu mercado. As indústria farmacêuticas gastam em média 35% do valor das vendas com publicidade e marketing de seus produtos 2121 . Soares JCRS. “Quando o anúncio é bom, todo mundo compra”. O Projeto MonitorAÇÃO e a propaganda de medicamentos no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2008; 13 Suppl:641-9. e, boa parte desses recursos é direcionada para a propaganda dirigida ao consumidor (do inglês, DTCA), ainda que proibida no país.

Os pacientes passam a confiar mais na eficácia do medicamento e no fabricante, e se sentem em condições de avaliar seu tratamento quando recebem informações no ambiente onde são acolhidos e estabelecem as redes sociais que lhes dão sustentação como, por exemplo, nas ISC. O que ocorre é uma associação de estratégias sinérgicas: por um lado, a indústria acessa o médico e usa dessa influência para modificar o perfil de prescrição; por outro, fornece informação aos pacientes para fazê-los sentirem-se mais seguros em relação ao que foi prescrito.

Uma estratégia muito utilizada pela indústria é a promoção de palestras por especialistas em determinado tema no qual são considerados formadores de opinião. No encontro das ISC-CM, um oncologista (M1) declarou não haver conflitos de interesse em sua palestra, mas informou às mulheres sobre diversos medicamentos novos aprovados, recentemente, pelo FDA (Food and Drug Administration, Estados Unidos):

Nós médicos devemos estar mais ao lado das senhoras, pois só com essa pressão vamos mudar o tratamento de câncer no Brasil. (...) Infelizmente, estamos alguns anos atrasados na inclusão do medicamento A (...), [que] foi incorporado na década de 90 nos Estados Unidos” (M1).

Existe uma relação de assimetria entre pacientes e médicos, porque os médicos detêm o conhecimento técnico e a possibilidade de acesso às tecnologias. A confiança no médico é um elemento central e a maioria dos pacientes, que não tem condições de avaliar o tratamento prescrito, aceita a posição do médico como única verdade. Entretanto, a relação médico-paciente pode ser prejudicada pelas pressões do “mercado da saúde”, onde, em muitos casos, é a indústria que define a prescrição 2222 . Cruz Neto O. Dificuldades da relação médico-paciente diante das pressões do “mercado da saúde”. Ciênc Saúde Coletiva 2003; 8:307-8..

Os pacientes, alvos de propaganda, podem ser manipulados pelos interesses envolvidos na incorporação de medicamentos, principalmente porque estão muito fragilizados; veem nos medicamentos sua única esperança de viver e confiam em seus médicos. Quando determinado medicamento é reconhecido como a melhor alternativa, esses indivíduos o incluem em seu itinerário terapêutico e se empenham para acessá-lo 2323 . Alves PC, Souza IM. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: Rabelo MC, Alves PC, Souza IM, organizadores. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999. p. 125-38.. Isso fica claro na fala de uma paciente e coordenadora de uma ISC-CM: “O significado [do medicamento] eu não sei. Eu tenho um objetivo que é não morrer e eu faço qualquer negócio. Tomei a decisão de fazer qualquer coisa para viver. Não discuto, confio nos meus médicos” (I4).

Na realidade, não tem só o medicamento C, são cinco medicamentos para câncer que eles [Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA] estão segurando. (...) Tudo já foi feito, até o preço a [indústria nº 1] já deu. Não sei se são todos dela, mas o medicamento C é, e eles [indústria nº 1] já cumpriram todas as exigências” (I4).

Em consequência do envolvimento com a indústria farmacêutica, algumas ISC-CM nacionais se desenvolveram muito na última década, o que trouxe grande visibilidade para o movimento de câncer de mama, como revelou a presidente da ISC-CM nº 1 (I3).

Se não fosse isso [apoio da indústria], muita coisa não teria rolado, no início. Os Outubros Rosa da vida e toda essa coisa de visibilidade da causa em si. (...) O governo não dá nada para as organizações não governamentais. Nada! E como sabemos, aqui [Brasil] não existe espírito de doação. Então, o que é? Agora isso não quer dizer que a gente seja massa de manobra (...)” (I3).

Contudo, esse movimento é bastante heterogêneo. Dele fazem parte instituições com perfil predominantemente assistencialista e outras voltadas para mudanças em políticas públicas. Algumas patrocinadas pela indústria farmacêutica e outras que não aceitam esse tipo de financiamento.

A entrevista com o representante da indústria nº 1, citada no discurso de I4, esclareceu o mecanismo de relacionamento de sua empresa com as ISC patrocinadas, em que o objetivo principal é a ampliação do mercado através do empoderamento de pacientes:

“(...) Olhando a lógica de mercado, se essa empresa quer vender mais. O que é fato, ela não é boazinha. Aliás, né? Se não, não existiria. Se ela quer vender mais, ela tem que criar um mercado onde, realmente, o acesso seja facilitado. (...) A gente não trabalha acesso para o medicamento desta empresa, a gente trabalha acesso à saúde. Se o meu trabalho faz ampliar mercado, empoderar pacientes (...) e aí os pacientes vão ter mais acesso aos medicamentos de câncer, enfim, porque tem outras patologias que a gente trabalha. Perfeito! Se somos nós que vamos vender ou se é o concorrente, o problema é de Vendas [setor]” (IF1).

O conflito de interesses existente no relacionamento entre os laboratórios farmacêuticos e instituições que reúnem os “consumidores” de seus produtos é evidente, mas a indústria farmacêutica nº 1 procura amenizar o problema colocando o foco de seu trabalho no acesso à saúde. Entretanto, seu discurso revela a lógica empresarial de ampliação de mercado e as diferentes estratégias empregadas.

“(...) Ninguém dentro da companhia pode falar com grupo de pacientes, que não seja a minha equipe. É proibido. Porque o pessoal tem outra pegada que é a pegada comercial. Eles olham para grupos de pacientes e veem um monte de caixinhas de remédio. O cara tem meta para entregar, não é? Ele tem filho para dar comida... [risos]” (IF1).

A empresa tem bancos de dados com todas as instituições que trabalham com as condições patológicas de seu interesse, onde seleciona instituições e projetos, que contemplem seus objetivos, para patrocinar.

“(...) Minha área não tem um real. No entanto, eu movimento, hoje, uma média de quatro milhões de reais com grupos de pacientes. (...) Eu tenho que convencer o cara [gerente de vendas] de que essas instituições são legais e que elas vão fazer diferença para o produto dele. (...) Não adianta eu ir pra ele com aquele discurso lindo de SUS, de mais acesso para mais pessoas... o cara não tá nem aí, o negócio dele é resultado. (...) Eu sempre brinco com os meus grupos de pacientes dizendo: Me tragam argumentos, o trabalho de vocês tem que conseguir cada vez mais criar indicadores de sucesso. Por exemplo, conseguindo fazer uma transformação de política pública” (IF1).

O processo de trabalho varia com o perfil de cada instituição. As instituições mais capacitadas são classificadas como “decisores em saúde” e estimuladas a fazer advocacy.

“(...) Algumas exercem influência [em políticas públicas], e aí eu tenho um mapeamento do que eu chamo de influenciador e decisor em saúde. (...) Então ela vai construir agendas positivas com o governo, ou com o parlamento, enfim, com os senadores” (IF1).

As instituições menos desenvolvidas, de acordo com indústria farmacêutica nº 1, não estão aptas a discutir políticas públicas, mas também podem ser importantes na ampliação de acesso a medicamentos.

“(...) Porque se o paciente não tiver aderência [adesão] ao tratamento, consequentemente ele não vai buscar o acesso e aí ele não briga. É uma cadeia, e se eu for pensar, eu também não vendo. É simples!” (IF1).

Essas instituições também podem receber treinamentos a fim de se tornarem aptas a desenvolver diferentes atividades:

“(...) Se ela tem um trabalho que é de cuidado com o paciente, e se propuser a fazer advocacy, não vai saber fazer. Então ela começa um processo de mudança” (IF1).

Relacionamento das ISC-CM com o Executivo

No que tange ao Poder Executivo, o relacionamento é basicamente voltado para construção de parcerias para informação à população acerca do câncer de mama, acompanhamento das políticas e exercício de influência. As principais estratégias nesse sentido são: (1) aproximação com os gestores da saúde para advocacy, (2) atuação junto a CONITEC, (3) envio de informações sobre a rede de atenção oncológica e cobrança de melhorias, (4) participação nos conselhos de saúde, inclusive no CNS e em comitês de discussão de políticas de saúde.

“(...) Temos pressionado as autoridades por meio de ofícios e e-mails. A [ISC-CM nº 2] teve um ganho muito grande com o [projeto patrocinado pela instituição da sociedade civil internacional (ISC-I nº 1)] porque o ouvidor geral de todo o Ministério da Saúde marcou uma visita. Depois ele desmarcou, porque, talvez, o ministro venha em novembro” (I4, coordenadora da ISC-CM nº 2 e paciente).

O Ministro da Saúde quer agradar e se eleger governador de São Paulo com essa história do câncer de mama. Ele sabe tudo, e ninguém faz nada de graça. (…) Quem falou com os candidatos a prefeito nas suas cidades? Dever de casa, não é? E vamos fazer isso com os governadores também. Temos que nos impor” (I3, coordenadora e médica da ISC-CM nº 1, em palestra no Encontro Nacional dessas instituições).

O relacionamento das ISC-CM com Poder Executivo é importantíssimo para garantia de políticas públicas satisfatórias, mas a análise dos dados, sobretudo daqueles disponíveis nos sites das principais instituições, mostrou que as instituições que mais se destacam no cenário político são patrocinadas por indústrias farmacêuticas. Por isso, há o risco de que essas instituições busquem o relacionamento com o executivo com o objetivo de pautar os interesses de seus patrocinadores. Entrevistados, de alguma forma vinculados ao Estado, afirmaram que muitas instituições se relacionam com o governo e o influenciam, como pode ser visto, por exemplo, no relato abaixo:

Essas organizações da sociedade civil que brigam pelo aumento do acesso a medicamentos tem uma agenda de trabalho com vários stakeholders, com o Legislativo, com o Ministério Público, com os tomadores de decisão do Ministério da Saúde, das secretarias de saúde. (...) Elas têm uma agenda de trabalho com cada ator que é importante nessa história. (…) Talvez, no início, tenham tido boas intenções, mas depois são utilizadas para produzir uma agenda de interesse de seus financiadores” (E1, técnico do INCA).

Relacionamento das ISC-CM com o Legislativo

As principais estratégias empreendidas junto ao Poder Legislativo, desde o senado às câmaras de vereadores, são o envio de informações sobre o tratamento do câncer de mama e o advocacy, cujo foco está na pressão para aprovação dos projetos de lei que interessam ao movimento.

“[I3] um dia me disse que não adianta ficar fazendo crochê, tem de ir para o planalto. (...) Esse encontro já acontecia antes da existência da ISC-CM nº 1, (...), mas [I3] dizia que era encontro de comadres e que tínhamos que fazer uma coisa grande (I2, coordenadora e médica da ISC-CM nº 3, durante conversa no Encontro Nacionaldessas instituições).

A publicação da Lei nº 12.732/2012 2424 . Brasil. Lei no 12.732 de 22 de novembro de 2012. Dispõe sobre o primeiro tratamento de paciente com neoplasia maligna comprovada e estabelece prazo para seu início. Diário Oficial União 2012; 23 nov., que estabelece o prazo de 60 dias para início do tratamento do câncer, exemplifica o trabalho desenvolvido junto aos parlamentares.

Elas [ISC-CM nº 1 e outra instituição] desengavetaram juntas (...) um projeto de lei que estava desde 97 parado (…) [referência ao Projeto de Lei do Senado nº 32/1997, que originou a Lei nº 12.732/2012]” (IF1).

O relacionamento das ISC-CM com o Legislativo é fundamental na medida em que possibilita conquistas importantes para o tratamento de câncer no SUS como, por exemplo, a definição de um prazo para início de tratamento, o que, consequentemente, implica a ampliação da rede de assistência. Contudo, há indicações de que a construção de redes entre as ISC-CM e o Legislativo seja fruto do relacionamento com instituições internacionais, experientes nessa área, e com a indústria farmacêutica.

Temos entidades brasileiras financiadas por recursos internacionais trabalhando o câncer de mama, que não fique gravado, a [ISC-CM nº 1] é a cabeça no Brasil. Você já deve ter ouvido falar, é um poder do cão [...]” (E2, técnica do INCA).

A empresa fez um grant para a [ISC-CM nº 1] fazer esse empoderamento dos grupos de pacientes de câncer de mama no Brasil. E, além disso, a gente trabalhou algumas instituições, as que estavam mais organizadas e já tinham uma predisposição para advocacy” (IF1).

Durante o Encontro Nacional das ISC-CM, I3 comentou que sua instituição tem planos de reproduzir o modelo de relacionamento com o Legislativo aprendido com a ISC-I nº 1. Para isso, será montada uma base, em Brasília, de monitoramento de políticas públicas.

Relacionamento das ISC-CM com Judiciário

A influência do Poder Judiciário nas políticas públicas de saúde tem sido bastante discutida nos últimos anos 2525 . Diniz D, Medeiros M, Schwartz IVD. Consequências da judicialização das políticas de saúde: custos de medicamentos para as mucopolissacaridoses. Cad Saúde Pública 2012; 28:479-89. , 2626 . Lopes LC. Uso racional de medicamentos antineoplásicos e ações judiciais no estado de São Paulo. Rev Saúde Pública 2010; 44:620-8. , 2727 . Messeder AM, Osório-de-Castro, CGS, Luiza VL. Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2005; 21:525-34. , 2828 . Ventura M, Simas L, Pepe VL, Schramm FR. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis (Rio J.) 2010; 20:77-100. e também se constitui numa ferramenta para as ISC-CM no acesso a medicamentos 2929 . Soares JCRS, Deprá AS. Ligações perigosas: indústria farmacêutica, associações de pacientes e as batalhas judiciais por acesso a medicamentos. Physis (Rio J.) 2012; 22:311-29.. Todos os entrevistados mencionaram que o acesso a medicamentos através da justiça representa a garantia do direito à saúde, mas houve divergência de opiniões com relação aos limites para utilização dessa via.

O grupo das ISC, em sua maioria, defende o direito irrestrito aos medicamentos.

Desde que esteja cientificamente comprovado que eu preciso daquele medicamento, (...) tem mais é que brigar. E se não está disponível no SUS, então eu entro com a ação judicial para o Estado me pagar. (…) Isso é direito assegurado no SUS, ele tem que oferecer condições para o tratamento que eu preciso” (I1, pesquisadora vinculada à ISC-I nº 1).

Entre os agentes do Estado, houve ponderações: se por um lado, a judicialização força o Estado a se organizar para prover o que foi definido nas políticas de saúde prioritárias, por outro lado, pode se constituir num problema para o sistema de saúde. Porque, em geral, são pleiteados medicamentos novos, sem evidência clínica e de alto custo, cuja compra consumirá os recursos destinados à manutenção das políticas.

Eu acho que tem um excesso, porque muitos desses pedidos [judiciais] não vêm a partir da comprovação de evidência de eficácia do medicamento. (...) É complicado que sobre a máxima de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, qualquer nova opção terapêutica, pouco estabelecida, seja acessada por meio de processo judicial em que o juiz tem muito pouca informação para arbitrar. (…) Em geral, são coisas absolutamente caras que uma vez oferecidas retiram, provavelmente, de outras ações sua manutenção. (...) Como não mover de um tudo para tentar? (…) É natural que ele [paciente] queira se apegar a alguma chance de viver mais ou viver melhor e ele fica um alvo muito fácil de ser seduzido por uma aposta. E aí temos esse conflito bioético entre o indivíduo e a coletividade” (E3, técnica do INCA).

Uma das estratégias adotadas pelas ISC-CM é o oferecimento de informações sobre acesso a medicamentos pela justiça, através de voluntários capacitados, de seus sites e de impressos distribuídos nos hospitais.

Outro dado importante é o surgimento de parcerias entre defensores públicos da União e ISC-CM mais representativas, o que é muito favorável à garantia dos direitos dos usuários do SUS, desde que sejam pleiteados medicamentos realmente necessários.

A questão tempo faz parte do tratamento do câncer. (...) Então a gente se uniu [referência à ISC-CM nº 1] para mudar isso. A coisa evolui muito e rápido, mas ainda falta muito. (...) Se há um tratamento no SUS ele tem de ser usado, mas nós temos direito ao melhor. Se há outro melhor, do melhor laboratório, vamos judicializar sim!” (defensor público federal, no encontro nacional das ISC-CM, vale ressaltar que não se trata de E6).

O mesmo defensor lembrou que o grande número de ações judiciais pleiteando o medicamento A fez com que São Paulo o padronizasse, há anos, comprovando que o judiciário vem sendo utilizado para pressionar a inclusão de medicamentos no SUS 2929 . Soares JCRS, Deprá AS. Ligações perigosas: indústria farmacêutica, associações de pacientes e as batalhas judiciais por acesso a medicamentos. Physis (Rio J.) 2012; 22:311-29..

Algumas instituições também oferecem assessoria jurídica através de parcerias com escritórios privados de advocacia. Uma das pesquisadoras citou o custeio de ações judiciais pelos fabricantes dos medicamentos e criticou o envolvimento de determinadas instituições com a indústria.

Uma promotora me disse: ‘Olha, eu canso de atender pessoas hipossuficientes, que obviamente não tem recursos, estão ali numa situação frágil, e quando elas chegam com a primeira petição e eu olho é de um escritório da Paulista [Avenida]. Alguma coisa está errada’. (...) Se você entra com uma petição pedindo determinado medicamento muito caro e sabendo que a possibilidade de você receber é muito grande... é um mercado. (...) É muita ingenuidade achar que a pessoa que vende esse medicamento não tem interesse nessa ação” (P1, pesquisadora em Propriedade Intelectual).

A influência da indústria farmacêutica junto às ISC no processo de judicialização da saúde se revela como uma estratégia da indústria, tanto no discurso do representante da indústria quanto no do procurador estadual:

“(...) Então, eu vou ter uma estratégia, que aí é de fato, entrar na justiça, ou buscar o Ministério Público para que o paciente tenha acesso” (IF1).

Eles [laboratórios] saem à caça de pacientes, no Brasil inteiro. E aí usam essas instituições para buscar clientela. Usam o caminho da judicialização para poder conseguir vender seu produto. (...) É uma engrenagem muito perversa da indústria farmacêutica para conseguir ampliação de mercado” (E4).

Quando se trata da judicialização da saúde, uma das questões principais é saber como o Estado, no âmbito dos três poderes, “deve proteger as pessoas dos riscos das novidades oferecidas pelo ‘mercado de saúde’, que, não raramente, cria ‘necessidades’ para ‘vender’ soluções2828 . Ventura M, Simas L, Pepe VL, Schramm FR. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis (Rio J.) 2010; 20:77-100. (p. 83). Sem, contudo, deixar de prestar assistência, e garantir o acesso, de maneira igualitária, às novas tecnologias que também podem ser benéficas. Trata-se de garantir o direito legítimo e fundamental de acesso aos medicamentos no sentido da promoção da saúde e, não, o direito ao consumo de mercadorias, em nome da saúde 2929 . Soares JCRS, Deprá AS. Ligações perigosas: indústria farmacêutica, associações de pacientes e as batalhas judiciais por acesso a medicamentos. Physis (Rio J.) 2012; 22:311-29..

Há pouco tempo, o tratamento dado aos pedidos judiciais de medicamentos seguia o mesmo padrão, independente do que estivesse sendo pleiteado.

Eles julgavam no escuro, sem saber se aquelas drogas eram necessárias ou não para aquele tratamento, se eram inclusive indicadas. (...) Nem o juiz, nem o procurador, nem o defensor, nem o promotor, ninguém tinha conhecimento específico do que se tratava a demanda, se era um demanda legítima ou não. Se aquilo poderia colocar em risco o próprio postulante. (...) Qualquer coisa que se pedia, a qualquer tempo, a qualquer custo, de qualquer dos entes, de todos ao mesmo tempo, se deferia” (E4).

Recentemente, o Judiciário vem empreendendo capacitações internas, especialmente para os juízes. Nesse sentido, a análise do discurso dos entrevistados, e especialmente da juíza estadual (E5), demonstra a construção do entendimento de que o pleito deve ser negado se não houver justificativa para inaplicabilidade da alternativa terapêutica disponível no SUS.

Do outro lado da balança, entretanto, pesam a grande influência da indústria, a inacessibilidade à assessoria técnica – avaliação dos pedidos por profissionais de saúde como ocorre nos Núcleos de Apoio Técnico (NAT) –, e a resistência de alguns juízes que defendem a autonomia do médico em prescrever. Assim, o judiciário segue interferindo nas políticas de saúde e fazendo escolhas que não permitem a participação da sociedade como preconiza o SUS.

Conclusões

Essa pesquisa produziu dados acerca do assunto sem pretender, no entanto, esgotá-lo, uma vez que o mesmo é vasto, complexo e ainda pouco explorado no país. Importa considerar as dificuldades encontradas ao longo do percurso: por se tratar de um assunto polêmico e bastante velado, não foi fácil conseguir entrevistas com representantes das ISC e da indústria farmacêutica; e houve momentos em que eles procuraram não revelar todas as informações que detinham sobre o assunto. Além disso, o trabalho foi fortemente marcado pelos dissensos e interesses dos diferentes grupos em relação ao tema, o que era esperado, pois envolveu um grupo de atores diversificados que falam sobre questões atuais.

As ISC-CM têm influenciado o acesso a medicamentos para câncer de mama no SUS e suas principais estratégias têm como foco a pressão sobre o Estado, em todas as esferas e poderes. Detectou-se a existência de parcerias com representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Entretanto, o maior mantenedor das atividades desenvolvidas pelas ISC-CM mais representativas é a indústria farmacêutica que visa à ampliação de seu mercado, sobretudo, influenciando a utilização de medicamentos novos.

É evidente que há muitas lacunas deixadas pelas políticas públicas, que fazem com que a sociedade pressione o Estado para satisfazer suas demandas. Este, por sua vez, deve cumprir seu papel em relação às reais necessidades de assistência à saúde.

Não se pode negligenciar que há medicamentos novos dos quais as pacientes realmente precisam e a importância do controle social na efetivação das políticas de saúde. Todavia, é imprescindível avaliar criteriosamente os medicamentos antes de sua incorporação ao SUS, diante das grandes pressões da indústria farmacêutica.

Agradecimentos

Aos entrevistados pela confiança e receptividade à proposta de trabalho, à professora Jussara Calmon pelo acolhimento no programa de mestrado, aos professores Cláudia Garcia Serpa Osório-de-Castro, Gabriela Mosegui, Júlio Wong e Virgínia Dresch, membros das bancas de qualificação e defesa, por partilharem comigo seus saberes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2013
  • Recebido
    02 Jan 2015
  • Aceito
    14 Jan 2015
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