Resenha

2014

O livro Etnografias em Serviços de Saúde, recém-editado pela Editora Garamond e organizado por Soraya Fleischer e Jaqueline Ferreira, reúne uma coletânea de textos que apresenta aos leitores os diversos aspectos da realização de etnografias em serviços de saúde e a magnitude deste campo de estudo.

A obra apresenta-se sob a forma de 12 capítulos de natureza diversificada, trazendo ao debate temas como: desintoxicação e reinserção social de usuários de crack; reforma psiquiátrica; cuidados médicos em um centro humanitário francês; uso de terapias alternativas/complementares no Sistema Único de Saúde (SUS); contracepção de emergência e a etnografia em uma drogaria; experiências de um grupo de ginástica; reprodução e sexualidade, regulação de medicamentos e uma etnografia de um comitê de ética em pesquisa.

Alguns trabalhos têm maior densidade teórica, outros apresentam-se de maneira mais descritiva. Os textos têm em comum o poder de estimular o leitor ao questionamento das múltiplas possibilidades de se pensar os processos de saúde e adoecimento, utilizando a etnografia como ferramenta teórica e metodológica.

A heterogeneidade dos capítulos possibilita a visão de diversos “modos de fazer” etnografia. Os textos nos estimulam a um diálogo com a literatura apontando contrapontos e conceitos essenciais aos estudos antropológicos, como apresentado no texto De Perto e de Longe do que Seria Natural, Mais Natural e/ou Humanizado: Uma Etnografia de Grupos de Preparo para o Parto, de Rosamaria Carneiro.

O conteúdo da obra provoca uma reflexão sobre o lugar do pesquisador nas investigações antropológicas, tecendo cuidadosamente a rede na qual se encontra inserido o antropólogo e todos os desafios que podem ser encontrados em decorrência dela.

A imersão no campo é bastante explorada em vários capítulos. Da escolha do objeto de pesquisa (o hospital, o grupo de idosos, os serviços de saúde, a drogaria, o grupo de preparo para o parto, o comitê de ética ou os debates da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA) até o passo a passo das idas e vindas, das dificuldades do etnógrafo em campo.

Os capítulos mostram, de maneiras específicas aos objetos de estudo, o lugar do pesquisador e a perspectiva dos participantes das pesquisas. O campo de pesquisa, exposto de maneira clara em vários estudos, evidencia as tensões, aproximações e distanciamentos que ocorrem durante o trabalho de campo. Dessa forma, o lugar do pesquisador fica claro para o leitor, assim como a perspectiva dos participantes da pesquisa. Um exemplo é o texto de Andrade & Maluf sobre as perspectivas dos usuários e usuárias de serviços de saúde mental. As autoras optaram por utilizar a palavra “experientes” no lugar de “portadores”, “usuários” ou “doentes”. A escolha se justifica pelo lugar ocupado pelas pesquisadoras e seus interlocutores: as pessoas que tinham experiências no campo da saúde mental. O texto de Barroso, Knaut & Machado, acerca do tratamento de usuários de crack, evidencia a atenção ao usuário de drogas na perspectiva dos serviços e dos profissionais no processo de desintoxicação, prescrição de medicamentos e reinserção social. Nesse estudo, a etnografia em dois serviços de saúde distintos é a estratégia metodológica escolhida e discute a autonomia e a vontade dos sujeitos. Esses são alguns exemplos, entre outros, do olhar atento e cuidadoso das autoras e autores sobre a capacidade criativa e não passividade dos participantes da pesquisa.

Os capítulos foram escritos e organizados de modo a estimular seu interlocutor a pensar acerca das temáticas apresentadas, proporcionando importantes pontos de reflexão para discussão das políticas públicas e da assistência. A compreensão de temas como o acesso aos serviços de saúde por meio do itinerário terapêutico dos indivíduos; a percepção dos usuários sobre a possibilidade de recriar os serviços de saúde; a descontextualização da experiência do sofrimento na abordagem terapêutica; a individualização da responsabilidade e as políticas de Estado como objeto da antropologia, entre outros, constituem um mote para o debate que permite uma aproximação entre academia e serviços de saúde. Contribuem, dessa forma, para a criação de espaços de discussão e aprendizagem de um contexto em constante movimento como é o de serviços de saúde.

Alguns capítulos evidenciam a polissemia dos usos dos sistemas de saúde, estabelecendo um diálogo provocativo sobre a tensão existente entre indivíduo e sociedade. Problematizam temas como o estigma, a moralidade e a responsabilização dos indivíduos acerca de seus processos de cuidado e cura (por exemplo, o estudo de Toniol sobre etnografias da promoção de terapias alternativas/complementares no SUS, e também o estudo de Fleischer & Batista, sobre um grupo de ginástica de idosas).

Além da diversidade de objetos, chama a atenção ainda a variedade de regiões onde as pesquisas foram desenvolvidas: capitais, interior e também um estudo internacional de Jaqueline Ferreira – Reparar o Moral: Etnografia dos Cuidados Médicos de um Centro de Saúde Humanitário Francês, em que são descritos os desafios que ultrapassam a prática clínica tradicional.

Essa coletânea de artigos demonstra que a etnografia pode ser feita de várias maneiras, em lugares não facilmente circunscritos.

A formação de base dos autores é diversificada, não se concentrando apenas nas ciências sociais, demonstrando a capacidade de encantamento exercida pela antropologia e as possibilidades de interface com a Saúde Coletiva.

A leitura da obra é acessível mesmo para aqueles que ainda estão iniciando no campo da pesquisa antropológica. A coerente organização e apresentação dos capítulos atraem a atenção do leitor. Além da colaboração para o fortalecimento e melhor compreensão das políticas públicas, podemos esperar desse livro um convite à sedução pelo método etnográfico.

No decorrer da leitura evidencia-se também a contribuição da antropologia ao campo de estudos da Saúde Coletiva, possibilitando uma aproximação entre estas duas áreas do conhecimento.

No campo da Saúde Coletiva, interdisciplinar por natureza, a publicação de etnografias em forma de artigos restringe o espaço necessário para uma adequada descrição do método. Os capítulos do livro mostram detalhadamente os percursos percorridos pelos pesquisadores para alcançar os objetivos das pesquisas. Dessa forma, se revelam como uma oportunidade privilegiada de evidenciar a importância de apropriação do método, muitas vezes tratado de maneira sucinta e pouco compreensível aos leitores não iniciados nas Ciências Sociais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br