A reconstrução do passado humano é uma tarefa multidisciplinar por excelência. Enquanto a arqueologia e a história sobressaem-se como suas principais intérpretes, um conjunto diverso de disciplinas como a geologia, ecologia, física, química, entre muitas outras, subsidiam e problematizam tais interpretações e reconstruções. Nessa pluralidade, especialidades foram criadas, transformadas com base em perspectivas interdisciplinares, desenvolvidas ao longo de décadas, ampliando as possibilidades de investigação e, de fato, estabelecendo-se como campos de estudo independentes, com metodologias e abordagens próprias.
Um exemplo claro é o estudo de condições de saúde e doença em populações pretéritas, ao qual denominamos paleopatologia humana e que tem suas raízes a partir de meados do século XIX com o crescente interesse de antropólogos, físicos e médicos nos sinais indicativos de lesões e processos patológicos observados em remanescentes humanos. O campo, consolidado como tal a partir do século XX 11. Aufderheide AC, Rodrigues-Martín C. The Cambridge encyclopedia of human paleopathology. Cambridge: Cambridge University Press; 1998., já apresenta, em sua origem, estudos sobre a presença de parasitos em múmias egípcias. Unindo abordagens antropológicas e biomédicas, a paleopatologia amplia seu escopo investigativo a partir do desenvolvimento de novas tecnologias e perspectivas.
É nesse terreno fértil que a paleoparasitologia gradativamente adquire sua identidade. A presença de investigações de cunho paleoparasitológico, ainda na consolidação da paleopatologia, já antevia uma trajetória de intensas contribuições ao campo e a importantes questões relativas a interações parasito-hospedeiro, migrações humanas, estilos de vida e condições de saúde no passado. Todavia, a despeito de suas potencialidades, apenas a partir da década de 1960, com o emprego de técnicas de reidratação que permitiriam a recuperação de vestígios de parasitos (ou seus ovos), a partir de fezes ressecadas, foi possível a ampliação dos estudos paleoparasitológicos e o pleno desenvolvimento do campo 22. Araújo A, Ferreira LF. Homens e parasitos: a contribuição da paleoparasitologia para a questão da origem do homem na América. Revista da Universidade de São Paulo 1997; 34:58-69..
No Brasil, a publicação de O Parasitismo e Migrações Humanas Pré-Históricas, de Olympio da Fonseca Filho 33. Gonçalves MLC, Araújo A, Ferreira LF. Paleoparasitologia no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2002; 7:191-6., pode ser considerada uma das inspirações das investigações paleoparasitológicas no país, cuja primeira apresentação científica foi feita em 1979, no Congresso Brasileiro de Parasitologia. De fato, a participação do Brasil nesse cenário não foi periférica; o próprio nome da disciplina foi proposto por Luis Fernando Ferreira, cujo trabalho pioneiro de 1979, em parceria com Adauto Araújo e Ulisses Confalonieri, introduz a disciplina no país 22. Araújo A, Ferreira LF. Homens e parasitos: a contribuição da paleoparasitologia para a questão da origem do homem na América. Revista da Universidade de São Paulo 1997; 34:58-69..
Desenvolvida no seio da atual Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), as investigações paleoparasitológicas e paleopatológicas floresceram aproximando as temáticas da saúde pública das investigações sobre o passado humano, e estabeleceram novas conexões e abordagens para o entendimento dos processos de saúde num contexto temporal amplo.
Não é por acaso que Fundamentos de Paleoparasitologia, lançado em 2011, tem como editores dois dos principais pioneiros e expoentes nacionais (L. F. Ferreira e A. Araújo) em parceria com o arqueólogo/bioarqueólogo norte-americano K. Reinhard. Tal composição é certamente um reflexo da longa parceria e das contribuições em conjunto para o campo. A publicação recebeu em 2012 o prêmio Jabuti na Categoria Ciências Naturais, um reconhecimento da importância de suas contribuições, mas também um reconhecimento da importância dos diferentes estudos sobre o passado.
Agora com sua versão em inglês, Foundations of Paleoparasitologycumprirá sua vocação de apresentar aos leitores internacionais, leigos ou especialistas, uma visão ampla do campo, que apesar de sua abrangência, não perde em densidade e conteúdo. O esforço conjunto dos editores revela parceiras antigas que se conjugaram em inúmeras produções e formação de vários profissionais. Como reflexo dessa intensa atividade, a publicação, que já nasce um clássico, conta com a contribuição de 31 autores, entre brasileiros, argentinos, norte-americanos e franceses, cobrindo diferentes aspectos do tema ao longo de 28 capítulos.
A perspectiva de oferecer quase que uma “descrição densa” do campo, provavelmente está refletida na estruturação da obra, cobrindo textos que organizam e substanciam o entendimento da paleoparasitologia, suas questões metodológicas, os principais achados paleoparasitológicos, as suas perspectivas e os questionamentos internos da disciplina. Tais textos estão distribuídos por quatro seções ou “partes” que auxiliam na absorção cadenciada dos conceitos e ideias propostas.
A primeira parte Parasites, Human Hosts and the Environment, apresenta capítulos que fundamentam as leituras precedentes, introduzindo o leitor ao tema. Nesse sentido, a perspectiva histórica da disciplina está conjugada com a apresentação de conceitos basilares como os capítulos dedicados ao parasitismo, à origem dos parasitas humanos e à preservação de materiais orgânicos. Com contribuições relevantes para o estudo de grandes movimentos migratórios humanos no passado, nessa seção são ainda apresentadas questões referentes ao povoamento do continente americano e à relevância dos parasitas como marcadores de tais movimentos migratórios.
O desenvolvimento de metodologias e a aplicação de técnicas variadas refletem tanto os avanços como as limitações das investigações paleoparasitológicas. A preservação desses remanescentes biológicos em contextos arqueológicos, o desenvolvimento de técnicas adequadas de escavação e coleta de amostras, bem como a correta recuperação/identificação desses vestígios em laboratório, constituem elementos-chave da disciplina. Tais questões estão reunidas na parte II – Parasite Remains Preserved in Various Materials and Techniques in Microscopy and Molecular Diagnosis.
Na terceira parte do livro são apresentados os principais achados paleoparasitológicos recuperados em contexto arqueológico. Organizados por continente e, é claro, com um capítulo distinto para a América do Sul, é possível vislumbrar por esses textos a diversidade e quantidade de achados, e claramente perceber a importância da colaboração entre arqueólogos e paleoparasitólogos para o entendimento de diferentes aspectos do passado.
A quarta e última seção do volume, intitulada Special Studies and Perspectives, apresenta três artigos diferentes, mas que permitem visualizar as interseções e interações da paleoparasitologia com a paleoepidemiologia, uma perspectiva de abordagem dos estudos paleopatológicos com a expectativa de reconstrução populacional dos processos de saúde e doença no passado. O primeiro artigo, sobre a paleoepidemiologia da doença e Chagas, aborda o desenvolvimento dos estudos paleoparasitológicos e dos contextos bioculturais que podem ter contribuído para a transmissão da doença e manutenção de vetores próximos ou mesmo nos diferentes assentamentos humanos ao longo do tempo. O segundo capítulo traz ao leitor as possibilidades e dificuldades de investigar as doenças no passado por meio de documentos escritos; um aparte numa obra que dialoga intensamente com a arqueologia e vestígios ágrafos, lembrando de outras formas de investigar o passado, para além da evidência direta. Por fim, o ultimo capítulo conclui a obra olhando para o futuro, para o crescente desenvolvimento de novas metodologias e técnicas que permitirão ampliar as investigações paleoparasitológicas.
Do conteúdo de Fundamentals of Paleoparasitology fica clara a sua posição como obra de referência obrigatória para os interessados no tema e nos estudos de populações pretéritas. Todavia, é importante destacar a sua relevância na formação ampla dos profissionais envolvidos com a temática da saúde pública, especialmente no entendimento do papel dos contextos bioculturais e das trajetórias históricas nas discussões sobre a saúde dos grupos humanos.
- 1Aufderheide AC, Rodrigues-Martín C. The Cambridge encyclopedia of human paleopathology. Cambridge: Cambridge University Press; 1998.
- 2Araújo A, Ferreira LF. Homens e parasitos: a contribuição da paleoparasitologia para a questão da origem do homem na América. Revista da Universidade de São Paulo 1997; 34:58-69.
- 3Gonçalves MLC, Araújo A, Ferreira LF. Paleoparasitologia no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2002; 7:191-6.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Ago 2015