O livro Justiça Social e Direitos Humanos: Ensaios Filosóficos , de Maria Clara Dias, é um daqueles essenciais para leitura, sobretudo num momento de ataques sucessivos à ampliação de direitos e liberdades. A obra permite refletir e fortalecer argumentos em prol desse ideário de justiça social, a partir de temas centrais como: a relação entre moralidade e legalidade; justiça social e democracia; ética, mecanismos institucionais de gestão e identidade feminina.
O foco central de sua análise é a caracterização dos direitos humanos como básicos universais. A saúde como um direito humano tem sustentado transformações nas leis e políticas públicas de saúde, preventivas e assistenciais, e nas relações entre Estado e sociedade. Os temas trazidos à discussão na obra convergem com as preocupações da Saúde na busca de ações equânimes que reduzam as desigualdades.
Para aqueles que defendem a saúde como expressão de cidadania e justiça social, o estudo amplia esta compreensão ao problematizar questões contemporâneas e enfrentar debates com intelectuais renomados das Ciências Humanas, por meio de uma linguagem objetiva, agradável e fincada nas reflexões que contemplam a ética, a política e a filosofia. Embora o livro contenha dez capítulos e uma introdução, escritos em diferentes momentos, eles parecem ter sido pensados para uma única obra. A coerência argumentativa sem tergiversação idealista sintetiza muito bem a trajetória acadêmica da professora de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com doutorado em Berlim, na Freie Universitat, e pós-doutorados nas Universidades de Connecticut e Oxford, respectivamente.
Fiel à sua preocupação com os princípios de direitos humanos e com o desassistido, com aquele que não tem autonomia, mas precisa ter seus direitos garantidos, a autora lança sua publicação no ano de 2015. Ano no qual um negro governa os Estados Unidos, mulheres governam a Argentina, o Chile e o Brasil, um indígena governa a Bolívia, um ex-camelô a Venezuela, e um dos remanescentes do movimento sandinista governa a Nicarágua. As leis de inclusão da pessoa com deficiência (Lei no 13.146/2015 ) e de proteção e acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional (Lei no 13.123/201 5) sancionadas em 2015, dão eficácia nacional às novas Convenções Internacionais de Direitos Humanos reafirmando o princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos no Brasil.
Não obstante todos os avanços destacados, persistem ainda a desigualdade e a carência de direitos universais que possibilitem a negros, indígenas, mulheres e trabalhadores alcançarem dignidade no planeta. Por tudo, as reflexões de Dias são atuais, úteis para se compreender os limites da efetivação de direitos e as necessárias transformações de um mundo no qual poucos ainda têm muito, enquanto muitos pouco têm.
O descontentamento da autora com a forma de organização societal e política e a defesa de um espaço inclusivo para todos, torna a sua obra instigante e merecedora de elogios. Sua principal contribuição está no cerne das questões filosóficas ligadas à ética, que servirão como concepções-guias para as políticas.
O trabalho perpassa em revista alguns autores clássicos como Habermas, Rawls, Dworkin, Miller, Tugendhat, Amartya Sen, Walzer e até mais antigos como Kant, Hume, Mill e Aristóteles. A descrição das teses desses autores é feita com absoluta honestidade e competência, oferecendo ao leitor uma noção do que foi defendido por esses clássicos.
Uma das principais virtudes da autora é sua originalidade. Apresenta os autores sempre com independência, estabelecendo um debate crítico, coerente, por vezes duro, com eles. Com base nesses intensos diálogos, Dias constrói suas próprias hipóteses com muita coragem, em tempos de capitulações e de reprodução acrítica de teses alheias.
Sua preocupação central é sustentar um argumento moral para o reconhecimento dos direitos sociais básicos que, por conseguinte, garanta uma vida digna a todos. O princípio "de moral do respeito universal" lhe serve de alicerce, em suas palavras: "Reconhecer alguém como portador de direitos significa tomar o outro não como mero objeto de nossas obrigações, mas reconhecer nossas próprias obrigações como reflexo de seus direitos. Apenas no âmbito de uma comunidade assim definida, pode cada indivíduo reclamar seus direitos como algo independente do arbítrio dos demais " (p. 19).
Essa reflexão é fundamental para repensarmos as nossas ações nos diversos campos de atuação e do saber, com vistas a tratar o outro como portador de direito e não como objeto que possa garantir benesses individuais ou coletivas.
O próximo passo é convencer o leitor de que os direitos humanos são constituídos por direitos sociais básicos. Inicialmente, ela entende que cada indivíduo enquanto membro da comunidade deve ser cooperativo, e não se pode tratar os seres humanos como meios, tampouco instrumentalizá-los para fins privados. A igualdade universalista, o respeito mútuo e a reciprocidade estão postos aqui em primeiro lugar.
Respeitadas essas premissas, a autora defende que todos devem usufruir de uma vida digna, composta pelos direitos básicos, como a saúde, educação, moradia, formação profissional, trabalho etc. Esses direitos são associados e somente contemplados se garantidos com independência face ao arbítrio dos demais e que tenham a possibilidade de automanutenção, em duas palavras: autonomia e liberdade.
Essa argumentação de Dias é importante justamente para criar um contraponto à maior parte dos intelectuais que se limitam a defender apenas a liberdade individual como premissa imprescindível para um bem-viver. Essa, aliás, constitui a base do pensamento clássico liberal, que preocupado com a liberdade de mercado e com a não intervenção do Estado absolutista sobre os negócios da nascente burguesia, defendia com toda sua força a liberalidade de acumular, negligenciando e se contrapondo aos princípios de igualdade social, ou mesmo de reprodução social dos não proprietários. Dias ultrapassa essa questão e assevera que a comunidade moral deve preocupar-se com todos e para além da liberdade, pois aqueles que são carentes de autonomia, como idosos, crianças e pessoas com deficiências, devem ser compensados com outros direitos que lhes garantam vida digna.
Com essas palavras, Dias combate o utilitarismo, o liberalismo e, por consequência, todas as formas disfarçadas de egoísmo. Sustenta ainda que se tanto é gasto com segurança pelo Estado, seria legítimo investir tanto quanto ou mais em diretos sociais básicos.
Sem tirar o mérito de suas teses cujas premissas incorporam o Estado e o nacionalismo como garantias, podemos observar que do ponto de vista histórico essas instituições serviram mais como obstáculo para garantir uma vida inclusiva para todos, atendendo prioritariamente interesses de determinados grupos ou classes sociais, do que preocupado com estabelecimento de direitos básicos universais. Esses seriam os únicos pontos que poderíamos sugerir um olhar mais profundo: tratar por uma perspectiva histórica e mais crítica o papel dessas instituições, favorecendo reflexões sobre novas institucionalidades inclusivas e emancipadoras dos sujeitos.
Foi um enorme prazer ler e discutir a obra em diálogo interdisciplinar, da ciência política, direito e saúde coletiva. Sua perspectiva filosófica de justiça diferenciada em tempos de filosofia e teoria social individualistas nos levou a pensar não só na inclusão social, mas nos que não têm autonomia. Assim, a autora cumpre a sua preocupação inicial "como educadora, pesquisadora, filósofa e cidadã", e o faz de forma indubitavelmente eficaz. Esperamos que essa obra tenha o impacto necessário em prol da alteridade, do amor, do respeito e da construção de um mundo justo e inclusivo.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
01 Abr 2016