O livro Global Mental Health: Principles and Practice é de especial interesse no momento atual da saúde mental brasileira, marcado por uma profunda desigualdade de acesso a serviços e uma claudicante implantação da política nacional.
A pesquisa em saúde mental global integra várias disciplinas; combinando investigação e ação para melhorar acesso aos serviços, ao tratamento e para reduzir a violação dos direitos humanos das pessoas que sofrem de transtornos mentais. O termo "global mental health" [saúde mental global] ganhou destaque nas publicações científicas a partir de 2007 quando a revista Lancet utilizou-o para enfocar temas negligenciados pelos programas de pesquisa convencionais na psiquiatria e publicações da área da saúde.
Nesta publicação os editores Vikram Patel, Harry Minas, Alex Cohen e Martin J. Prince reuniram 54 autores de 18 países diferentes que construíram uma obra capaz de refletir o dinâmico debate atual entre estudiosos e pesquisadores de todo o mundo. A abordagem ao tema é ampla, a linguagem e o conteúdo do livro são voltados para um grande público de profissionais e estudantes, incluindo aqueles que não têm nenhum treinamento prévio em saúde mental.
O escopo do livro é realizar uma síntese crítica dos principais aspectos do campo: seus fundamentos científicos e sua prática. Está organizado em 20 capítulos divididos em duas partes: a primeira com 12 capítulos trata dos princípios da saúde mental global; e a segunda com 8 capítulos enfoca as práticas em diversas áreas do globo.
Inicialmente traz uma revisão histórica e teórica do tema e suas interfaces com diversas disciplinas da saúde pública. Traz interessante descrição de várias iniciativas (publicações, atividades, cursos) e parcerias com organizações de terceiro setor. A partir da perspetiva da saúde mental global discute as classificações diagnósticas em psiquiatria, metodologias de pesquisa transcultural, epidemiologia e impacto dos transtornos mentais, determinantes sociais da saúde mental, promoção da saúde e prevenção dos transtornos, intervenções terapêuticas entre outros temas.
A segunda parte contém a descrição de práticas e estudos de caso no campo. Apresenta capítulos bem escritos a partir da experiência do cuidado compartilhado entre especialistas e não-especialistas em saúde mental. Traz ideias inovadoras e histórias de sucesso especialmente em países de baixa e média renda, que podem inspirar e estimular profissionais que trabalham no difícil processo de integração da saúde mental na Estratégia Saúde da Família.
A falta de recursos para a saúde mental - humanos, financeiros e técnicos - traz consequências para vários aspectos da saúde mental global. Em nosso país, assim como em outros lugares do mundo, o processo de desinstitucionalização resultou em desenvolvimento do cuidado fora dos grandes hospitais. No entanto, na ausência de serviços adequados para consolidar este cuidado comunitário (em número e em qualidade), muitas pessoas com graves transtornos mentais estão em situação de rua, ou residindo com a família que as mantém em grades domiciliares nas periferias das grandes cidades. Os centros de acolhida da assistência social recebem centenas de pessoas com grave sofrimento mental sem nenhum tipo de cuidado, compondo cenários que muitas vezes nos remetem à situação das instituições totais do início do século XX.
Por outro lado, os esforços para ampliar e intensificar serviços e práticas de saúde mental supõem que ações mais ou menos padronizadas sejam efetivas em diversos contextos: este é um paradoxo do campo da saúde mental global. O desafio é modificar o cenário de cuidado, evitando repetir as hierarquias de poder em nosso campo de trabalho. É possível cuidar da saúde mental e lutar pelos direitos humanos preservando a diversidade cultural? É possível um equilíbrio entre ações culturalmente sensíveis e a necessidade de ampliar o acesso aos serviços?
Teorias que fundamentam este campo de estudo, reconhecem que as culturas são sistemas de significados abertos, híbridos e fluidos. Cultura e contextos sociais desempenham diferentes papéis no diagnóstico e no cuidado aos problemas mentais. Os estudos na área de saúde mental global dependem da compreensão da interação da psicopatologia com os diversos tipos de estruturas e processos sociais. Esta nova visão implica em reflexões sobre conceitos comumente aceitos na área da psiquiatria transcultural. O reconhecimento da ubiquidade da cultura traz, por exemplo, o questionamento do diagnóstico das "síndromes ligadas a cultura", considerando os processos de cognição e comunicação preponderantes na produção e expressão de determinados quadros clínicos.
Segundo os autores, a saúde mental global pode ser considerada não apenas uma oportunidade de reparação de desigualdades profundas que refletem uma história global de dominação e exploração, mas também uma possibilidade de colhermos os benefícios de uma diversidade cultural. Reforçam que as ações de saúde mental sejam capazes de proteger e expressar a identidade cultural da comunidade; o que demanda uma sociedade que respeite as diferenças. O cuidado em saúde mental pode contribuir para a construção desta sociedade.
Um aspecto importante abordado no livro é a metodologia de pesquisa neste campo. As práticas baseadas em evidência representam um terreno seguro para as ações em saúde mental entretanto apresentam limitações; especialmente devido à complexidade de traduzir conhecimentos gerais em intervenções localmente apropriadas e efetivas. Segundo os autores, a pesquisa na área da saúde mental global responde melhor às necessidades locais quando envolve usuários e é conduzida por trabalhadores "da ponta". Por esta razão, defendem metodologias de pesquisa participativas como um modo de assegurar que as prioridades locais sejam reconhecidas e que ocorra troca de conhecimentos durante o processo de pesquisa, promovendo uma melhor aplicação dos resultados. Esta modalidade de pesquisa também proporciona um maior conhecimento do universo simbólico dos diversos atores sociais envolvidos, tradicionalmente marginalizados ou excluídos, e alcança melhor os grupos mais difíceis de acessar (imigrantes e refugiados, por exemplo). Também defendem o uso da pesquisa etnográfica para explorar os sistemas de significados e práticas que constituem diferentes modos de vida cultural.
Finalmente os autores defendem a importância do compromisso político para implantar leis e políticas que priorizem os direitos humanos na atenção à saúde mental. A abordagem da saúde mental global nesta publicação reconhece a dimensão política da prática da saúde mental e suas implicações sociais; nos revela uma disciplina capaz de superar o dualismo entre compromisso político e competência técnica. Enfim, uma leitura fortemente recomendada!
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Maio 2016