A manchete do dia 15 de maio de 2015 do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, alertava para a presença de um novo vírus no país, denominado Zika, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti que circula há mais de trinta anos no Brasil, tornando o dengue uma enfermidade endêmica, com letalidade preocupante. O jornal citava o então Ministro da Saúde, Dr. Arthur Chioro, que afirmava que os sintomas do Zika eram muito mais brandos do que os do dengue e que, à diferença do dengue hemorrágico, este vírus não seria letal.
A conexão com a microcefalia e a síndrome de Guillan-Barré ainda não havia sido realizada. Um ano depois dessa matéria jornalística, o Brasil vive uma situação de calamidade pública diante do surto de casos de microcefalia associado à infecção do Zika em mulheres grávidas, ocasionando o que diversos especialistas denominam de síndrome congênita secundária do Zika vírus, que pode incluir, além da microcefalia, uma série de outras malformações e neuropatias afetando a visão, a audição e os movimentos dos membros inferiores e superiores do concepto.
Institutos de pesquisa, laboratórios, centros acadêmicos e organizações de saúde como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), dentre outros, têm se mobilizado nacional e internacionalmente com investimentos significativos para aprimorar o diagnóstico, desvendar a forma de atuação do vírus e desenvolver vacinas. Organizações diversas têm produzido dados estatísticos que oferecem uma dimensão confiável do perfil epidemiológico do Zika, como os boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde de 2015 e 2016.
A maioria das mães de bebês com a síndrome secundária do Zika vírus reside no Nordeste, onde é também prevalente a incidência de dengue e chikungunya. Vivem em condições precárias de saneamento e moradia, em locais com distribuição irregular de água, obrigando a estocagem, que favorece a proliferação do vetor, e enfrentam dificuldade de acesso a serviços de saúde. São essas mulheres pobres, vulneráveis e desassistidas, vivendo o drama de seus bebês microcefálicos, que conformam a imagem da epidemia (http://blogs.oglobo.globo.com/na-base-dos-dados/post/dengue-zika-e-microcefalia-em-quatro-mapas.html, acessado em 30/Jan/2016). Entretanto, gestantes e mulheres em idade reprodutiva de todo o país vivem a tensão e mesmo o pânico de virem a ter um bebê microcefálico. Cada consulta pré-natal e cada ultrassonografia constitui um momento de tortura emocional. Diante desse quadro é urgente e necessário que as respostas à epidemia do Zika vírus incluam a questão dos direitos reprodutivos das mulheres.
A definição de uma esfera de direitos associada à sexualidade e à reprodução, com fundamentos em teorias liberais clássicas de direitos individuais e em princípios socialistas de justiça social e igualdade, bem como em princípios de direitos humanos, trouxe novos argumentos aos debates sobre as relações entre o pessoal e o social, o individual e o coletivo. A inclusão dos direitos sexuais e reprodutivos no campo do direito à saúde e a valorização da mulher como sujeito de direito pleno em convenções internacionais de direitos humanos, em Declarações e Planos de Ação de Conferências das Nações Unidas, e em legislações nacionais, como a Constituição Federal de 1988, trouxeram novos desafios para o debate sobre o direito de escolha no que se refere à vida reprodutiva. Apontou também a questão da responsabilidade do Estado frente a tais escolhas. O Plano de Ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), realizada pelo Fundo de População das Nações Unidas no Cairo, Egito, em 1994, e do qual o Brasil é signatário, adota, como matriz estruturante de suas recomendações, os princípios de direitos humanos relativos à reprodução humana, e constitui um marco no que se refere à explicitação dos direitos reprodutivos em um documento das Nações Unidas.
O movimento feminista brasileiro e internacional tem se empenhado em evidenciar os laços intrínsecos entre autonomia reprodutiva e Estado. Para esse movimento, engravidar ou evitar a gravidez, ou mesmo interromper uma gestação - não como método de regulação da fecundidade, mas como último recurso frente à impossibilidade de assumir a enorme responsabilidade de ter um filho naquele momento -, deveria integrar a agenda de direitos individuais e da saúde pública de todas as nações.
Nas últimas décadas, legislações de países da Europa, da África, da Ásia e da Oceania, assim como nos Estados Unidos e, mais recentemente, em nações da América Latina, vêm sendo modificadas, ampliando as circunstâncias em que é permitida a interrupção voluntária da gestação, com condicionantes que crescem em função do tempo gestacional, especialmente a partir das 12 primeiras semanas, posto que não se trata de um direito incondicionado. De fato, no debate sobre o aborto é necessário considerar a ponderação de direitos reconhecendo, entretanto, que os direitos do nascituro não se estendem a ponto de eliminarem os direitos fundamentais das mulheres à sua autodeterminação, bem como ao respeito à sua saúde, integridade física e emocional, e à sua dignidade.
Além da gravidez resultante de estupro ou que acarrete risco de vida, o risco à saúde física ou psíquica da gestante, anomalias fetais graves que comprometem a qualidade de vida, condicionantes sociais, dentre outros problemas, são considerados, pelos países que empreenderam revisões em suas legislações, como fatores que permitem o abortamento voluntário, legal e seguro.
No Brasil, que tem uma legislação extremamente restritiva no que tange ao abortamento, assiste-se a uma crescente politização do dogmatismo religioso, levando a que as dimensões de saúde e direitos sejam encobertas por uma estridente condenação moral ou criminal. Aqui o debate sobre a expansão de permissivos para o abortamento segue o caminho inverso. A interrupção voluntária da gravidez sofre ameaças constantes de retrocesso, no sentido de serem eliminadas as três únicas circunstâncias em que a interrupção não é penalizada: em caso de risco de vida da gestante, se a gravidez é resultante de estupro, ou se existe anomalia fetal irreversível e incompatível com a vida. Os serviços de abortamento legal e mesmo a contracepção de emergência são alvos constantes de pressões e ameaças por forças conservadoras. O aborto permanece como "caso de polícia" e ilícito penal nas mesmas circunstâncias desde o Código Penal, de 1940. Ocupa as páginas policiais da imprensa. A saga persecutória e criminalizante das mulheres que fazem o aborto caminha no sentido contrário dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na CIPD de 1994, na IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, de 1995 em Pequim (China), e na I Conferência Regional de População e Desenvolvimento, de 2013 em Montevidéu (Uruguai).
A relação entre gravidez e Zika vírus demanda uma revisão na legislação brasileira no que se refere aos direitos reprodutivos, de forma que todas as mulheres, e particularmente aquelas que hoje enfrentam o temor de estarem gestando um feto com microcefalia, possam em nome de seu direito à saúde, à autonomia reprodutiva e à sua integridade física e emocional, optar por levar adiante ou interromper a gestação. Opção realizada fora dos parâmetros da condenação moral e da criminalização, e no marco do respeito à sua dignidade humana. No caso das mulheres que optarem por levar adiante a gravidez e virem a ter um bebê com a síndrome secundária do Zika vírus, cabe ao Estado prestar toda assistência a ela e à criança.
A epidemia do Zika vírus, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, coloca desafios ao governo no sentido do controle do vetor, da confiabilidade, acessibilidade e rapidez do diagnóstico, da produção de vacinas, da intensificação de políticas de saneamento básico. Entretanto, a proliferação de casos de microcefalia no país, coloca outro desafio: assegurar os direitos reprodutivos das mulheres, dentre os quais o direito à interrupção da gravidez.
Nesse momento em que milhares de mulheres em idade reprodutiva já contraíram ou podem vir a contrair Zika, é urgente alçar o debate sobre a interrupção voluntária da gravidez a outro patamar, considerando que:
O abortamento deve ser resultado de uma opção, nunca de uma imposição;
No marco de um país secular, democrático e pluralista, a regulamentação do abortamento deve ser pautada por parâmetros de direitos individuais e da saúde pública, e não por critérios e valores de um ou outro dogma religioso;
A criminalização do aborto constitui uma violação do direito à autonomia e à saúde reprodutiva de todas as mulheres;
A morbidade e a mortalidade decorrentes do aborto inseguro afetam, sobretudo, as mulheres mais pobres, em que é mais expressivo o contingente de mulheres negras;
O aborto constitui a quarta causa da mortalidade materna no Brasil. A legislação em vigor compromete a saúde e a vida das mulheres e não salva a vida de embriões;
O Brasil subscreveu Declarações e Plataformas de Ação de Conferências das Nações Unidas comprometendo-se a considerar a revisão de leis punitivas sobre o aborto.
A gravidez em tempos de Zika demanda que o governo assuma plenamente a sua responsabilidade no sentido de assegurar o pleno acesso ao planejamento familiar, e reveja as legislações punitivas e restritivas com relação ao acesso ao abortamento legal e seguro. Essas são as recomendações do Alto Comissário em Direitos Humanos das Nações Unidas, emitidas em 9 de fevereiro de 2016, para os países que enfrentam a epidemia do Zika vírus.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
03 Jun 2016
Histórico
- Recebido
18 Abr 2016 - Aceito
25 Abr 2016