O debate sobre aborto e Zika: lições da epidemia de AIDS

El debate sobre el aborto y Zika: lecciones de la epidemia del SIDA

Thais Medina Coeli Rochel de Camargo Sobre o autor

A epidemia de Zika renovou as discussões sobre o direito ao aborto no Brasil. O debate atual é similar às discussões sobre rubéola que ocorreram em vários países em meados do século XX. No Brasil, contudo, esse debate nunca ocorreu. Na época, o aborto não era objeto de debate público e esse silêncio permaneceria até o fim dos anos 1970 11. Rocha MIB. A questão do aborto no Brasil: o debate no Congresso. Revista Estudos Feministas 1996; 4:381-98.. Ainda assim, existe um caso nacional que é de interesse ao debate atual e ele diz respeito ao HIV.

Quando a epidemia de AIDS teve início, a maioria dos países desenvolvidos já havia legalizado o aborto. No Brasil, entretanto, o aborto era, e segue sendo, em grande medida ilegal. No início dos anos 1990, o número crescente de mulheres soropositivas, aliado à falta de tratamento efetivo para a AIDS, levou à discussão sobre se essas mulheres deveriam ter o direito à interrupção da gravidez. Essa exceção nunca foi adicionada à legislação e o posterior desenvolvimento de tratamentos que não apenas tornaram a AIDS administrável, mas também reduziram o risco de transmissão vertical, retirou o propósito da discussão. De todo modo, ao contrastar as duas discussões, podemos compreender melhor os percursos do debate sobre aborto no Brasil e melhor nos posicionar nesse debate.

A primeira diferença digna de nota entre os dois debates diz respeito aos atores que o protagonizaram no Congresso Nacional. No início dos anos 1990, todos os três projetos de lei que discutiam HIV e aborto visavam a expandir o direito ao aborto no Brasil. Dois - PL 2.023/1991 e PL 3.005/1992 - visavam exclusivamente a tornar o aborto legal para mulheres soropositivas, enquanto o terceiro - PL 1.174/1991 - visava a tornar o aborto legal em casos de "enfermidade grave e hereditária" do nascituro, entre os quais os autores incluíam a AIDS. Já em 2016, o único projeto de lei que diz respeito a aborto e Zika - PL 4.396/2016 - visa a aumentar a pena "quando o aborto for cometido em razão da microcefalia ou qualquer outra anomalia do feto".

Essa mudança reflete uma dinâmica mais ampla presente no Congresso Nacional. No momento em que o Brasil retornava à democracia, a maioria dos projetos de lei sobre aborto visavam a legalizá-lo ou expandir as exceções à lei. Nos últimos vinte anos, essa situação se reverteu 22. Rocha MIB. A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese. Rev Bras Estud Popul 2006; 23:369-74., especialmente devido ao número cada vez maior de parlamentares evangélicos. Se os defensores do direito ao aborto nunca foram bem-sucedidos em aprovar projetos de lei, eles pelo menos foram capazes de impedir novas restrições ao acesso à interrupção da gravidez e usaram seus projetos como forma de ajudar a estabelecer os termos do debate. A legislatura atual deixa muito pouco espaço para isso. Qualquer percurso que exija a mudança da legislação vigente dependerá de uma mobilização considerável para eleger parlamentares mais progressistas para a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.

A segunda grande diferença diz respeito ao alcance do debate público. Uma busca nos arquivos de quatro grandes jornais brasileiros - Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo - entre 1989 e 1999 levou à identificação de apenas um artigo sobre direito ao aborto para mulheres soropositivas 33. Amato Neto V. Aids e aborto. O Estado de S. Paulo 1989; 19 set.. Mesmo uma busca superficial em qualquer ferramenta de busca identifica artigos sobre aborto e Zika de todos os principais veículos de notícias do país, bem como de várias publicações internacionais. Fica claro que um número muito maior de pessoas está agora prestando atenção, e isso não necessariamente é positivo.

Htun 44. Htun M. Sex and the state: abortion, divorce, and the family under Latin American dictatorships and democracies. New York: Cambridge University Press; 2003. afirma que as reformas iniciais às leis do aborto que ocorreram na década de 1940 no Brasil foram resultado de "deliberações fundamentadas entre elites" e que o público "quase não esteve envolvido" (p. 145). Mesmo o movimento feminista não estava envolvido com o tema naquele momento 55. Pinto CRJ. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2003.. Mesmo quando passaram a se mobilizar pelo direito ao aborto, no fim dos anos 1970, as feministas tiveram mais sucesso atuando em contextos mais técnicos e restritos, mais especificamente, os órgãos da área de saúde nos níveis municipal e federal.

Feministas, ativistas do movimento da reforma sanitária e associações profissionais médicas aliaram-se para lutar pela criação de serviços de aborto legal, tendo sucesso primeiro na cidade de São Paulo, depois no nível nacional 66. Villela W, Lago T. Conquistas e desafios no atendimento das mulheres que sofreram violência sexual. Cad Saúde Pública 2007; 23:471-5.. No primeiro caso, uma portaria emitida pela então-prefeita Luiza Erundina criou os serviços. No segundo, o Ministério da Saúde editou uma Norma Técnica estabelecendo as diretrizes para o atendimento a vítimas de violência sexual, o que, por sua vez, levou à criação de serviços de aborto legal na maioria dos estados. Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inclusão da anencefalia entre as exceções à lei que proíbe o aborto. Nenhum desses órgãos envolve participação pública massiva, e eles tampouco podem ser considerados fóruns especialmente democráticos para a tomada de decisão.

O aborto finalmente tornou-se objeto de discussões mais amplas como resultado das ações de grupos conservadores. Parlamentares conservadores, especialmente os ligados às igrejas evangélicas e católica, têm tornado o aborto cada vez mais um foco de suas campanhas e atuação legislativa 77. Gomes EC. A religião em discurso: a retórica parlamentar sobre o aborto. In: Duarte LFD, Gomes EC, Menezes RA, Natividade M, organizadores. Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Garamond; 2009. p. 45-70.. O aborto foi uma questão central na eleição presidencial de 2010 e muitos acreditam que o apoio prévio da então-candidata Dilma Rousseff à legalização do aborto prejudicou sua campanha. O aborto provavelmente não teve igual importância na eleição de 2014 apenas porque todos os principais candidatos tornaram pública sua oposição à legalização mesmo antes do início da campanha eleitoral.

É mais provável que os brasileiros apoiem restrições ao acesso a abortos legais e seguros do que a legalização da prática: a maioria se opõe à legalização do aborto e uma maioria um pouco menor se opõe ao direito ao aborto em casos de microcefalia 88. Ferraz L. Maioria dos brasileiros desaprova aborto mesmo com microcefalia. Folha de S. Paulo 2016; 29 fev. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/02/1744476-maioria-dos-brasileiros-desaprova-aborto-mesmo-com-microcefalia.shtml.
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. Como mudar essa realidade é algo que ativistas pró-direito ao aborto vêm enfrentando por muitos anos. Ganhar o apoio público será cada vez mais importante, dado que um Congresso Nacional cada vez mais conservador arrisca fechar as portas até das áreas do governo que anteriormente se mostraram receptivas à legalização do aborto. No Brasil, afinal, presidentes precisam formar amplas coalizões para governar 99. Figueiredo AC. Government coalitions in Brazilian democracy. Brazilian Political Science Review 2007; 1:182-216., o que pode exigir concessões aos grupos mais conservadores do Congresso Nacional.

A última grande diferença entre os dois debates é a questão da judicialização. No seu livro sobre direitos reprodutivos no Brasil 1010. Ventura M. Direitos reprodutivos no Brasil. Brasília: Fundo de População das Nações Unidas; 2009., Miriam Ventura afirma não ter encontrado nenhuma decisão judicial relacionada à AIDS e à saúde reprodutiva. Essa ausência de decisões contrasta com o número crescente de mulheres que buscaram os tribunais para interromper legalmente gravidezes de fetos anencéfalos a partir dos anos 2000. Isso levou, em 2004, à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que pedia a inclusão da anencefalia entre as exceções à proibição do aborto. Em 2012, o STF decidiu em favor da ADPF, afirmando que, dado que fetos anencéfalos não sobrevivem após o parto, não se perde nenhuma vida como resultado de um aborto e, portanto, não há crime. Além disso, forçar mulheres a levarem a termo gravidezes apenas para que seus filhos morram meras horas ou dias depois de nascer é uma violação de seu direito a não serem torturadas 1111. Diniz D, Vélez AC. Aborto na Suprema Corte: o caso da anencefalia no Brasil. Revista Estudos Feministas 2008; 16:647-52..

Essa tendência em direção à judicialização também está presente no caso da Zika. O mesmo grupo responsável pela ADPF da anencefalia (Anis - Instituto de Bioética) está preparando uma nova ADPF, desta vez para garantir o direito ao aborto em casos de microcefalia 1212. Senra R. Grupo prepara ação no STF por aborto em casos de microcefalia. BBC Brasil 2016; 29 jan. http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160126_zika_stf_pai_rs.
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. A decisão anterior não é garantia de sucesso. Existe uma diferença fundamental entre anencefalia e microcefalia, algo que a diretora da Anis, Debora Diniz, reconhece: fetos anencéfalos são incapazes de sobreviver após o parto, enquanto crianças com microcefalia sobrevivem na maioria dos casos. Essas crianças também terão deficiências graves, o que gera preocupações quanto a abortos eugênicos. Mesmo que o STF termine por decidir em favor do direito das mulheres ao aborto nessas circunstâncias, é provável que demore a chegar a uma decisão.

Neste ponto, o paralelo com o debate sobre HIV é útil não devido a diferenças, mas devido a similaridades. Também esperava-se que bebês soropositivos sobrevivessem após o parto, mesmo antes de tratamentos antirretrovirais estarem amplamente disponíveis. Havia a preocupação em relação a abortos eugênicos, mas também em relação à possibilidade de que o aborto se tornasse não uma opção, mas uma exigência para mulheres soropositivas devido ao estigma e à pressão social 1010. Ventura M. Direitos reprodutivos no Brasil. Brasília: Fundo de População das Nações Unidas; 2009.. Ainda que a Zika não carregue o mesmo estigma que a AIDS, as mulheres grávidas de fetos com microcefalia ainda assim se encontram sob pressões sociais conflitantes. Enquanto elas são legalmente obrigadas a levar as gravidezes a termo, seus parceiros em muitos casos as abandonam, e elas são forçadas a enfrentar sozinhas os desafios de criar um filho com deficiências graves. Isso precisa ser levado em consideração nas mobilizações pelo seu direito à escolha.

Em última análise, esse foco - o direito à escolha, e não o direito ao aborto - precisa ser o objetivo de qualquer mobilização. A diferença pode parecer sutil. Não é. Como Ferree 1313. Ferree MM. Resonance and radicalism: feminist framing in the abortion debates of the United States and Germany. Am J Sociol 2003; 109:304-44. aponta, nos Estados Unidos, o direito ao aborto foi obtido com base num direito à privacidade que limitou fortemente a obrigação do Estado de pagar por abortos ou de fornecer apoio a mães pobres. Ao desconectar a luta pelo direito ao aborto das circunstâncias sociais em que mulheres engravidam, interrompem gravidezes e criam seus filhos, as feministas americanas num certo sentido "abandonaram" mulheres pobres e negras, que estão "desproporcionalmente entre as mulheres que não acreditam que podem escolher ter um filho e que se sentem compelidas e coagidas a realizar esterilizações, adoções ou abortos" (1313. Ferree MM. Resonance and radicalism: feminist framing in the abortion debates of the United States and Germany. Am J Sociol 2003; 109:304-44. (p. 336). Esse ponto é particularmente relevante para bebês com microcefalia causada pela Zika, que necessitarão de cuidados médicos e apoio extensos e cujas mães são em sua grande maioria pobres. O direito à escolha deve então ser tanto o direito legal ao aborto, incluindo aí o acesso ao aborto legal e seguro na rede pública de saúde, quanto o direito a levar a gravidez a termo, com todo o apoio social. Ativistas pró-escolha devem se unir ao movimento de pessoas com deficiência para garantir que essas crianças e suas mães tenham acesso a todos os serviços de que necessitam. A Anis já indicou que isso será parte da ADPF da microcefalia, mas não podemos deixar essa questão para a justiça. Ainda que estejamos em meio a uma crise política mais ampla, precisamos nos comprometer a levar adiante um debate público amplo sobre o aborto, que finalmente possa levar a opinião pública e as visões dos legisladores em direção ao direito à escolha.

Referências

  • 1
    Rocha MIB. A questão do aborto no Brasil: o debate no Congresso. Revista Estudos Feministas 1996; 4:381-98.
  • 2
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  • 4
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    » http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/02/1744476-maioria-dos-brasileiros-desaprova-aborto-mesmo-com-microcefalia.shtml.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2016

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2016
  • Aceito
    02 Maio 2016
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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