CRÍTICA PÓS-COLONIAL: PANORAMA DE LEITURAS CONTEMPORÂNEAS

Pedro Mourão Roxo da Motta Nelson Filice de Barros Sobre os autores
2013

O livro Crítica Pós-Colonial: Panorama de Leituras Contemporâneas é uma coletânea de 19 capítulos, divididos em quatro partes que tratam das classificações e hierarquias vigentes na contemporaneidade, construindo, propositivamente, novos entendimentos das formas simbólicas de certa colonialidade global, cujas estratégias de poder marginalizam culturas e povos. As reflexões pós-coloniais apresentadas nos capítulos constroem uma retórica e contrapartida às interpretações culturais hierarquizadas provenientes da civilização ocidental eurocêntrica. Buscam, portanto, na pós-modernidade denunciar uma série de hierarquias herdadas do processo de colonização que praticamente atravessam todas as dimensões da sociedade contemporânea, incluindo os aspectos culturais relacionados a ideologias, formas de organização sociais, ética, etnia, raça, moral, assim como aspectos epistemológicos na hierarquização do conhecimento e da metodologia.

Possivelmente, o autor mais citado nos diferentes capítulos do livro é Frantz Fanon, psiquiatra francês e influente pensador sobre os temas da descolonização e da psicopatologia da colonização. Fanon instigou a mentalidade das metrópoles ocidentais ao dizer que "um país colonialista é um país racista" (p. 51), denunciando a violência do sistema, assim como se contrapôs a uma ala da esquerda ao questionar instrumentos ortodoxos da teoria Marxista. Por isso, causou indignação nos partidos operários ocidentais ao dizer que "a história das guerras de libertação é a história da não verificação das teses" (p. 51) relacionada aos interesses de classe operária, metrópole e colonizados. Sartre também é bastante referenciado, pois colocou em pauta o racismo na sociedade contemporânea, e nos anos de 1950 iniciou uma nova concepção do racismo pós-guerra: seria aquele que, apesar de veementemente negado, era vivido no contexto sociopolítico de colonizadores e colonizados. Além disso, Sartre também discorreu acerca da polarização que se dera entre intelectuais que defendiam os interesses camponeses e operários, com base no marxismo e outras ideologias, e aqueles que defendiam a ordem liberal e burguesa. Uma das colocações mais importantes de Sartre foi relacionada ao fato de que os interlocutores da militância antissegregação eram, em sua maior parte, brancos ou mestiços claros das classes médias e altas. Assim, Fanon e Sartre podem ser considerados as referências seminais do anti-imperialismo, antirracismo e descolonização.

Algo importante de se ponderar e bastante revivificado pelos autores do livro são as estruturas da cultura colonialista, que julga poder falar pelo outro e, assim, retirar-lhe sua alteridade, mantendo-os subalternos e oprimidos, reproduzindo estruturas de opressão e poder, usurpando seus espaços de fala e levando à interpretação errônea de que o subalterno não pode falar ou só poderia se recorresse ao recurso hegemônico. Essa perspectiva é comum entre todos os autores do livro, que defendem que não se deve falar por esses sujeitos, mas se combater a subalternidade, provendo ao subalterno espaço pra falar e ser ouvido.

Seguindo essa linha de pensamento, faz-se uma ligação da assimetria predefinida pelas relações de poder vigentes e seus efeitos epistemológicos, as quais geram a marginalização de alguns tipos de conhecimentos devido ao fato de não poderem ser avaliados pelo aparato conceitual da ciência contemporânea. As consequências do momento em que a cultura europeia se desloca de seu lugar para estudar outras culturas são muito profundas, gerando a separação dos dois indivíduos da antropologia: o etnógrafo (civilizado) e o nativo (primitivo). A procura da compreensão de "como olha o primitivo" não foi a pauta, ficando implícito na teoria que o olhar do primitivo era irreflexivo, imediato, direto e pobre. Por isso, para alguns autores do livro, a etnologia se constitui como algo etnocêntrico, apesar de tentar combater o etnocentrismo, pois na tentativa de descentramento construiu a imagem de ser a única cultura capaz de realizar este movimento de autodesdobramento e abertura. O "primitivo", ainda que respeitado, é basicamente objetivado: não é pressuposto que o nativo esteja implicado na vida do próprio etnógrafo - o que demonstra a posição de privilegio do homem ocidental, que é capaz de olhar desse ponto de vista, pretensamente seguro, de verdade.

Destacam os autores que para manter a sua hegemonia epistemológica o texto colonizador incorpora signos do universo do colonizado, transformando o discurso num texto heteróclito, com uma incoerência que não fere apenas a estética, mas também a ética. Assim, não sendo capazes de eliminar o marginal, o desviante, o divergente, que ameaça corromper o núcleo constitutivo de uma certa episteme hegemônica, enfraquecem-no simbolicamente para que mantenham-se portadores da pretensa universalidade. Além disso, como não podem eliminar o rastro semiótico do colonizado devem marcá-lo com o sinal negativo, de decréscimo do ser, garantindo a hierarquia simbólica com a introdução do signo do dominado distorcido na sua lógica e valor, a partir da ordem completa em que naturalmente está inserido e reina. Assim, quando o dominado constrói uma contracoerência, percebe a inconsistência da moral prístina do dominador, uma vez que foi construída por intermédio da opressão e incorporação leviana de valores e símbolos divergentes à lógica hegemônica.

A epistemologia científica, identifica-se no livro, reflete essa colonização simbólica na medida em que legitima discursos de poder e estruturas de dominação, pois ao transformar processos sociais e culturais em objetos estáticos faz-se incapaz de compreendê-los. As práticas sociais impostas pelo ocidente geram uma organização epistemológica que não reflete os processos sociais das culturas marginalizadas, pois estão orientadas para uma mentalidade colonial. O ideal é construir um conhecimento com base nessas culturas periféricas promovendo o que os autores descrevem como border-thinking. Um modo de pensar que esteja para além das fronteiras impostas pela modernidade e pelas ciências humanas eurocêntricas.

É comum entre os capítulos a ideia de que não existe paradigma ou pensamento neutro, todos exercem alguma relação de poder simbólico e/ou econômico, porém, mesmo estando vinculado a algum grupo social, existem raciocínios que são mais emancipadores que outros. Um exemplo citado que tende a ser mais libertário é o dos Zapatistas, pois, para eles, estabelecer uma nova sociedade não requer a tomada de poder, mas a abolição das relações de poder. Assim, afastando-se do objetivo de conquistar o poder, os Zapatistas priorizam a construção da verdadeira democracia que leve em conta a construção de um poder comunitário alinhado com a história de vida de comunidades indígenas.

Argumenta-se, ainda, ser possível uma analogia na filosofia pré-socrática a respeito do que seria um pensamento reacionário e um pensamento revolucionário, uma vez que no conceito de vida como não movimento de Parmênides está assentado todo pensamento colonizador que visa a manter e fixar as normas e posições hegemônicas. Por outro lado, o pensamento de Heráclito, em que vida é movimento, pode ser utilizado pelas sociedades oprimidas como pressuposto de que a situação de oprimido não é fixa, pois nada o é. Ao se movimentar contra a fixação social o oprimido tem a possibilidade de desoprimir-se, sabendo que não pode fixar privilégios, pois construirá um novo horizonte reacionário, com a tendência de defender seus privilégios, negando o movimento revolucionário.

Conclusivamente, pode-se afirmar que o livro dá pistas de como construir um discurso a partir da periferia com o propósito de transformação nos conceitos e perspectivas sobre a modernidade, dando visibilidade à dinâmica social que povos e culturas marginalizados vivem. Assim, esse livro torna-se leitura fundamental para todos que pretendam explorar os caminhos abertos pelos estudos pós-coloniais, pois os autores não apenas esclarecem possibilidades da abordagem intercultural, como também sinalizam com riqueza alguns processos em construção que podem tornar possível quebrar as algemas que silenciam vozes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2016
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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