O comentário do professor Luiz Henrique Gebrim apresenta propostas relacionadas ao nosso artigo Por Que Reconsiderar a Indicação do Rastreamento do Câncer de Mama?. Ali discutimos especificamente o fundamento da recomendação do rastreamento mamográfico, questionando-a frente às evidências atuais internacionais, sem entrar no tema da detecção precoce mais amplamente, ou no grande e crucial problema da agilidade na conclusão diagnóstica e na realização do tratamento, priorizado corretamente por Gebrim para a realidade brasileira.
Todavia, quanto ao tema específico do nosso artigo e a posição nele defendida, o comentário quase silencia. Esse quase silêncio ou omissão poderia significar uma anuência aos nossos argumentos e posição relativamente contrária à manutenção da recomendação oficial brasileira de rastreamento mamográfico. Porém, ao final de seu comentário, Gebrim defende, sem nenhum argumento a não ser a ignorância sobre o "custo/efetividade ou o impacto (do rastreamento oportunístico) nos indicadores de mortalidade do país", a manutenção na saúde suplementar e no SUS do rastreamento mamográfico oportunístico do câncer de mama.
Permitimo-nos corrigir um efeito de sentido criado pelos dois últimos parágrafos de seu comentário: ao dizer que na saúde suplementar e em parte significativa do Sistema Único de Saúde (SUS) vem sendo realizado rastreamento mamográfico a partir dos 40 anos, e no parágrafo anterior afirmar que isto está em conformidade com diretrizes internacionais "validadas pelo Ministério da saúde", o comentário sugere que o Ministério da Saúde e diretrizes internacionais recomendam rastreamento a partir dos 40 anos, o que não é correto em geral: a maior parte dos programas organizados ocorre em países europeus, os quais, na maioria, como o Ministério da Saúde, recomendam o rastreamento a partir dos 50 anos, como registramos em nosso artigo. Lembramos que programas organizados de rastreamento são sabidamente superiores aos rastreamentos oportunísticos 11. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Rastreamento. http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/cadernos_ab/abcad29.pdf (acessado 07/Abr/2016).
http://189.28.128.100/dab/docs/publicaco... , e a Organização Mundial da Saúde condiciona a sua recente posição favorável ao rastreamento mamográfico à existência de programas organizados 22. World Health Organization. WHO position paper on mammography screening. http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/137339/1/9789241507936_eng.pdf?ua=1&ua=1 (acessado em 07/Abr/2016).
http://apps.who.int/iris/bitstream/10665... .
O comentário dá a entender que a recomendação do rastreamento mamográfico e a ênfase no mesmo fundamentam-se na escassez de dados e publicações no Brasil a respeito da atual realidade da assistência às pacientes; ou pelo menos são induzidas pela mesma, que "favorece a discussão para abordagens empíricas por muitas sociedades médicas, mídia, ONGs e até mesmo universidades públicas". Ao final, o autor parece mesmo adotar essa posição, ao reafirmar simplesmente que o rastreamento "deve secundariamente ser considerado".
O que fundamentamos no nosso artigo e aqui destacamos é que a existência dessa ignorância e escassez de dados e publicações sobre a relação danos x benefícios do rastreamento mamográfico na realidade brasileira, frente às evidências e publicações internacionais, exigem uma postura oposta, de suspensão da recomendação. Repetimos os motivos: considerando que esse rastreamento produz sabidamente danos significativos (sintetizados no nosso artigo), o ônus da prova da relação danos x benefícios favorável cabe aos propositores da intervenção. Ou seja, para haver recomendação de rastreamento deve haver provas de que o citado balanço seja amplamente favorável aos benefícios. Assim, a mamografia periódica só deve ser recomendada oficialmente às mulheres na presença dessas provas, que devem ser robustas, amplamente favoráveis, confiáveis e idôneas (sem conflitos de interesse). Na ausência delas e/ou no caso de dúvidas, polêmicas ou avaliações desfavoráveis ou duvidosas do balanço danos x benefícios (literatura internacional), a postura técnica e eticamente exigida, defensável, sustentável, recomendada e prudente é um ceticismo negativista resistente à intervenção.
Novamente repetimos para enfatizar: a garantia de benefícios, a tolerância aos danos e o manejo da incerteza são essencialmente diferentes no cuidado clínico ao adoecimento presente e nas ações preventivas (primárias específicas e secundárias) com grande potencial iatrogênico. No primeiro é aceitável postura de maior otimismo interventor pró-ativo, maior tolerância aos danos, maior margem de incerteza e ausência ou menor garantia de resultados, justificada pela pressão por tratamento derivada do adoecimento vivido e da expectativa de cura/controle/alívio do mesmo. Tudo isso é diferente na prevenção. As mulheres rastreadas são a priori saudáveis, todas expostas aos potenciais de riscos e danos sintetizados no nosso artigo. Nesse caso, há muito maior exigência de resultados favoráveis, com mínimos ou nulos danos, muito maior garantia de benefícios e muito menor margem de incerteza quanto ao resultado da intervenção. É fundamental não deixar que a pressão por intervenção e a angústia/pressão emocional/situacional da clínica de um adoecimento grave como o câncer (com terapêuticas agressivas e muito limitada efetividade em estágios avançados e graves) invada o raciocínio, o julgamento e a decisão para a recomendação de rastreamento.
Devido à atual avaliação de fracasso da mamografia como técnica de rastreamento 33. Baum M. 'Catch it early, save a life and save a breast': this misleading mantra of mammography. J R Soc Med 2015; 108:338-9. (pouca ou nenhuma redução de mortalidade a ela atribuída frente aos significativos danos), ou pelo menos dúvidas consistentes nessa avaliação, é fundamental e importante deslocar a discussão sobre o câncer de mama do rastreamento para a promoção da saúde e a prevenção primária inespecífica (redução do tabagismo, alimentação saudável etc.), bem como e, sobretudo, para a detecção precoce (que não o autoexame das mamas, devido ao seu desfavorável balanço danos x benefícios) e para o melhoramento institucional do SUS na sua capacidade de diagnose e tratamento das pacientes sintomáticas, que padecem por excesso de demora nesse processo. Mas, simultaneamente, é necessário, crucial e importantíssimo retificar as informações de divulgação científica e as orientações à população, pois é comum que folhetos, campanhas e informativos destaquem os benefícios do rastreamento sem fornecer informações sobre riscos e danos (ou minimizando-os), como falsos positivos, sobrediagnósticos e tratamentos excessivos, mesmo na Europa 44. Gummersbach E, Piccoliori G, Zerbe CO, Altiner A, Othman C, Rose C, et al. Are women getting relevant information about mammography screening for an informed consent: a critical appraisal of information brochures used for screening invitation in Germany, Italy, Spain and France. Eur J Public Health 2010; 20:409-14..
Por isso, concordamos com o grosso da perspectiva do comentário de Gebrim, embora não tenhamos base para um posicionamento detalhado sobre a proposta por ele defendida de agilização diagnóstica, considerando a heterogeneidade regional, a extensão territorial e a pequenez da grande maioria das cidades brasileiras. A esse respeito, destacamos que um maior investimento em extensão e qualificação do cuidado clínico prestado pelas equipes de Saúde da Família − com redução do número de pessoas vinculadas às equipes e facilitação do acesso 55. Tesser CD, Norman AH. Repensando o acesso ao cuidado na Estratégia Saúde da Família. Saúde Soc 2014; 23:869-83.), (66. Norman AH, Tesser CD. Acesso ao cuidado na Estratégia Saúde da Família: equilíbrio entredemanda espontânea e prevenção/promoção da saúde. Saúde Soc 2015; 24:165-79. − e melhor formação dos médicos ali atuantes (através da expansão das residências em Medicina de Família e Comunidade), associado a uma efetiva regionalização e expansão da atenção especializada articulada com as equipes de saúde da família, são passos incontornáveis e necessários para a melhoria na agilidade da diagnose dos casos suspeitos e na rapidez de provisão da terapêutica. Isso deve ser prioridade na discussão do tema do cuidado ao câncer de mama no SUS e no país.
- 1Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Rastreamento. http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/cadernos_ab/abcad29.pdf (acessado 07/Abr/2016).
» http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/cadernos_ab/abcad29.pdf - 2World Health Organization. WHO position paper on mammography screening. http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/137339/1/9789241507936_eng.pdf?ua=1&ua=1 (acessado em 07/Abr/2016).
» http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/137339/1/9789241507936_eng.pdf?ua=1&ua=1 - 3Baum M. 'Catch it early, save a life and save a breast': this misleading mantra of mammography. J R Soc Med 2015; 108:338-9.
- 4Gummersbach E, Piccoliori G, Zerbe CO, Altiner A, Othman C, Rose C, et al. Are women getting relevant information about mammography screening for an informed consent: a critical appraisal of information brochures used for screening invitation in Germany, Italy, Spain and France. Eur J Public Health 2010; 20:409-14.
- 5Tesser CD, Norman AH. Repensando o acesso ao cuidado na Estratégia Saúde da Família. Saúde Soc 2014; 23:869-83.
- 6Norman AH, Tesser CD. Acesso ao cuidado na Estratégia Saúde da Família: equilíbrio entredemanda espontânea e prevenção/promoção da saúde. Saúde Soc 2015; 24:165-79.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
31 Maio 2016