Violência física grave entre parceiros íntimos como fator de risco para inadequação no rastreio do câncer de colo de útero

Violencia física grave entre parejas sentimentales como factor de riesgo para la inadecuación en el rastreo del cáncer de cuello uterino

Ricardo de Mattos Russo Rafael Anna Tereza Miranda Soares de Moura Sobre os autores

Resumo:

Com o objetivo de avaliar a ocorrência de violência física grave entre parceiros íntimos como fator de risco para inadequação no rastreio do câncer do colo do útero, foi desenvolvido um estudo do tipo caso-controle com aplicação de formulário multidimensional com 640 usuárias da Estratégia Saúde da Família do Município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. As mulheres que não realizaram o exame colpocitológico nos últimos três anos foram consideradas como casos. Os resultados demonstraram que as variáveis abusos contra a mulher (ORajustada = 2,2; IC95%: 1,1-4,4) e a coocorrência do evento no casal (ORajustada = 3,8; IC95%: 1,4-9,8) como fatores de risco à inadequação no rastreio da doença. O abuso de álcool pela mulher se mostrou como modificador de efeito para a não realização do exame pelas vítimas (ORajustada = 10,2; IC95%: 1,8-56,4) e nos casos de coocorrência de violência (ORajustada = 8,5; IC95%: 1,4-50,7). Além dos fatores já reconhecidos na causalidade das violências entre parceiros íntimos, os resultados apontam para relação de risco entre as experiências abusivas vivenciadas pelas mulheres e a inadequação do rastreamento. Desse modo, ampliar o olhar sobre o absenteísmo das mulheres aos exames deve ser considerado, já que esse indicador pode desvelar demandas não percebidas facilmente pelas equipes de saúde.

Palavras-chave:
Neoplasias do Colo do Útero; Programas de Rastreamento; Violência Doméstica; Violência Contra a Mulher; Atenção Primária à Saúde

Resumen:

Con el objetivo de evaluar la ocurrencia de violencia física grave entre parejas sentimentales, como factor de riesgo para inadecuación en el rastreo del cáncer de cuello uterino, se desarrolló un estudio de tipo caso-control con la aplicación de un formulario multidimensional a 640 usuarias de la Estrategia Salud de la Familia en el municipio de Nova Iguaçu, Río de Janeiro, Brasil. Las mujeres que no realizaron el examen colpocitológico durante los últimos tres años fueron consideradas como casos. Los resultados demostraron que las variables: abusos contra la mujer (ORajustada = 2,2; IC95%: 1,1-4,4) y la coocurrencia del evento en la pareja (ORajustada = 3,8; IC95%: 1,4-9,8) son factores de riesgo para la inadecuación en el rastreo de la enfermedad. El consumo abusivo de alcohol por parte de la mujer se mostró como un modificador de efecto para que las víctimas no realizaran el examen (ORajustada = 10,2; IC95%: 1,8-56,4), así como en los casos de coocurrencia de violencia (ORajustada = 8,5; IC95%: 1,4-50,7). Además de los factores ya reconocidos en la causalidad de la violencia entre parejas sentimentales, los resultados apuntan a la relación de riesgo entre las experiencias abusivas, vividas por las mujeres, y la inadecuación del rastreo. De este modo, se debe considerar ampliar la perspectiva sobre el absentismo de las mujeres en los exámenes, ya que este indicador puede desvelar necesidades no percibidas fácilmente por parte de los equipos de salud.

Palabras-clave:
Neoplasias del Cuello Uterino; Tamizaje Masivo; Violencia Doméstica; Violencia Contra la Mujer; Atención Primaria de Salud

Introdução

As taxas de mortalidade por cânceres do colo do útero continuam a ocupar as primeiras posições dentre os óbitos na população feminina, permanecendo como um relevante e desafiador problema de saúde pública 11. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2016: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2016.. A combinação de estratégias preventivas para as infecções pelo HPV e o rastreamento sistematizado por meio da colpocitologia oncótica tem sido apontada como uma das principais medidas custo-efetivas para a redução da morbimortalidade da doença, sendo também o alicerce das estratégias de controle dessa neoplasia no Brasil 22. Castro B, Ribeiro DP, Oliveira J, Pereira MB, Sousa JC, Yaphe J. Rastreio do câncer do colo do útero: limites etários, periodicidade e exame ideal: revisão da evidência recente e comparação com o indicador de desempenho avaliado em Portugal. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1113-22.,33. World Health Organization. Comprehensive cervical cancer control - a guide to essential practice. 2nd Ed. Geneva: World Health Organization; 2014..

Desde 2011, o país ampliou a faixa etária alvo dos programas de rastreio, passando a recomendar que as mulheres entre 25 e 64 anos realizem um exame colpocitológico trienal, após dois resultados negativos, subsequentes e com intervalo menor que um ano. A utilização de outras técnicas diagnósticas e, quando aplicável, confirmatórias da doença está indicada somente quando existem resultados atípicos na primeira fase do rastreamento, evitando a realização desnecessária de exames e também racionalizando custos para o sistema de saúde 44. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2011.. Estudo de âmbito nacional apontou que 78,4% (IC95%: 78,0-78,9) das mulheres entre 25 e 64 anos referiram a realização de, ao menos, um exame nos últimos três anos 55. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional de saúde, 2013: ciclos de vida - Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2015.. Embora os resultados deste inquérito demonstrem aproximação da cobertura de 80%, preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 66. World Health Organization. Cancer control. Knowledge into action: who guide for effective programmes. Geneva: World Health Organization; 2007., é importante considerar as diferenças regionais no rastreamento, variando de 73,1% a 81,3%, respectivamente, no Nordeste e Sudeste do país.

O clássico estudo da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), que aponta a redução de cerca de 91% da incidência cumulativa da doença para populações com adequada realização do rastreio na faixa etária alvo, também subsidiou a ampliação da oferta de exames colpocitológicos no âmbito da atenção primária à saúde no país, especialmente por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF) 44. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2011.,55. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional de saúde, 2013: ciclos de vida - Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2015.,66. World Health Organization. Cancer control. Knowledge into action: who guide for effective programmes. Geneva: World Health Organization; 2007.,77. IARC Working Group on Evaluation of Cervical Cancer Screening Programmes. Screening for squamous cervical cancer: duration of low risk after negative results of cervical cytology and its implication for screening policies. BMJ 1986; 293:659-64.. Cada equipe multiprofissional desse nível de atenção oferece cobertura para até 4 mil pessoas e está localizada no próprio território das comunidades, o que favorece o monitoramento da população adscrita e a busca ativa da clientela faltosa, facilitando a realização de ações de prevenção do câncer do colo do útero 88. Rafael RMR, Moura ATMS. Exposição aos fatores de risco do câncer do colo do útero na Estratégia de Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Colet (Rio J.) 2012; 20:499-505..

Mesmo com o acesso facilitado no âmbito da ESF, uma parcela considerável de mulheres permanece excluída do sistema de captação precoce, dificultando a prática de exames de rastreio e imputando riscos adicionais para o desenvolvimento da neoplasia 22. Castro B, Ribeiro DP, Oliveira J, Pereira MB, Sousa JC, Yaphe J. Rastreio do câncer do colo do útero: limites etários, periodicidade e exame ideal: revisão da evidência recente e comparação com o indicador de desempenho avaliado em Portugal. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1113-22.,33. World Health Organization. Comprehensive cervical cancer control - a guide to essential practice. 2nd Ed. Geneva: World Health Organization; 2014.,44. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2011.. Diversos são os modelos teóricos que tentam explicar as dificuldades para a frequência regular em serviços de saúde, abordando preferencialmente questões estruturais próprias dos programas oferecidos ou variáveis sociodemográficas, tais como a idade, a escolaridade, a cor/etnia e as classes econômicas 99. Navarro C, Fonseca AJ, Sibajev A, Souza CIA, Araújo DS, Teles DAF, et al. Cobertura do rastreamento do câncer de colo de útero em região de alta incidência. Rev Saúde Pública 2015; 49:17.,1010. Pinho AA, França-Junior I. Prevenção do câncer de colo do útero: um modelo teórico para analisar o acesso e a utilização do teste de Papanicolau. Rev Bras Saúde Matern Infant 2003; 3:95-112.. As questões de gênero e as crenças individuais das usuárias vêm ganhando espaço recente em debates e investigações sobre o tema, ao considerar sentimentos e sensações possivelmente vivenciados pela mulher como medo, vergonha e esquecimento, auxiliando na compreensão dos fatores impeditivos em relação à realização de exame de rastreio. As diversas representações do medo se somam aos aspectos sociodemográficos e ao estilo de vida das usuárias, compondo um conjunto de barreiras para o autocuidado em saúde, que parecem estar relacionadas à dinâmica familiar, ao apoio e ao suporte social, aspectos ainda considerados como lacuna na produção de conhecimento sobre prevenção de câncer do colo do útero 1111. Aguilar RP, Soares DA. Barreiras à realização do exame Papanicolau: perspectivas de usuárias e profissionais da Estratégia de Saúde da Família da cidade de Vitória da Conquista - BA. Physis (Rio J.) 2015; 25:359-79.,1212. Rafael RMR, Moura ATMS. Barreiras na realização da colpocitologia oncótica: um inquérito domiciliar na área de abrangência da Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2010; 26:1045-50..

A literatura já aponta para a associação entre conflito familiar/violência íntima e a dificuldade de acesso e utilização de serviços de saúde, especialmente aqueles que demandam frequência regular 22. Castro B, Ribeiro DP, Oliveira J, Pereira MB, Sousa JC, Yaphe J. Rastreio do câncer do colo do útero: limites etários, periodicidade e exame ideal: revisão da evidência recente e comparação com o indicador de desempenho avaliado em Portugal. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1113-22.,1313. Moraes CL, Arana FDN, Reichenheim ME. Violência física entre parceiros íntimos na gestação como fator de risco para a má qualidade do pré-natal. Rev Saúde Pública 2010; 44:667-76.. Apesar da definição proposta pela OMS, os limites e a aceitação das práticas de violência íntima ainda são bastante controversos, tendo em vista a evolução histórica sobre o tema e sua construção sociocultural. Mesmo com essas dificuldades, a intencionalidade, a desigualdade de poder e o uso de força, que causa ou potencialmente pode causar danos, têm sido apontados como elementos que distinguem a ocorrência de violência. De tipificação variada e não excludente, caracterizam-se por práticas de abuso psicológico, físico e sexual, com consequências de difícil detecção pelas equipes de saúde e, até certo ponto, pelas próprias pessoas que vivenciam essas situações 1414. Krug EG, Dalhberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editores. Informe mundial sobre la violencia y la salud. Genebra: Organización Mundial de la Salud; 2002.. Ao se considerar o papel especial ainda exercido pela mulher como principal cuidadora familiar e a sua elevada presença em serviços de saúde, parece clara a necessidade de se contemplar aspectos da dinâmica familiar e estilos de vida - como o uso e abuso de álcool - para melhor compreensão da escolha pela realização de exames relacionados ao diagnóstico de doenças graves e de mau prognóstico.

Na tentativa de colaborar com o entendimento dessa aparente aproximação entre o uso de equipamentos de saúde e a dinâmica familiar vivenciada pela clientela e tomando como referência as variáveis envolvidas na causalidade dos dois constructos, essas dimensões explicativas foram inseridas no modelo teórico do estudo a fim de ampliar a possibilidade de entendimento da cadeia causal. As variáveis sociodemográficas, sobretudo a idade, a escolaridade, a classe econômica e as condições de moradia influenciariam de modo distal o desfecho de interesse - a inadequação no rastreamento do câncer, interagindo também com o fenômeno das violências, como já apontado na literatura 22. Castro B, Ribeiro DP, Oliveira J, Pereira MB, Sousa JC, Yaphe J. Rastreio do câncer do colo do útero: limites etários, periodicidade e exame ideal: revisão da evidência recente e comparação com o indicador de desempenho avaliado em Portugal. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1113-22.,33. World Health Organization. Comprehensive cervical cancer control - a guide to essential practice. 2nd Ed. Geneva: World Health Organization; 2014.,66. World Health Organization. Cancer control. Knowledge into action: who guide for effective programmes. Geneva: World Health Organization; 2007.,88. Rafael RMR, Moura ATMS. Exposição aos fatores de risco do câncer do colo do útero na Estratégia de Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Colet (Rio J.) 2012; 20:499-505.. É importante destacar que o tempo de estudo tem sido apontado como um fator que medeia as relações de uso dos serviços de saúde, o que possivelmente poderia ampliar o efeito de determinadas exposições, como no caso das violências. De modo intermediário, o consumo abusivo de álcool foi inserido no modelo não apenas como fator de risco para a ocorrência de violência, mas também por impactar nas relações familiares estabelecidas pelas usuárias e seus estilos de vida 1313. Moraes CL, Arana FDN, Reichenheim ME. Violência física entre parceiros íntimos na gestação como fator de risco para a má qualidade do pré-natal. Rev Saúde Pública 2010; 44:667-76.,1414. Krug EG, Dalhberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editores. Informe mundial sobre la violencia y la salud. Genebra: Organización Mundial de la Salud; 2002.,1515. Rafael RMR, Moura ATMS. Relationship between alcohol consumption and violence between intimate partners: a sectional study. Online Braz J Nurs 2016; 15:617-23., sendo um possível fator que medeia as relações entre as violências e o uso dos serviços de saúde.

Baseado no modelo teórico proposto, o presente estudo tem como objetivo avaliar a violência física grave entre parceiros íntimos como fator de risco para inadequação no rastreio do câncer do colo do útero no âmbito da ESF. Está claro que será possível iluminar apenas uma parcela dessa complexa relação, especialmente por considerar que outras variáveis podem mediar as relações causais, sobretudo aquelas que se relacionam nos níveis macropolíticos sociais e comunitários, expressas em níveis superiores do modelo ecológico das violências e que não fazem parte do escopo desta investigação 1414. Krug EG, Dalhberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editores. Informe mundial sobre la violencia y la salud. Genebra: Organización Mundial de la Salud; 2002..

Método

Desenho, cenário, população do estudo e dinâmica de coleta de dados

Trata-se de um estudo do tipo caso-controle, vinculado ao projeto Barreiras no Acesso do Rastreio do Câncer do Colo Uterino: Um Estudo sobre as Relações da Violência Íntima e do Uso Abusivo de Álcool em Usuárias da Saúde da Família, realizado no Município de Nova Iguaçu, pertencente à região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Mesmo após a recente expansão da atenção primária, o município ainda apresenta concentração da rede de saúde e dos equipamentos sociais em sua região central, eleita como local de estudo objetivando o recrutamento de participantes que possuíssem melhores condições de acesso. A região possui cinco unidades de saúde da família, totalizando dez equipes multiprofissionais. A menor unidade, que possui uma equipe e cobertura inferior a quatro mil pessoas, foi utilizada na etapa do estudo piloto. Os demais serviços participaram da coleta de dados, totalizando nove equipes de saúde e população adscrita de 26.025 habitantes.

A população alvo do estudo compreendeu o conjunto de mulheres com idade entre 25 e 64 anos de idade, cadastradas na ESF, conforme orientação dos programas de rastreio do câncer do colo do útero no Brasil 44. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2011.. A amostra foi composta por residentes na área de cobertura das equipes de saúde da família, que relataram relacionamento íntimo por, pelo menos, um ano e que tenham frequentado uma das unidades no período da coleta (novembro de 2012 a junho de 2013). Foram excluídas as mulheres com história de histerectomia, cirurgia de alta frequência, conização ou com qualquer lesão cervical de alto grau detectada previamente, condições que modificariam os critérios de eleição para a realização do rastreamento do câncer.

O tamanho amostral foi calculado utilizando-se intervalo de 95% de confiança (IC95%), poder de 80%, odds ratio (OR) de 2,0 e baseando-se na proporção de um caso para cada três controles. A amostra final foi de 640 participantes, sendo 160 casos e 480 controles, divididos igualmente nas quatro unidades estudadas. Considerou-se caso a inadequação no rastreio do câncer do colo do útero, ou seja, as mulheres que não realizaram o exame colpocitológico nos últimos três anos, a contar da data de coleta de dados. Como controles, foram selecionadas as mulheres que acessaram os serviços de saúde no mesmo período e que possuíssem, ao menos, um exame nos últimos três anos, conforme as recomendações do Ministério da Saúde 44. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2011..

Os casos foram selecionados por ocasião da realização de diferentes procedimentos na unidade, tais como consultas médicas, de enfermagem e odontologia, acompanhamento de outros usuários ou familiares - como idosos e crianças ao serviço, ou para obtenção de outras informações. Na impossibilidade de as equipes disponibilizarem uma lista prévia de usuários que frequentam a unidade diariamente, a captação de casos ocorreu a partir da relação global de mulheres com mais de três anos de intervalo do último exame colpocitológico (critério definidor desse grupo). O formulário de elegibilidade foi aplicado às usuárias e, cumpridos os critérios de seleção, prosseguiu-se para a fase de aplicação dos instrumentos, não havendo perdas ou recusas nesse grupo. Para cada participante alocada como caso, foram selecionadas três mulheres para o grupo de controles, por oportunidade e dando preferência às suas acompanhantes, parentes e vizinhas. A dinâmica de recrutamento dos controles também ocorreu aplicando-se o formulário de elegibilidade, apresentando perda de 8,3% (n = 40).

Instrumento de coleta de dados

Para a coleta de dados, foi utilizado instrumento multidimensional que contemplou inicialmente os aspectos sociodemográficos da amostra, composta pelas variáveis independentes relacionadas a idade, cor/etnia, situação conjugal, escolaridade, classe econômica e condições de moradia. A avaliação da classe econômica ocorreu com base nos critérios de classificação econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa 1616. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critérios de Classificação Econômica Brasil. 2011. http://www.abep.org (acessado em 27/Abr/2011).
http://www.abep.org...
, utilizando um escore composto por 11 itens que avaliam os bens e serviços de consumo e a escolaridade da pessoa considerada o chefe da família. Já as condições de moradia foram avaliadas por escore de situação ambiental composto pelo número de pessoas no domicílio, tipo de material predominante no piso da casa, forma de abastecimento de energia e de água e pela existência de esgotamento sanitário e de coleta de lixo 1717. Reichenheim ME, Harpham T. Perfil intracomunitário da deficiência nutricional: um estudo de crianças abaixo de 5 anos numa comunidade de baixa renda do Rio de Janeiro. Rev Saúde Pública 1990; 24:69-79..

O uso de álcool foi avaliado com o instrumento TWEAK (Tolerance, Worry, Eye-opened, Amnesia & C/Kut-down), validado e adaptado transculturalmente para uso no Brasil 1818. Moraes CL, Viellas EF, Reichenheim ME. Assessing alcohol misuse during pregnancy: evaluating psychometric properties of the CAGE, T-ACE, and TWEAK in a Brazilian setting. J Stud Alcohol 2005; 66:165-73.. Foi considerado uso abusivo quando o resultado do escore foi superior a dois pontos. Para a avaliação da ocorrência de violência física grave entre parceiros íntimos, foi utilizado o instrumento Revised Conflict Tactics Scales (CTS2), também validado e adaptado transculturalmente para uso no Brasil e amplamente utilizado nos estudos sobre violências 1919. Straus MA, Hamby SL, Boney-McCoy S, Sugarman DB. The Revised Conflict Tactics Scales (CTS2): development and preliminary psychometric data. J Fam Issues 1996; 17:283-316.,2020. Moraes CL, Reichenheim ME. Cross-cultural measurement equivalence of the Revised Conflict Tactics Scales (CTS2) Portuguese version used to identify violence within couples. Cad Saúde Pública 2002; 18:783-96.,2121. Reichenheim ME, Klein R, Moraes CL. Assessing the physical violence component of the Revised Conflict Tactics Scales when used in heterosexual couples: an item response theory analysis. Cad Saúde Pública 2007; 23:53-62.. A “violência física grave contra a mulher” foi considerada quando, ao menos, um item da escala foi positivo. Já a classificação como “coocorrência de violência física grave” se deu quando houve positividade na escala para ambos os direcionamentos, e a existência de “situação de violência física grave”, quando houve positividade na escala na condição de perpetradora ou de vítima. A aferição da violência ocorreu para o período dos últimos três anos do estudo, considerando a relação atual como base de referência.

Análise de dados

A limpeza do banco e o processamento estatístico foram realizados no software Stata SE 13 (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos), primeiramente de modo univariado, com vistas a conhecer a distribuição dos dados. A análise bivariada utilizou o cálculo dos respectivos OR, IC95% e valores de p. As variáveis relacionadas à faixa etária e à classe econômica foram tratadas em sua forma contínua.

Todas as variáveis pertencentes às diferentes dimensões propostas no modelo teórico que apresentaram valores abaixo do ponto de corte (p ≤ 0,25) na análise bivariada foram utilizadas. Foram avaliadas as possíveis interações entre as variáveis independentes (aspectos sociodemográficos e uso abusivo de álcool) e as variáveis correspondentes às violências físicas graves. Os modelos finais de regressão logística foram compostos pelos confundidores identificados, e as interações foram testadas com base no modelo teórico-conceitual, ou seja, utilizando as variáveis de escolaridade e de consumo abusivo de álcool.

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por meio do CAAE 01724512.6.0000.5259. Obedecendo aos preceitos éticos das pesquisas que envolvem seres humanos, foram utilizados Termos de Consentimento Livre e Esclarecido para todas as participantes, esclarecendo os objetivos, riscos e benefícios do trabalho antes das assinaturas. Foram garantidos o anonimato, a privacidade das mulheres e sua retirada da entrevista a qualquer tempo.

A partir das reflexões éticas e metodológicas de pesquisas envolvendo mulheres em situações de violência, optou-se pela participação de entrevistadores exclusivamente do sexo feminino, a fim de proporcionar uma interação mais confortável 2222. Rafael RMR, Moura ATMS. Considerações éticas sobre pesquisas com mulheres em situação de violência. Rev Bras Enferm 2013; 66:287-90.,2323. World Health Organization. Putting women first: ethical and safety recommendations for research on domestic violence against women. Geneva: World Health Organization; 2001.. A aproximação prévia com as equipes e a discussão minuciosa da dinâmica de trabalho de campo permitiram melhor organização da coleta de dados, especialmente porque as unidades mantiveram a normalidade do seu funcionamento, destinando um ambiente reservado para a realização das entrevistas. Também foi articulada uma rede de suporte para todas as respondentes, viabilizando, quando aplicável, o agendamento para a realização do exame de rastreio e a referência para os serviços de assistência às mulheres em situação de violência.

Resultados

A média de idade das participantes do estudo foi de 44 anos (IC95%: 43,1-44,9), com 40,1% (IC95%: 36,4-44,0) acima de 40 anos. A maior parte das mulheres se declarou parda ou preta (negra), casada, com menos de oito anos de estudo, pertencente à classe econômica C e vivendo em boas condições de moradia. Foram observadas relações estatisticamente significantes entre o desfecho e as variáveis: faixa etária e escolaridade. Tendo em vista a preservação da forma de entrada no modelo de regressão, também foi apresentado o cálculo dos respectivos OR para as variáveis “faixa etária” e “classe econômica” em sua forma contínua, sendo, respectivamente, 1,0 (IC95%: 1,0-1,0; p = 0,001) e 0,99 (IC95%: 0,9-1,0; p = 0,708), bem como para a variável raça/cor em seu formato original, ou seja, com todas as categorias. A Tabela 1 apresenta a caracterização da amostra e a análise bivariada entre as variáveis independentes e a variável dependente (inadequação no rastreio do câncer do colo do útero).

Tabela 1
Caracterização da amostra e análise bivariada entre a variável dependente (inadequação do rastreio do câncer do colo do útero) e os aspectos sociodemográficos e o uso abusivo de álcool, em mulheres cobertas pela Estratégia Saúde da Família. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, 2013.

Observa-se que tanto o abuso perpetrado contra as mulheres (ORbruta = 2,1; IC95%: 1,1-4,1) como a coocorrência das violências (ORbruta = 3,0; IC95%: 1,2-7,4) apresentaram significância estatística. Destaca-se que a coocorrência apresentou elevação no OR (ORajustada = 3,8; IC95%: 1,4-9,8) após ajuste pelas variáveis faixa etária, raça/cor e condições de moradia (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição, análise bivariada e modelo de ajuste entre as variáveis independentes de interesse (formas de violência física grave) e a variável dependente (inadequação do rastreio do câncer do colo do útero), em mulheres cobertas pela Estratégia Saúde da Família. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, 2013.

A maior modificação de efeito ocorreu entre a violência física grave contra a mulher e o uso abusivo de álcool pela usuária (OR = 10,2; IC95%: 1,8-56,4). As interações entre a coocorrência de violência física grave e o tempo de estudo inferior a oito anos (OR = 6,3; IC95%: 1,8-22,1), o uso abusivo de álcool pela mulher (OR = 8,5; IC95%: 1,4-50,7) e pelo parceiro (OR = 6,3; IC95%: 1,6-24,1) também foram significativas (Tabela 3).

Tabela 3
Resultados das odds ratio (OR) ajustadas nas análises multivariadas entre as formas de violência física grave e a inadequação do rastreio do câncer do colo do útero na Estratégia Saúde da Família, em função do tempo de estudo da mulher e do uso abusivo de álcool. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil, 2013 (N = 634).

Discussão

O rastreamento sistemático do câncer do colo do útero é alvo de inúmeras investigações que visam iluminar as possíveis barreiras de acesso e utilização de serviços e o estado atual do conhecimento ainda apresenta lacunas a serem preenchidas 2424. Borges MFSO, Dotto LMG, Koifman RJ, Cunha MA, Muniz PT. Prevalência do exame preventivo de câncer do colo do útero em Rio Branco, Acre, Brasil, e fatores associados à não-realização do exame. Cad Saúde Pública 2012; 28:1156-66.,2525. Hackenhaar AA, Cesar JA, Domingues MR. Exame citopatológico de colo uterino em mulheres com idade entre 20 e 59 anos em Pelotas, RS: prevalência, foco e fatores associados à sua não realização. Rev Bras Epidemiol 2006; 9:103-11.. A literatura traz poucos trabalhos que se debruçam sobre as relações de causalidade envolvidas com a inadequação do rastreio dessa neoplasia, tornando relevantes os achados aqui descritos.

Duas formas de violência íntima apresentaram positividade nas relações de risco com a inadequação do rastreamento, independente de outros fatores investigados. A violência física perpetrada contra a mulher elevou o risco de não realização do exame em duas vezes, enquanto a coocorrência aumentou em cerca de quatro vezes as chances para a inadequação do exame, quando comparado com mulheres não expostas. Embora haja certo ineditismo no estudo desses fatores de risco, outros trabalhos já apontam a influência negativa da ocorrência da violência nos cuidados à saúde que necessitam de regularidade na frequência aos serviços. A violência física perpetrada contra gestantes parece estar intimamente relacionada com a má qualidade de pré-natal, sugerindo a necessidade de acompanhamento mais frequente e reforçando a atenção e garantia de acesso das mulheres vítimas 1414. Krug EG, Dalhberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editores. Informe mundial sobre la violencia y la salud. Genebra: Organización Mundial de la Salud; 2002.,2626. Chambliss LR. Intimate partner violence and its implication for pregnancy. Clin Obstet Gynecol 2008; 51:385-97.. Trabalho semelhante aponta para as relações de risco entre o abuso físico entre parceiros íntimos e o acompanhamento de crianças em unidades básicas de saúde, trazendo como reflexão que o cuidado desempenhado preferencialmente pelas mulheres pode sofrer influência do nível de autonomia e da capacidade de mobilizar e gerenciar os recursos necessários para essas práticas de cuidado 2727. Silva AG, Moraes CL, Reichenheim ME. Violência física entre parceiros íntimos: um obstáculo ao início do acompanhamento da criança em unidades básicas de saúde do Rio de Janeiro, Brasil? Cad Saúde Pública 2012; 28:1359-70.. Os danos gerados pelo ambiente familiar conflituoso têm sido entendidos como circular, ou seja, todos aqueles que compõem o espaço microssocial sofrem diante dessas vivências, refletindo em piores indicadores de saúde 2828. Carvalho-Barreto A, Bucher-Maluschke JSNF, Almeida PC, Desouza E. Desenvolvimento humano e violência de gênero: uma integração bioecológica. Psicol Reflex Crit 2009; 22:86-92.,2929. Rafael RMR, Moura ATMS. Violência contra a mulher ou mulheres em situação de violência? Uma análise sobre a prevalência do fenômeno. J Bras Psiquiatr 2014; 63:149-53.. A mensagem a ser incorporada pelos profissionais de saúde seria que mulheres em situação de violência íntima podem ter maiores dificuldades em manter ações de cuidado regular para elas e seus dependentes, principalmente nas proximidades do domicílio pela maior visibilidade.

Um exercício que parece interessante é a reflexão do medo vivenciado pela mulher nas situações em apreço, já que esse sentimento pode estar relacionado à própria realização do exame e ao que decorre do processo de vitimização pelas situações de violência íntima. O medo relacionado ao exame pode ser produzido pela expectativa de dor durante o procedimento e estar associado ao próprio examinador 1212. Rafael RMR, Moura ATMS. Barreiras na realização da colpocitologia oncótica: um inquérito domiciliar na área de abrangência da Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2010; 26:1045-50.. A situação de violência também evoca baixa autoestima, vergonha e medo, que podem resultar em mudanças de comportamento, ampliando o isolamento e a dificuldade de autocuidado e do cuidado com o outro 2929. Rafael RMR, Moura ATMS. Violência contra a mulher ou mulheres em situação de violência? Uma análise sobre a prevalência do fenômeno. J Bras Psiquiatr 2014; 63:149-53.,3030. Zancan N, Wassermann V, Lima GQ. A violência doméstica a partir do discurso de mulheres agredidas. Pensando Fam 2013; 17:63-76 .,3131. Swan SC. A review of research on women's use of violence with male intimate partners. Violence Vict 2008; 23:301-14.,3232. Lyons J, Bell T, Fréchette S, Romano E. Child-to-parent violence: frequency and family correlates. J Fam Viol 2015; 30:729-42.. A maneira como essa combinação de sensações negativas pode estar potencializando aspectos do cuidado com a saúde ainda merece maior aprofundamento.

As características de funcionamento da ESF possuem a singular possibilidade de aproximação com o território, favorecendo a construção de vínculos entre usuários e equipes de saúde 3333. Garuzi M, Achitti MCO, Sato CM, Rocha SA, Spagnuolo RS. Acolhimento na Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa. Rev Panam Salud Pública 2014; 35:144-9.. A própria visita domiciliar pode se apresentar como ferramenta para a prevenção de violências, uma vez que possibilita a identificação de vulnerabilidades no próprio contexto familiar 3434. Shimbo AY, Labronici LM, Mantovani MF. Reconhecimento da violência intrafamiliar contra idosos pela equipe da estratégia saúde da família. Esc Anna Nery Rev Enferm 2011; 15:506-10.. Por outro lado, esses mesmos atributos podem atuar como barreiras em situações de conflito. As mulheres que vivenciam a violência íntima acabam por frequentar com menor assiduidade alguns serviços de saúde na tentativa, mesmo que subjetiva, de manter certo grau de invisibilidade 1313. Moraes CL, Arana FDN, Reichenheim ME. Violência física entre parceiros íntimos na gestação como fator de risco para a má qualidade do pré-natal. Rev Saúde Pública 2010; 44:667-76.,2626. Chambliss LR. Intimate partner violence and its implication for pregnancy. Clin Obstet Gynecol 2008; 51:385-97.. O (re)conhecimento da dinâmica familiar violenta pode ser desnudado pelas visitas domiciliares e pela proximidade com a equipe, levando ao afastamento das usuárias. Ainda persiste a visão social de que a mulher permanece na relação violenta por escolha, sendo difícil evitar juízos de valor pelos profissionais, com possibilidade de revitimização e afastamento 3535. Nascimento EFGA, Ribeiro AP, Souza ER. Percepções e práticas de profissionais de saúde de Angola sobre a violência contra a mulher na relação conjugal. Cad Saúde Pública 2014; 30:1229-38.. Quando se observa um risco três vezes maior para a não realização do exame entre as respondentes, percebe-se a necessidade de contemplar aspectos das resoluções de conflito familiares nas ações de busca ativa e demais atividades desenvolvidas pela ESF.

Em relação à dimensão sociodemográfica, os resultados apontam para a idade e a escolaridade como fatores de riscos associados à inadequação do rastreio, especialmente em faixas etárias superiores aos cinquenta anos e em mulheres com menos de oito anos de estudo. Alguns autores já haviam evidenciado preocupações com os extremos de idade do público-alvo, especialmente pela aproximação com o período da menopausa e o maior intervalo adotado entre as consultas ginecológicas, com menor exposição às ações de prevenção 2525. Hackenhaar AA, Cesar JA, Domingues MR. Exame citopatológico de colo uterino em mulheres com idade entre 20 e 59 anos em Pelotas, RS: prevalência, foco e fatores associados à sua não realização. Rev Bras Epidemiol 2006; 9:103-11.,3636. Gonçalves CV, Sassi RM, Oliveira Netto I, Castro NB, Bortolomedi AP. Cobertura do citopatológico do colo uterino em Unidades Básicas de Saúde da Família. Rev Bras Ginecol Obstet 2011; 33:258-63.. A aceleração da transição demográfica em curso no país amplia numericamente esse subgrupo de maior vulnerabilidade, sendo necessário repensar práticas de captação a ele destinadas 3737. Girianelli VR, Gamarra CJ, Azevedo e Silva G. Os grandes contrastes na mortalidade por câncer do colo uterino e de mama no Brasil. Rev Saúde Pública 2014; 48:459-67.,3838. Vasconcelos AMN, Gomes MMF. Transição demográfica: a experiência brasileira. Epidemiol Serv Saúde 2012; 21:539-48..

A escolaridade como importante fator de risco para a não realização do exame parece estar associada às questões de vulnerabilidade social 2525. Hackenhaar AA, Cesar JA, Domingues MR. Exame citopatológico de colo uterino em mulheres com idade entre 20 e 59 anos em Pelotas, RS: prevalência, foco e fatores associados à sua não realização. Rev Bras Epidemiol 2006; 9:103-11.,3636. Gonçalves CV, Sassi RM, Oliveira Netto I, Castro NB, Bortolomedi AP. Cobertura do citopatológico do colo uterino em Unidades Básicas de Saúde da Família. Rev Bras Ginecol Obstet 2011; 33:258-63.. A baixa escolaridade pode afetar o acesso e a compreensão das informações relacionadas às ações de prevenção em saúde, além de dificultar a tomada de decisões mais seguras em relação ao próprio corpo, consolidando-se, cada vez mais, como um ponto a ser considerado nos atendimentos. Vale destacar a expressiva ação modificadora de efeito das variáveis escolaridade e uso abusivo de álcool pela mulher e seu parceiro, elevando os riscos para todas as formas de violência analisadas. Já é consenso na literatura a existência de interação entre vulnerabilidade social, uso abusivo de álcool e ocorrência de violência íntima, e os achados aqui apresentados reforçam a necessidade de abordagem diferenciada dessas situações 1313. Moraes CL, Arana FDN, Reichenheim ME. Violência física entre parceiros íntimos na gestação como fator de risco para a má qualidade do pré-natal. Rev Saúde Pública 2010; 44:667-76.,3939. Jewkes R. Intimate partner violence: causes and prevention. Lancet 2002; 359:1423-9.. A participação do álcool como barreira de acesso pode guardar relações com a gravidade dos conflitos familiares e com a própria perda de autonomia da mulher em relação às suas decisões de cuidado 4040. Fontanella BJB, Demarzo MMP, Mello GA, Fortes SLCL. Os usuários de álcool, atenção primária à saúde e o que é "perdido na tradução". Interface Comun Saúde Educ 2011; 15:573-85.,4141. Ronzani TM, Furtado EF. Estigma social sobre o uso de álcool. J Bras Psiquiatr 2010; 59:326-32..

Os resultados apresentados devem ser interpretados à luz de suas limitações. A primeira diz respeito à ausência de aferição da temporalidade entre a ocorrência da violência e a inadequação do rastreio do câncer do colo uterino. A opção metodológica deste estudo não contemplou a interação relacionada à janela temporal entre os eventos, considerando como positivos todos aqueles ocorridos nos três últimos anos. Futuros trabalhos podem estabelecer novos modelos analíticos, inserindo diferentes intervalos temporais no modelo de cadeia causal proposto. A seleção de usuárias da ESF permitiu investigar apenas aquelas que possuíam o mínimo de frequência nas unidades de saúde, já que o recrutamento ocorreu nesse local. Mesmo com a adoção de medidas que controlaram a definição de casos a partir do relato de não realização do exame colpocitológico nos últimos três anos, a violência íntima pode agir com maior força em mulheres que sequer frequentam esses serviços. Essa modificação de efeito é própria de estudos realizados em ambulatórios ou similar, sendo necessária a realização de inquéritos domiciliares para que se possa reconhecer o risco produzido pela exposição à violência também em mulheres que estão distantes das unidades de saúde.

Tendo em vista a dificuldade de produzir uma lista de mulheres que frequentam os serviços de forma não programada, que não realizaram agendamento prévio para o atendimento, empregou-se a técnica de amostragem não probabilística, por conveniência, entrevistando aquelas presentes aos serviços durante o período do estudo. Parece importante considerar que essa estratégia pode ter influenciado positivamente em aspectos da validade externa, por trazer informações a partir de abordagem baseada em clientela espontânea e sem a adoção prévia de critérios que selecionassem apenas subgrupos baseados em queixas ou condições específicas. Dessa forma, os resultados apresentados trazem uma aferição mais abrangente e aproximada da experiência vivenciada no âmbito da ESF, com capacidade de generalização para outras realidades semelhantes, considerando as características e especificidades de cada local.

Mesmo frente às limitações, os resultados parecem ampliar as possibilidades de entendimento para a inadequação da realização do exame de rastreio ao considerar dimensões relacionadas à dinâmica familiar e sentimentos próprios da mulher que vivencia violência. Além de reforçar a faixa etária como barreira na utilização dos serviços, já demonstrado em estudos anteriores, a violência física grave também se constituiu como um importante fator de risco quando perpetrada pelo parceiro ou nas relações de coocorrência de situações abusivas, reforçando a ideia de circularidade das consequências geradas por esses atos 4242. Lindner SR, Coelho EBS, Bolsoni CC, Rojas PF, Boing AF. Prevalência de violência física por parceiro íntimo em homens e mulheres de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil: estudo de base populacional. Cad Saúde Pública 2015; 31:815-26.. A baixa escolaridade da mulher e o abuso de álcool pelo casal, quando associados ao fenômeno das violências, também ampliou sobremaneira os riscos para a inadequação do rastreamento.

A avaliação cuidadosa e empática da dinâmica familiar ainda não é tarefa fácil, mesmo em serviços estruturados de maneira diferenciada, a exemplo da ESF. Parece imprescindível garantir um olhar ampliado para as mulheres que não realizam adequadamente seus exames de rastreio, uma vez que o absenteísmo pode desvelar demandas que não são facilmente percebidas em ações de rotina no âmbito da saúde. O desenvolvimento de estratégias comunitárias que articulem redes de apoio - com a participação dos usuários e equipamentos socais locais - também poderia contribuir para que essa clientela se aproximasse das equipes, que também carecem de formação adequada para atuar frente a essas situações complexas e tão singulares.

Agradecimentos

À Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) pelo financiamento deste estudo.

Referências

  • 1
    Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2016: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2016.
  • 2
    Castro B, Ribeiro DP, Oliveira J, Pereira MB, Sousa JC, Yaphe J. Rastreio do câncer do colo do útero: limites etários, periodicidade e exame ideal: revisão da evidência recente e comparação com o indicador de desempenho avaliado em Portugal. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:1113-22.
  • 3
    World Health Organization. Comprehensive cervical cancer control - a guide to essential practice. 2nd Ed. Geneva: World Health Organization; 2014.
  • 4
    Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva; 2011.
  • 5
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional de saúde, 2013: ciclos de vida - Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2015.
  • 6
    World Health Organization. Cancer control. Knowledge into action: who guide for effective programmes. Geneva: World Health Organization; 2007.
  • 7
    IARC Working Group on Evaluation of Cervical Cancer Screening Programmes. Screening for squamous cervical cancer: duration of low risk after negative results of cervical cytology and its implication for screening policies. BMJ 1986; 293:659-64.
  • 8
    Rafael RMR, Moura ATMS. Exposição aos fatores de risco do câncer do colo do útero na Estratégia de Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Colet (Rio J.) 2012; 20:499-505.
  • 9
    Navarro C, Fonseca AJ, Sibajev A, Souza CIA, Araújo DS, Teles DAF, et al. Cobertura do rastreamento do câncer de colo de útero em região de alta incidência. Rev Saúde Pública 2015; 49:17.
  • 10
    Pinho AA, França-Junior I. Prevenção do câncer de colo do útero: um modelo teórico para analisar o acesso e a utilização do teste de Papanicolau. Rev Bras Saúde Matern Infant 2003; 3:95-112.
  • 11
    Aguilar RP, Soares DA. Barreiras à realização do exame Papanicolau: perspectivas de usuárias e profissionais da Estratégia de Saúde da Família da cidade de Vitória da Conquista - BA. Physis (Rio J.) 2015; 25:359-79.
  • 12
    Rafael RMR, Moura ATMS. Barreiras na realização da colpocitologia oncótica: um inquérito domiciliar na área de abrangência da Saúde da Família de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2010; 26:1045-50.
  • 13
    Moraes CL, Arana FDN, Reichenheim ME. Violência física entre parceiros íntimos na gestação como fator de risco para a má qualidade do pré-natal. Rev Saúde Pública 2010; 44:667-76.
  • 14
    Krug EG, Dalhberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R, editores. Informe mundial sobre la violencia y la salud. Genebra: Organización Mundial de la Salud; 2002.
  • 15
    Rafael RMR, Moura ATMS. Relationship between alcohol consumption and violence between intimate partners: a sectional study. Online Braz J Nurs 2016; 15:617-23.
  • 16
    Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critérios de Classificação Econômica Brasil. 2011. http://www.abep.org (acessado em 27/Abr/2011).
    » http://www.abep.org
  • 17
    Reichenheim ME, Harpham T. Perfil intracomunitário da deficiência nutricional: um estudo de crianças abaixo de 5 anos numa comunidade de baixa renda do Rio de Janeiro. Rev Saúde Pública 1990; 24:69-79.
  • 18
    Moraes CL, Viellas EF, Reichenheim ME. Assessing alcohol misuse during pregnancy: evaluating psychometric properties of the CAGE, T-ACE, and TWEAK in a Brazilian setting. J Stud Alcohol 2005; 66:165-73.
  • 19
    Straus MA, Hamby SL, Boney-McCoy S, Sugarman DB. The Revised Conflict Tactics Scales (CTS2): development and preliminary psychometric data. J Fam Issues 1996; 17:283-316.
  • 20
    Moraes CL, Reichenheim ME. Cross-cultural measurement equivalence of the Revised Conflict Tactics Scales (CTS2) Portuguese version used to identify violence within couples. Cad Saúde Pública 2002; 18:783-96.
  • 21
    Reichenheim ME, Klein R, Moraes CL. Assessing the physical violence component of the Revised Conflict Tactics Scales when used in heterosexual couples: an item response theory analysis. Cad Saúde Pública 2007; 23:53-62.
  • 22
    Rafael RMR, Moura ATMS. Considerações éticas sobre pesquisas com mulheres em situação de violência. Rev Bras Enferm 2013; 66:287-90.
  • 23
    World Health Organization. Putting women first: ethical and safety recommendations for research on domestic violence against women. Geneva: World Health Organization; 2001.
  • 24
    Borges MFSO, Dotto LMG, Koifman RJ, Cunha MA, Muniz PT. Prevalência do exame preventivo de câncer do colo do útero em Rio Branco, Acre, Brasil, e fatores associados à não-realização do exame. Cad Saúde Pública 2012; 28:1156-66.
  • 25
    Hackenhaar AA, Cesar JA, Domingues MR. Exame citopatológico de colo uterino em mulheres com idade entre 20 e 59 anos em Pelotas, RS: prevalência, foco e fatores associados à sua não realização. Rev Bras Epidemiol 2006; 9:103-11.
  • 26
    Chambliss LR. Intimate partner violence and its implication for pregnancy. Clin Obstet Gynecol 2008; 51:385-97.
  • 27
    Silva AG, Moraes CL, Reichenheim ME. Violência física entre parceiros íntimos: um obstáculo ao início do acompanhamento da criança em unidades básicas de saúde do Rio de Janeiro, Brasil? Cad Saúde Pública 2012; 28:1359-70.
  • 28
    Carvalho-Barreto A, Bucher-Maluschke JSNF, Almeida PC, Desouza E. Desenvolvimento humano e violência de gênero: uma integração bioecológica. Psicol Reflex Crit 2009; 22:86-92.
  • 29
    Rafael RMR, Moura ATMS. Violência contra a mulher ou mulheres em situação de violência? Uma análise sobre a prevalência do fenômeno. J Bras Psiquiatr 2014; 63:149-53.
  • 30
    Zancan N, Wassermann V, Lima GQ. A violência doméstica a partir do discurso de mulheres agredidas. Pensando Fam 2013; 17:63-76 .
  • 31
    Swan SC. A review of research on women's use of violence with male intimate partners. Violence Vict 2008; 23:301-14.
  • 32
    Lyons J, Bell T, Fréchette S, Romano E. Child-to-parent violence: frequency and family correlates. J Fam Viol 2015; 30:729-42.
  • 33
    Garuzi M, Achitti MCO, Sato CM, Rocha SA, Spagnuolo RS. Acolhimento na Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa. Rev Panam Salud Pública 2014; 35:144-9.
  • 34
    Shimbo AY, Labronici LM, Mantovani MF. Reconhecimento da violência intrafamiliar contra idosos pela equipe da estratégia saúde da família. Esc Anna Nery Rev Enferm 2011; 15:506-10.
  • 35
    Nascimento EFGA, Ribeiro AP, Souza ER. Percepções e práticas de profissionais de saúde de Angola sobre a violência contra a mulher na relação conjugal. Cad Saúde Pública 2014; 30:1229-38.
  • 36
    Gonçalves CV, Sassi RM, Oliveira Netto I, Castro NB, Bortolomedi AP. Cobertura do citopatológico do colo uterino em Unidades Básicas de Saúde da Família. Rev Bras Ginecol Obstet 2011; 33:258-63.
  • 37
    Girianelli VR, Gamarra CJ, Azevedo e Silva G. Os grandes contrastes na mortalidade por câncer do colo uterino e de mama no Brasil. Rev Saúde Pública 2014; 48:459-67.
  • 38
    Vasconcelos AMN, Gomes MMF. Transição demográfica: a experiência brasileira. Epidemiol Serv Saúde 2012; 21:539-48.
  • 39
    Jewkes R. Intimate partner violence: causes and prevention. Lancet 2002; 359:1423-9.
  • 40
    Fontanella BJB, Demarzo MMP, Mello GA, Fortes SLCL. Os usuários de álcool, atenção primária à saúde e o que é "perdido na tradução". Interface Comun Saúde Educ 2011; 15:573-85.
  • 41
    Ronzani TM, Furtado EF. Estigma social sobre o uso de álcool. J Bras Psiquiatr 2010; 59:326-32.
  • 42
    Lindner SR, Coelho EBS, Bolsoni CC, Rojas PF, Boing AF. Prevalência de violência física por parceiro íntimo em homens e mulheres de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil: estudo de base populacional. Cad Saúde Pública 2015; 31:815-26.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2016
  • Revisado
    13 Mar 2017
  • Aceito
    03 Abr 2017
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br